“Ainda há muito campeonato por jogar.”

“O resultado não espelha o futebol jogado, mas há noites assim.”

“Claro que o resultado interessa e hoje estamos mais perto do nosso objetivo.”

O futebol é feito de clichés e todos os que gostam dele sabem que é melhor ganhar do que perder, preferencialmente jogando bem e tendo um jogo sem casos. Mas também todos sabem que há muita coisa que faz parte do futebol que acontece fora das quatro linhas. Ele são e-mails, vouchers, polvos, torresmos & couratos. E também todos sabem que a imperial é a 1€ em todas as roulottes. Se não sabem, deviam saber.

Por isso, esqueçam o sofá e a manta, as mil repetições HD na TV nova, o comentador com e sem cartilha, este é o derby de Lisboa, de Portugal, da Euro… só de Lisboa, OK, e é para se ver no estádio. Ou perto do estádio. Muito perto do estádio. Sim, porque há quem saia mais cedo do trabalho, deixe o seu consorte a refilar em casa (no caso deste que vos escreve nem por isso, tal é a sorte) e encha as roulottes (como manda a lei).

Desde manhã cedo que o Manelito tem a roulotte parada à espera de fanáticos e menos tresloucados. E desde o almoço que saem imperiais frescas, bem geladas, mesmo sendo o terceiro dia de janeiro. Dos jovens que trabalham ali perto aos velhotes que só querem queimar tempo — qual equipa pequena à beira de ganhar um ponto no jogo grande do ano — tudo são boas desculpas para beber uns copos, matar saudades, discutir o 11 inicial, e o “treinador” que insiste em ensaiar umas frases de autoajuda e pouco mais.

São 18h00 e o ambiente nas roulottes começa a aquecer a tarde fria. Ainda são poucos mas já se percebe que este jogo é diferente, que é o primeiro do ano, que pode ser o último para o campeão. A chuva não pára.

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Uma hora depois, as imperiais saem com mais rapidez do que o Benfica sofreu golos na Champions. E olhem que não é coisa fácil. “Mas se fosse fácil não era para nós”, diria o mister. A chuva continua.

Oito horas e o que interessa não passa no Jornal da Noite, é aqui, nas roulottes que se ouvem os mais certeiros prognósticos, que se trocam as melhores ideias sobre o plano de jogo e que me dá vontade de ligar ao Vítória para lhe ensinar umas coisas. “É uma fase” e o pré-jogo é a melhor fase deste jogo que insistem estragar ao marcar para fora de horas. Longa vida à Sport TV, aos programas de segunda-feira à noite, e a todos que percebem bola de bola e que apenas querem atirar farpas ao seu colega de trabalho. Para todos estes aconselho uma noite bem passada nas roulottes, acreditem que é uma experiência diferente, que é aqui que se vive a bola à antiga e que se conhecem pessoas que gostam mesmo disto, pessoas como:

O gajo das roulottes

O Tiago anda nisto desde 2003 e já viu muita coisa. Benfiquista como o pai, veio só para ajudá-lo e não mais saiu detrás da máquina. Por vezes não chega a cerveja, é que não chega mesmo. “Devemos ser o único sítio a ter latas para beber antes do intervalo, mas também devemos ser o único a ir buscar mais cerveja antes da segunda parte. São coisas do Manel…” Ele é benfiquista, garantem. “Sou, sou. Não era, mas depois tornei-me. No estádio velho atiravam-se os cartões lá de cima e isso levava muita criançada ao jogo. Isso era bonito, pá.”

34 minutos e “é uma vergonha, pá!” É falta, claro que é mão, diz o Tiago. Os outros discordam e o ambiente aquece. E com isto dizem-se as verdades, zangam-se as comadres.

O gajo do “é o cachecol do dia a 5 euros”

O Sr. Fernando chegou às roulottes há 30 e tal anos. Mais se calhar. Mas com isto tudo registado é só desde 2000 e picos. “Hoje somos 15, sabe. E até acho bem isto de ter tudo certinho.” É do Sporting, e do Belenenses. Só não é do Benfica. Todavia, hoje até está pelos vermelhos, “é que meti uns dinheiros no empate”. As coisas mudaram muito desde que o pai do Sr. Fernando o trouxe pela primeira vez ao estádio, nesses tempos não havia caixa de segurança nem ameaças de parte a parte. “Antigamente é que era…” E pouco depois já está a confessar que a mulher é que manda lá em casa, que os filhos estão na faculdade, e que isto não é vida para ninguém. E não é.

O gajo do “A gente somos? Agente é da autoridade”

E a noite não se faz para os polícias, que fazem horas e horas para manterem tudo isto na linha. Mesmo quando as bolas passam a linha e os golos não são validados. “Isto está a gravar, menino?” Digo que não mas que gostava de saber algo mais. “Não há muito a saber, isto quem manda são os de intervenção, só estamos aqui para fazer número.” Gostam de futebol, arrisco. “Até gosto de futebol mas aqui não há gostos. Estamos cá para trabalhar.” E servir, digo. Silêncio. E até consigo ouvir o apito para o final da primeira parte.

O gajo das apostas

E os seus amigos. São quatro e não querem dar a cara. Ninguém quer. “Isto é mais pelo dinheiro. E acredita que fazemos uns trocos. Todos temos os nossos clubes mas isso é o menos importante.” Belenenses, Sporting, Benfica e Porto, está feito o quadrado dos três grandes e, no entanto, este jogo é bem mais do que isso. E gostam de futebol? “Isto são só apostas. Não tenho de gostar…” Pois não, não tens de gostar de futebol.

O gajo que está fora de jogo

Kobon Junior tem 20 anos acabados de fazer. Nasceu na Costa do Marfim, viveu em Itália, passou pela Alemanha, Algarve e está agora à porta do Estádio da Luz, à beira de um sonho. No final do jogo ficaram de vir ter com ele, ajudá-lo, dar-lhe umas indicações. Mas Kobon está sozinho, sozinho como tantas outras vezes no passado. Sozinho como gosta de atacar a baliza. Observa, em silêncio, os seus dedos entrelaçados e pensa nos sonhos de cada pessoa que lhe deu uma esperança, uma possibilidade, Kobon, sabe que isto vai acabar por acontecer. Que ser jogador não é fácil, exige muito, demasiado. Toca o telefone, é a rapariga que ficou de vir ter com ele depois da viagem ao Algarve, foi rápida mas Kobon é mesmo assim. “Ela vem aqui ter e depois vamos para casa de um amigo, pode ser?” Pode.

“Gooooooolo!”

Palavra de Manelito. “Isto ainda vai lá. E sem jogar nada.” O jogo acaba pouco depois e as pessoas começam a encher a rua. Uns descem rápido, outros nem tanto. Bifanas, pregos, cachorros, tudo se come, mas a happy hour já devia ter sido. “Já tem algo para escrever?”, perguntam-me. “Olhe que isto de escrever sobre quem cá fica, não lembra ao diabo.” Talvez não, respondo, mas as pessoas são o melhor que a bola tem. Mesmo quando os empatas não marcam nem saem de cima.