O crepitar das chamas chega ao teto alto, feito de tijoleira, e contrasta com a chuva miudinha que, lá fora, vai caindo silenciosa. Há uma mesa de madeira colocada no centro da divisão, decorada com loiça vintage e ornamentos pontuais que nos lembram que estamos no Natal. Artur e Eva, os responsáveis pela Quinta da Boa Esperança, recebem-nos como quem recebe a família ou os amigos de longa data: a comida é do tacho e de aconchego, os vinhos são da casa.

O projeto recente, nascido em 2015 no concelho de Torres Vedras, na região vitivinícola de Lisboa, tem uma ambição e desejo claros: criar vinhos de guarda e sustentáveis, sejam eles tintos ou brancos. O casal que se conhece desde os seis anos — e que está junto desde os 18 — quer deixar uma marca no universo do vinho com menos de 10 hectares de vinha nova e velha. Uma das parcelas está inteiramente dedicada ao cultivo orgânico e serve, por enquanto, de teste — se correr bem, será o exemplo a seguir.

Artur Gama e Eva Moura Guedes estão casados há 17 anos e juntos há 24. © Marcelo Duarte

A quinta que foi recuperada a gosto dos proprietários — que a devido tempo esperam trocar definitivamente uma agitada Lisboa pela vida do campo –, pertencia a um casal saloio também ele dedicado ao vinho. “Aqui sempre se vindimou”, conta Artur à mesa de almoço, enquanto recorda que antes da intervenção uma estrada de alcatrão entrava pela propriedade adentro e que foram precisos 36 camiões do lixo para esvaziar o espaço onde agora nos encontramos. Para lá da longa mesa, onde um estufado feito na hora chega aos muitos pratos, fica uma janela de enormes proporções, com vista privilegiada para as vinhas despidas pelo frio do inverno.

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Os vinhos apresentados durante o almoço variam entre colheitas, monocastas e reservas e todos têm um rótulo dominado pelo “homem verde”, símbolo celta que liga o homem à terra e que foi retirado de uma estante de família que faz parte da infância de Eva e, agora, da identidade do projeto há muito sonhado — o nome “Quinta da Boa Esperança”, inspirado no Cabo da Boa Esperança, foi oficialmente registado antes de existir qualquer pedaço de terra.

Paula Fernandes é a enóloga residente. © Marcelo Duarte

A influência atlântica é marca constante nas dez referências de vinhos que nascem na Quinta da Boa Esperança (dos 6,50 aos 17 euros), até porque não há qualquer barreira natural entre a propriedade e o oceano. Tal traduz-se em frescura, acidez e mineralidade. A produção assenta na exclusividade, daí que haja um número limitado de vinhos engarrafados. De referir que as castas tintas trabalhadas são Caladoc, Aragonez, Castelão, Touriga Nacional e Alicante Bouchet; e as castas brancas Arinto, Fernão Pires e Sauvignon Blanc.

Por cá não há adega de design, tal como o enólogo consultor, Rodrigo Martins, e a enóloga residente, Paula Fernandes, fazem questão de salientar. Os dois profissionais mostram-se orgulhosos da adega prática, a funcionar num antigo armazém, com capacidade para produzir anualmente 100 a 120 mil garrafas (por enquanto, ficam-se pelas 50 a 60 mil). Mais aprazível a olho nu é a sala onde dezenas de barricas se empilham umas nas noutras e mostram caminho para uma sala de provas improvisada e cheia de charme — um candelabro antigo cai do teto, ao encontro da mesa redonda de madeira maciça, e várias garrafas aninham-se junto à parede, numa estrutura de metal concebida para o efeito.

Enquanto a chuva miudinha não cessa de cair, Artur e Eva recebem os convidados com um à vontade que os deixa como se estivessem em casa. À carne estufada segue-se a sobremesa feita pela sogra de Artur, enquanto os vinhos viajam de mão em mão. Ao fundo, um gato enrosca-se sobre si mesmo em cima do sofá, à espera que o mau tempo dê tréguas. A esperança foi sempre a última a morrer e, neste caso, a história ainda agora começou.