Reportagem em Barcelona, Espanha

A cara de Francisca Martí contorce-se dolorosamente com dúvidas mal chega ao quiosque das lotarias do Estado no centro comercial Diagonal Mar, em Barcelona. Veio a correr de casa, depois de a prima lhe ter ligado a chorar e aos gritos: “Ganhaste, Francisca! Ganhaste a lotaria! Despacha-te, vai lá!”.

Não é coisa pouca: a lotaria de Natal espanhola, conhecida como o El Gordo, atribui um pouco por toda a Espanha prémios que vão desde os 6 mil aos 400 mil euros por bilhete. Além de ser um dos eventos com maior audiência em televisão a cada ano, todos os jornais acompanham-no em direto nas suas edições online e dão-lhe todo o destaque. Muitos deles, deram prioridade ao sorteio do El Gordo perante a Catalunha, que ainda esta quinta-feira foi a eleições depois dos meses mais conturbados da sua história recente. Mas já lá vamos a essa parte. Primeiro, Francisca.

“Mas como é que tu sabes, mulher?!”, perguntou Francisca à prima, quando esta lhe ligou. “Porque vi na televisão! A decima que compraste ganhou o terceiro prémio, despacha-te!”, respondeu-lhe a prima, ainda aos gritos, como se a voz alta ajudasse a empurrá-la para para fora de casa.

Francisca Martí, no quiosque das lotarias do Estado do centro comercial de Diagonal Mar, pouco depois de saber que tinha ganhado 50 mil euros

Francisca saiu porta fora quase a correr, entrou para dentro do centro comercial, desceu um andar e foi até ao quiosque onde há um par de semanas tinha dado 20 euros por uma decima — assim se chama por as lotarias conterem dez cautelas, que podem ser compradas por inteiro ou em cada uma destas frações mais pequenas. É nela que pega quando encontra os funcionários da loja. Mostra o bilhete a uma das empregadas do quiosque que, ao ver-lhe o 06914 nas mãos, lhe disse que acabava de ganhar 50 mil euros.

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“Não está a brincar, pois não?”, perguntou Francisca, que com 61 anos já leva nove de desemprego. “A minha prima ligou-me, muito aflita, a chorar, a dizer que eu tinha ganhado, que finalmente conseguimos”, contou às funcionárias. “A falta que isto me fazia, vocês nem fazem ideia…”

Desempregada, com 430 euros, a independência ou falta dela não “interessa para nada” a Francisca

Francisca ficou desempregada em 2008, depois de a empresa de camionagem onde era administrativa ter ido à falência. “Desde essa altura que não trabalho”, conta, ainda nervosa. Não tem tido vida fácil. O subsídio de desemprego que recebe não passa dos 430 euros, dos quais grande parte têm sido usados para pagar a renda da casa. As contas de cada mês são difíceis, mas as decisões ainda são mais. “Para pagar as prestações ao banco, tive de passar a comer menos”, diz. Quando saiu do desemprego, tinha 66 quilos. Agora, está nos 43. “Se comesse como antes, ia para a rua.”

Por tudo aquilo que passou nos últimos anos, demorou a acreditar que tinha vencido o terceiro prémio da lotaria de Natal, correspondente a 50 mil euros — mas dos quais serão deduzidos 20% em impostos, equivalente a 10 mil euros, o que acontece desde 2013 a todos os prémios da lotaria nacional espanhola.

E agora, o que vai fazer com tanto dinheiro? “Vou dividi-lo com a minha prima e com um tio meu, que também precisam”, diz. O resto, vai guardar. “Para comer, para pagar a casa e para tapar buracos”, responde.

Na manhã desta sexta-feira, Espanha acordou com a notícia de uma nova vitória eleitoral dos independentistas na Catalunha. O primeiro lugar coube ao Ciudadanos, partido unionista liderado por Inés Arrimadas, mas trata-se de uma vitória que não lhe chega para subir ao poder, já que os partidos defensores da independência reuniram, todos somados, a maioria absoluta no próximo parlamento regional catalão. Entre estes, o maior será o Juntos Pela Catalunha, de Carles Puigdemont, o presidente da Generalitat que Mariano Rajoy destituiu depois da proclamação unilateral de independência.

Francisca não liga a nada disto. “Estou farta dessa conversa da independência. A política, para mim, tanto me faz, não me interessa para nada”, diz, admitindo uma indiferença perante o tema que poucos catalães ignoram — mesmo tendo sido a uma quinta-feira, as eleições autonómicas tiveram uma participação de 82%, a mais alta de sempre na Catalunha. Mas Francisca não foi votar. “Fiquei em casa, porque para mim tanto me faz. Se ganha a Arrimadas, bom para ela. Se ganha o Puigdemont e os seus, então bom para ele”, diz a mulher, de cabelo apanhado e cara vincada pelas rugas. “Eu não quero saber deles para nada”, acrescenta. “Tenho mais com que me preocupar, sabe?”, atira, antes de sair do quiosque, novamente em passo de corrida. São 13h50 e Francisca tem de ir reclamar o prémio ao banco, que fecha dentro de dez minutos.

Mariano Rajoy disse que estava disposto a falar com o próximo presidente da Generalitat — mas não respondeu ao convite de Carles Puigdemont para uma reunião fora de Espanha

À mesma hora que fechou o banco, Mariano Rajoy falou pela primeira vez depois das eleições desta quinta-feira — e poucas horas após Carles Puigdemont lhe ter exigido uma reunião fora de Espanha, para que pudessem negociar o futuro da Catalunha. Em Madrid, o Presidente do Governo de Espanha recusou assumir a derrota ao ponto de se demitir e convocar eleições antecipadas — “depois disto tudo, convocar eleições gerais era só o que faltava” —, deu a entender que não reconhece os independentistas como vencedores das eleições — “com quem teria de me sentar é com quem ganhou as eleições, que foi a senhora Arrimadas” — e acrescentou que fará um “esforço para manter o diálogo” mas que quer que este seja “dentro da lei construtivo, aberto e realista”.

Ou seja, Mariano Rajoy não parece estar disposto a encontrar-se com Carles Puigdemont fora de Espanha e muito menos quererá dar espaço de manobra ao independentismo.

Uma lotaria para independentistas e outra para unionistas

Na Catalunha, há cada vez menos esferas da vida quotidiana que parecem escapar ao binónio unionismo-independentismo. É assim na maneira como se fala — entre os unionistas, o espanhol é a língua de eleição, ao passo que os independentistas costumam comunicar em catalão —, é assim na maneira como se come — a Time Out de Barcelona até fez um guia de restaurantes supostamente independentistas —, e também já é assim no tipo de lotaria que se joga.

Um pouco por toda a imprensa espanhola e catalã — a começar pelo La Vanguardia — surgiram relatos de vendedores de cautelas que indicavam que as vendas para a lotaria de Natal nacional estavam a cair, ao passo que as da lotaria de natal que acontece apenas na Catalunha, conhecida como a La Grossa, dispararam. Na primeira, o dinheiro vai para os cofres do Estado espanhol. Na segunda, é a Generalitat que fica com os lucros.

O quiosque do centro comercial não é exceção. Anabel Morales, responsável pela loja, admite que as vendas caíram “muito” e, daquilo que ouviu falar, as vendas da La Grossas subiram. “É incrível como até aqui a política se meteu”, diz, para depois dizer que é “contra a independência”. “Mas já estou farta disto tudo, sabe?”, diz, para terminar a conversa. Hoje, tem mais com que se preocupar. O seu quiosque vendeu 410 decimas — o que, feitas as contas, equivale a um total de 20,5 milhões de euros que vão encher as contas de todos aqueles que as compraram. Francisca que o diga.