Há qualquer coisa nos dramas históricos que divide as audiências. A ideia de que ou se gosta muito ou se odeia, a escolha entre o preto ou branco, é exagerada neste caso, mas convencer alguém que precisa mesmo de ver uma série histórica sobre a rainha Isabel II, em 2017, é um trabalho árduo. Mesmo vendendo a ideia de que “The Crown” é pertinente nos dias que correm e que vai além de uma série histórica, que não é um “Vikings” – credo – ou a novela “Downton Abbey”. Também não é politicamente presente como “House Of Cards” ou como foi “Os Homens do Presidente”. Mas se há orgasmos múltiplos por “Mindhunter” e “The Deuce”, ambas passadas nos anos 1970 e, tecnicamente, históricas, porque é que esta ideia da rainha parece uma coisa tão chata a tanta gente?

Resolvendo já a coisa: “The Crown” não é chata. Aliás, a primeira temporada foi a melhor série a estrear no ano passado. Em tempos de Brexit e Trump, a criação de Peter Morgan (calejado nestas coisas “históricas” com coisas como “Frost / Nixon”, “A Rainha”, “Maldito United” e “Rush – Duelo de Rivais” no currículo) caiu como um banho de diplomacia e de respeito em relação à história e à tradição, contextualizando muito bem para 2016 a chegada de Isabel II ao poder (com 25 anos, em 1952) e a sua relação com o primeiro-ministro Winston Churchill, interpretado por um vigoroso John Lithgow.

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Pelo meio mostram os dramas com o seu tio, o Duque de Windsor (Alex Jennings), as novelas com a sua irmã, Margarida (Vanessa Kirby) e os arrufos no seu casamento com Filipe (Matt Smith), mas o que predomina é o brilhante retrato de figura monárquica, numa excelente interpretação de Claire Foy, em volta da sua inexperiência e processo de aprendizagem durante um período conturbado da história mundial, do Reino Unido e, claro, da Commonwealth. Mais uma vez: tendo em conta todos estes ingredientes, que mistura factos reais com drama e romance, como é que ainda há resistentes? Pode a segunda temporada resolver isso? Claro que pode. Aliás, se à primeira não ficaram todos rendidos, à segunda todos prestarão vassalagem.

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Sua Majestade, a partir de Setúbal

Claire Foy continua a deslumbrar no papel de Isabel II nesta nova dose de episódios, que estão todos disponíveis na Netflix a 8 de dezembro. (Um pequeno desvio: na terceira temporada a rainha passará a ser interpretada por Olivia Colman, porque, infelizmente, os anos na vida real não avançam tão rapidamente na ficção.) Tudo começa em Setúbal, com a rainha a despedir-se de Portugal depois da sua primeira visita oficial ao nosso país em 1956, e termina em 1964, com uma Inglaterra em rápida mutação, com os hábitos e os costumes a galoparem num sentido adverso a esta velha ideia de uma família monárquica.

A pergunta, claro, entra em jogo se não se tem qualquer interesse pela monarquia, principalmente a britânica: porque raio é que se deve perder tempo a ver “The Crown”? Ainda por cima quando o jogo político e familiar se centra tanto nessa ideia de realeza e na importância da figura da rainha? Ora bem, porque vai além disso. É como está escrito umas linhas acima: a história de Isabel II é posta num contexto bem presente, o espectador é convidado a pensar no seu mundo, hoje, nos problemas atuais, a partir de figuras que ainda transmitem o seu dever histórico, que percebem o papel que lhes corresponde, ainda que não seja assim por vontade própria.

E atenção: “The Crown” não está cá para dizer ao espectador que a história se repete, mas para o convencer da importância de certos códigos, de condutas diplomáticas que parecem inexistentes nos dias que correm. E é aí que “The Crown” e a Isabel II de Claire Foy brilham. A sua inexperiência, tanto na política como na vida familiar, são elementares para se ficar viciado, ou apaixonado, pela série. É fácil, é até quase inevitável entrar neste universo ao ritmo da rainha, a lidar com o inesperado e o novo, a entrar no jogo das longas digressões reais pela Commonwealth — e não só — que têm tanto de essencial como de exasperante. Para Claire Foy e para o espectador, o melhor de “The Crown” acontece em simultâneo: todos passamos a descobrir e a conhecer aquele mundo particular e a sentir parte do peso do poder num instante.

Que a televisão salve a rainha

Na primeira temporada, este pequeno grande fenómeno era bastante evidente nas excelentes reuniões com Winston Churchill. Nestes novos episódios, contudo, o prato é outro. Com o rescaldo da Segunda Guerra Mundial fora de jogo, Peter Morgan vira-se a crise no canal do Suez, para a existência de John F. Kennedy e Jackie Kennedy no seu mundo, (o episódio da visita do casal americano ao Reino Unido é maravilhoso), mundo esse que não é só o político e o das relações diplomáticas, mas também o do casamento, quando Isabel II começa a sentir a sua relação com Filipe distante e apagada.

Tudo o que gira em torno da rainha parece estar a voltar-se contra ela, os ventos dos anos 1960 entram com uma rápida vontade de mudança e é preciso encontrar a melhor forma de adaptação. E é aqui que “The Crown” descobre o seu maior vigor, ao mostrar como Isabel II tem uma constante compreensão sobre todas essas transformações. “The Crown” não é feita para ganhar simpatia em favor de Isabel II (em particular) ou da monarquia britânica (em geral), mas torna evidente porque é que apesar do resto do mundo não se querer preocupar muito com o que por lá se passa, as notícias do casamento do Príncipe Harry com a norte-americana Meghan Markle continuam (e vão continuar a dar) tantos cliques pelo mundo fora. Ou porque é que toda a gente sabe que Kate Middleton está grávida novamente do Príncipe William — e quando dizemos “toda a gente” é porque é mesmo toda a gente.

Entre muitas coisas, Isabel II e o seu legado fazem parte da cultura popular. Não há forma de fugir a isso e por mais que se finja ignorar, o que se passa naquele reino chega aos olhos de todos. “The Crown” é um exercício fabuloso em volta disso. Não é só uma memória sobre o que se passou no século XX, é um esforço de projeção dessa mesma história, sobre a atualidade, sobre a forma como se olha hoje para a monarquia inglesa e como esta monarquia tem influência diplomática e cultural mundo fora.

Peter Morgan e Claire Foy reformularam o contexto pop de Isabel II e é uma delícia de se ver. Poucas séries históricas conseguem transcender o “conta-me como foi” e justificar o seu lugar no presente, acondicionar o passado para ajudar a reformular o “aqui e agora”. Fica o desejo que isto tenha temporadas suficientes para acompanhar a rainha até ao presente. De certeza que Helen Mirren ainda estará por cá para voltar a encarnar o papel.