Comecemos pela parte que, se tivesse sido tornado pública há mais tempo, lhe podia ter custado a vida: o autor do blogue Mosul Eye, que documentou desde 2014 a opressão do Estado Islâmico na cidade iraquiana de Mossul, tem 31 anos e chama-se Omar Mohammed.

A revelação foi feita esta sexta-feira, depois de Omar Mohammed, historiador nascido em Mossul, ter contado pela primeira vez a sua história depois de ter fundado o Mosul Eye — que funciona em blogue, no Twitter e no Facebook —, projeto que lançou quando ainda estava naquela cidade no norte do Iraque e continuou a alimentar, à distância, quando fugiu do país.

Durante esse tempo, deu algumas entrevistas a jornalistas de todo o mundo, mas nunca se identificou. Agora, fê-lo pela primeira vez, em entrevista à Associated Press. Este sábado, um dia depois de a entrevista ver a luz do dia, o governo do Iraque declarou vitória na guerra contra aquele grupo terrorista.

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O blogue começou com posts de leitura rápida e apenas com informações isoladas, diretas ao ponto. Ao contrário do que se poderia esperar, o primeiro post não foi uma apresentação de qualquer tipo ao projeto, mas uma descrição sobre a última vez que soube da presença de militar curdos, inimigos do Estado Islâmico, num check-point próximo. A entrada é de 18 de junho de 2014 — oito dias depois de o Estado Islâmico ter conseguido controlar aquela cidade — e, assim, começava o projeto que passou a ser a razão de várias preocupações de um historiador que, perante o que via acontecer à sua volta, sentiu que tinha uma missão a cumprir.

No mesmo dia, 18 de junho, fez um post mais completo, onde dizia:

O que eu vi hoje é muito difícil de descrever por escrito. Há muitas mentiras e notícias falsas que foram espalhadas pelos media. Seja como for, a realidade no terreno contradi-las. O meu trabalho enquanto historiador requer uma abordagem imparcial, à qual vou aderir, e guardar a minha opinião para mim. Só vou comunicar os factos que vejo”.

Seguiu-se uma cobertura de tudo o que presenciava na cidade, desde movimentações militares, funcionamento de serviços como os hospitais e, mais importante, a repressão a que os radicais islamistas submetiam toda a cidade. Muitas vezes, documentou as decapitações que eram feitas em público — uma maneira de punir aqueles que eram tidos como “pecadores” e também de assustar todos os outros.

Em declarações à Associated Press, explica agora o seu pensamento na altura foi: “estou a escrever isto para a história, porque eu sei que isto vai acabar. As pessoas vão voltar, a vida tornará a ser normal (…). Depois de muitos anos, vai haver gente que vai estudar o que aconteceu. A cidade merece que alguma coisa seja escrita, pela sua defesa e pela verdade, porque diz-se que quando a guerra começa a primeira vítima é a verdade”.

Muitas das informações que publicava eram fruto de conversas com pessoas que encontrava no seu quotidiano, fora aquelas que eram fruto de experiências suas. Falava com amigos que trabalhavam em hospitais e até com um amigo que passou de taxista para informador do Estado Islâmico. Uma vez, em conversa, esse amigo contou-lhe que tinham morrido vários membros destacados do Estado Islâmico após um bombardeamento aéreo. Omar Mohammed pegou nessa informação e publicou-a — e só momentos depois é que se apercebeu de que o grau de detalhe daquele post podia comprometê-lo. A tempo, apagou a entrada e o amigo nunca chegou a confrontá-lo com nada.

Ninguém sabia quem era o Mosul Eye. Nem sequer a sua própria mãe, que não se apercebeu de ele passar as noites com as luzes do quarto apagadas enquanto escrevia; nem o seu irmão mais novo, que ficou contente quando soube pelo irmão que era ele quem escrevia o blogue que ele lia com regularidade.

Caminhar para a morte podia ser tão simples como vestir vermelho e fumar um cigarro

Por mais anestesiado que estivesse por toda aquela violência, que tinha nas execuções o seu ponto mais alto, houve uma altura em que Omar Mohammed sucumbiu a tanto sangue. Esse ponto foi atingido quando, à sua frente, cortaram a mão a um rapaz, ainda criança, acusado de ter roubado.

“Decidi morrer”, contou à Associated Press. “Estava tão cansado de me preocupar comigo, com a minha família, com os meus irmãos. Eu não vivo para estar preocupado, eu vivo para viver a minha vida. E pensei: para mim acabou.”

Em vez de se suicidar em casa, quis chegar à morte através da forma mais proibida: trocou as roupas que eram admitidas pelo Estado Islâmico e vestiu uma camisola vermelha; cortou o cabelo e fez a barba; e, com o seu melhor amigo, conduziu o seu carro em público com música proibida aos altos berros nas colunas. Depois, pararam, estenderam um tapete no chão e, em público, beberam um chá e fumaram cigarros. Para seu espanto, ninguém lhes apontou o dedo, ninguém os denunciou. Por isso, regressaram à vida “normal” sob o Estado Islâmico.

Houve uma altura em que Omar Mohammed quebrou as regras do Estado Islâmico: vestiu roupa colorida, cortou o cabelo e a barba e fumou na rua. Foi um gesto de rebeldia que lhe podia ter custado a vida (Captura de ecrã de vídeo da Associated Press)

Mas chegou uma altura em que Omar Mohammed decidiu que não podia continuar na cidade que o viu nascer. Depois de tanto tempo a documentar tantos exemplos de repressão, sob o mais elevado risco, decidiu que tinha de fugir para que nada daquilo se perdesse. “Tinha de fugir com as provas que vão proteger Mossul nos anos que se seguem e para, ao menos, ser leal com as pessoas que morreram na cidade”, disse à Associated Press.

A fuga foi feita em dezembro de 2015, com a ajuda de um contrabandista, a quem pagou 1.000 dólares. Antes de partir, foi a casa, ligou o computador e passou para um disco externo toda a informação que tinha. Depois, virou as costas a Mossul. Do Iraque passaram para a Síria e da Síria passaram para a Turquia. Sem problemas.

O Mossul Eye continuou a funcionar, mesmo com Omar Mohammed, que assinou sempre como “Mosul Eye”, à distância. Primeiro, na Turquia; mais tarde, a partir da Europa, onde conseguiu asilo. O blogue era mantido com informações obtidas por pessoas no terreno, com as quais construiu uma relação de confiança — mesmo que ninguém conhecesse a sua identidade.

Agora que a derrota do Estado Islâmico no terreno, tanto na Síria como no Iraque, parece ser um dado adquirido, acredita que essa necessidade já desapareceu. “Já não posso ser anónimo”, disse. “Isso quer dizer que eu derrotei o Estado Islâmico.”