Depois de Eduardo Souto Moura em 1998 e de João Luís Carrilho da Graça em 2008, com pontualidade decénica o Prémio Pessoa destaca outro arquitecto, Manuel Aires Mateus, de 54 anos. Dos três, o primeiro — muito próximo de Álvaro Siza Vieira — foi também aquele que foi premiado mais cedo, com apenas 46 anos.

Este galardão também celebra o protagonismo de um arquitecto particularmente em evidência na cidade de Lisboa: a muito recente renovação ou acrescento de vários edifícios nobres para residências (algumas das quais adquiridas por “celebridades”), hotelaria de luxo (Santa Clara 1728) e a construção da nova sede de uma das mais poderosas e influentes empresas do país (actualmente sob domínio chinês). E coincide com o ressurgimento no mercado imobiliário de altíssimo padrão do impactante empreendimento desenhado pelo ultra-celebrizado arquitecto italiano Renzo Piano, de 80 anos na zona oriental da capital.

Arquiteto Manuel Aires Mateus vence Prémio Pessoa 2017

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E no entanto, o percurso profissional de Manuel Aires Mateus (que criou ateliê com o seu irmão Francisco em 1988, depois de ter estagiado com Gonçalo Byrne durante cinco anos) foi maioritariamente feito em pequena escala, no interior e litoral do país, para clientes familiares ou com uma vocação social e cultural radicalmente distinta daquela a que a sua obra actual deu clara preferência, e pela qual, de resto, recebera alguns prémios, atenção de revistas da especialidade e interesse académico internacionais.

Casas particulares em Alcanena, Alcobaça, Alenquer, Aroeira, Cadoços, Coruche, Grândola, Leiria, Melides, Monsaraz, Monte Caveira, Oeiras, Porto de Mós, Quinta do Lago, São Brás, Serra do Caldeirão, Sesimbra, Sintra; uma residência de estudantes em Coimbra; uma cantina universitária em Aveiro; uma discoteca na Foz do Lizandro; um call center em Santo Tirso; um monumental centro de artes em Sines; um museu em Sintra, outro em Lisboa e outro ainda, no farol de Santa Marta, em Cascais; um centro escolar em Vila Nova da Barquinha; um lar de idosos em Alcácer do Sal; um centro de investigação nas Furnas micaelenses; até uma cabana-biblioteca para um só — mas também pequenos pavilhões piscatóricos convertidos a casas de veraneio e idílio na Comporta, e um antigo armazém de vinho reabilitado a residência unifamiliar em Vila Fresca de Azeitão.

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Diogo Seixas Lopes (1972-2016), que comissariou a exposição da arquitectura dos irmãos Aires Mateus, como são conhecidos, no Centro Cultural de Belém, em 2005, elogia-lhe especialmente este último trabalho, como exercício vertiginoso de abstraccionismo de matriz vanguardista, porquanto sobre o comprido piso térreo aparecem “pequenos volumes suspensos em níveis superiores, onde se alojam os aposentos”, daí resultando “uma vertigem mesmo tomada à letra, que contesta a gravidade”, ficando todos os serviços domésticos comprimidos junto às paredes exteriores e dispostos “segundo princípios funcionais espartanos” (catálogo, s/ p.). Trata-se, segundo este arquitecto pensador, de “uma radical reconfiguração do programa doméstico e dos seus signos mais familiares: janela, porta, tecto. Em troca, o mistério da levitação e, talvez, ‘o puro som das Sereias’ emitido pela abstracção”.

Essa desatenção “espartana” ao conforto funcional do habitar — facilmente reconhecível no edifício Cais 24, a Alcântara, e no adjacente ao hotel Myryad Sana, no Parque das Nações —, em que cozinhas são instaladas em espaços estreitos e quartos de banhos muito depurados se despem da mais elementar praticidade, é largamente compensada, como no prédio restaurado na Calçada do Galvão, à Ajuda, por uma apuradíssima organização de arrumos embutidos e pelo recurso a amplas janelas e portas de vidro de última geração.

Visando o império do branco e do minimalismo claro, a suprema elegância do reboco branco combina-se — de regra — com pedra-mármore e tábuas de madeira clara, dando valor à ciência do corte e talhe desses materiais de construção. Criam-se assim “estruturas de sensibilidade e materialidade pura”, de que são bons exemplos o amplo lar de idosos de Alcácer do Sal, e a Casa Flor, na Aroeira. Uma vocação quase escultórica tem sido evidente em obras como o centro comunitário em Grândola, a escola de arquitectura de Louvaina (Bélgica) ou a reconversão hoteleira de docas em Dublin.

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Encomendas, concursos e magistério no estrangeiro também têm projectado o arquitecto português além fronteiras, dando-lhe crescente notoriedade internacional: prestações em bienais de Veneza; Grande Museu Egípcio, no Cairo; Centro de Criação Contemporânea de Tours, no sudoeste da França, inaugurado no ano passado; a referida escola de arquitectura belga, em que uma escadaria em hélice dupla pontifica; e o novo museu de design e de artes aplicadas (aplicadas, não contemporâneas como tem aparecido escrito), que começará a ser construído em breve.

Como tantas vezes acontece, espera-se que o crescendo de encomendas e contratos — especialmente por via do voraz processo de gentrificação urbana, impulsionada pelos negócios imobiliários — não venham a obstruir o indispensável e intelectualmente exigente fluxo criativo, levando à repetição insone de soluções instituídas, que constituem por certo um traço distintivo, uma imagem de marca legitimamente reconhecida, mas que facilmente se esgotará.