Vera, de 3 anos, Luís, de 2, e Fábio, de 9 meses, foram levados há 20 anos de um lar gerido pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), em Portugal. Tornaram-se nos netos do líder espiritual da igreja, Edir Macedo, numa adoção que terá sido ilegal. O caso, revelado por uma investigação da TVI, já foi contestado por dois dos netos — o terceiro terá morrido recentemente. No segundo episódio do trabalho da TVI, a televisão noticia que os pais foram barrados de ver os filhos, desacreditados pelo lar, que terá dito às crianças que os pais eram toxicodependentes e tinham SIDA.

A mãe biológica das três crianças (duas delas já adultas) falou à TVI sob a condição de anonimato e garante só ter pedido ajuda ao referido lar quando os seus filhos foram institucionalizados: “A assistente disse-me que a situação ia ser reavaliada e que depois vinham para junto de mim”. As crianças tinham sido sinalizadas e entregues ao lar pela Segurança Social, em 1995. Acabaram por viajar para fora de Portugal com autorização de um tribunal português mas tais decisões judiciais podem ter sido formuladas com base em informação errada. A realidade pode ter sido “construída ao tribunal”, considera Mello Breyner, magistrado do Ministério Público especialista em Direito de Família e Menores, que comentou o caso na TVI.

Antes de aberto o processo de adoção, tem de ser resolvido o caso com a família biológica e, a julgar pelas declarações que a TVI recolheu junto da mãe biológica de Vera, Luís e Fábio, não houve qualquer acordo nesse sentido. A verdade é que as três crianças acabaram por ser levadas para o Brasil, sendo adotadas por Viviane Freitas, filha de Edir Macedo. Numa análise do caso, na TVI24, Mello Breyner explica que “nenhuma criança pode ser deslocada para fora do país sem que haja um juiz que tome uma decisão específica” nesse sentido. “Neste caso, as crianças deslocam-se porque há uma autorização de um juiz”, diz, admitindo que a realidade que presidiu à decisão não fosse a verdadeira.

E apesar de já terem passado mais de 20 anos sobre a data dos factos, o crime a que este caso pode dizer respeito — rapto, o ilícito que existia à data dos factos relatados pela TVI — não prescreveu. Em abstracto, neste tipo de crime está em causa uma suspeita de alegada prática permanente. O que faz com que o prazo prescricional só comece a contar a partir do momento em que a criança é libertada ou retirada da família. O caso está mesmo a ser investigado pelo Ministério Público, de acordo com o que foi divulgado pela Procuradoria Geral da República esta segunda-feira ainda antes da exibição do primeiro episódio da investigação.

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Ministério Público investiga rede de adopções ilegais de crianças da IURD

Líder da IURD terá pago vasectomias a bispos

O lar de onde terão saído as crianças funcionou em Portugal desde 23 de maio de 1994, mas só foi licenciado em 2001, e era gerido pela IURD. De lá terão saído várias crianças para serem adotadas por bispos desta igreja, que os proibia de ter filhos biológicos. Aliás, o líder espiritual da IURD pagava mesmo vasectomias aos seus pastores. Num dos seus discursos, divulgado pela TVI, Edir Macedo assume isso mesmo: “Até pagávamos para não terem filhos, vasectomia. Se teve, se vira”.

O ex-bispo da IURD que fala na reportagem, Alfredo Paulo, conta que recorreu a este método, perante a proibição imposta pelo líder Macedo. Mas anos mais tarde, depois de o líder ter definido novas regras, este antigo pastor foi então obrigado a adotar. Ele a mulher, Teresa Paulo, dizem à TVI que foram forçados pelo líder espiritual da IURD a adotar, sob ameaça de expulsão. “Começou a incentivar a adoção ao ponto de impor que alguns adotassem, porque eu e a minha esposa não queríamos adotar”, conta Alfredo Paulo que acabou mesmo por adotar uma criança com seis dias, no Brasil.

As duas filhas de Edir Macedo, Cristiane e Viviane, estão casadas com pastores da IURD, pelo que também acabaram por procurar crianças para adotarem. Três terão sido as crianças do primeiro caso contado pela TVI, mas dois deles contestam dizendo que foram adotados legalmente. “Fomos adotados de forma legal por uma família americana e vivemos até aos nossos 20 anos com essa família nos Estados Unidos. Somos cidadãos portugueses e americanos”.

Num entrevista dada a um órgão da IURD, Viviane Freitas contou, em agosto de 2014, que o pior momento da sua vida foi quando “perdeu” os filhos adotados. “Cuidei três anos das crianças, porém não conseguimos a guarda judicial e tivemos que abrir mão deles. Foi uma grande luta interior, já que tive dificuldades para esquecer aquela perda e continuar minha vida”. Mas a filha de Edir Macedo, que viveu nos Estados Unidos e vive atualmente no Brasil, diz que “passados 14 anos, neste ano, ele nos ligou e disse que estava com o passaporte nas mãos e que viria morar connosco”, sublinhando logo de seguida: “Mas eu não o havia convidado, isso partiu dele. Deus me poupou de muito sofrimento, pois ele teve uma vida muito sofrida e chegou até a tentar o suicídio. Hoje ele é uma pessoa muito grata e quer dar às pessoas o mesmo amor que tem recebido. Apesar de estar há poucos meses connosco, ele já se entregou para Deus totalmente”, conta Viviane na mesma entrevista.

No seu blogue, Vivane Freitas surge numa fotografia logo à cabeça com dois filhos, que apresenta como Louis e Vera, e o marido, o pastor Júlio Freitas, e volta a contar que ela e o marido passaram “por adaptações ao longo dos nossos anos de casados” e como “essas experiências” os fizeram “amadurecer, principalmente com a perda dos nossos filhos”.

Pais impedidos de ver os filhos, assistente social disse-lhes que pais tinham SIDA e eram toxicodependentes

Segundo a TVI, depois de Edir Macedo ter escolhido pessoalmente as crianças para serem adotadas pela sua filha Viviane, os pais das crianças começaram a ser impedidos de ver os filhos. Numa fase inicial, a mãe biológica diz que o livro de visitas, que teria de assinar para comprovar que visitava as crianças – e que em Tribunal são prova do interesse dos pais – deixou de estar disponível.

As funcionárias do lar dariam diferentes desculpas depois das visitas, dizendo para não se preocupar que poderia assinar mais tarde. Depois disso, segundo as jornalistas, uma assistente social terá desacreditado os pais junto das crianças e dos restantes funcionários, dizendo que os dois eram toxicodependentes e que tinham contraído o vírus da SIDA.

Mais tarde, os pais deixaram de conseguir ver as crianças, com as funcionárias a dar diferentes justificações aos pais – por exemplo, num dos aniversários as crianças estariam em casa de uma funcionária -, ao contrário da filha do bispo, que visitava as crianças, viajando dos Estados Unidos para Portugal para o fazer.

O esquema para levar as crianças para os Estados Unidos

A reportagem da TVI pormenoriza o esquema engendrado pelo bispo Edir Macedo para que a filha Viviane conseguisse adotar três crianças e levá-las para os Estados Unidos, onde vivia. Segundo a reportagem, a filha do líder da IURD não podia adotar em Portugal porque não tinha residência fixa no país e – tanto ela como o marido – não tinha idade suficiente.

Para contornar o imprevisto, Edir Macedo pede à secretária pessoal, a portuguesa Alice Andrade, que se inscreva com um pedido de guarda para retirar as crianças do Lar da IURD. De acordo com as jornalistas, Vera, Luís e Fábio foram levados por Alice para os Estados Unidos e entregues em casa de Viviane. A filha do líder da IURD e o marido, o bispo Júlio Freitas, rejeitam Fábio e decidem ficar apenas com Vera e Luís. Ilegalmente, “enviam” Fábio para o Brasil, para que seja adotado por outro bispo.

A reportagem da TVI esclarece que os dois irmãos nunca foram adotados por Viviane e Júlio Freitas. Aliás, a adoção só é formalizada oito anos depois das crianças saírem do lar e é Alice Andrade que fica com a guarda dos menores.