Denunciar a nova escravatura infantil foi o objetivo de Maria João Luís para a montagem da peça “150 milhões de escravos”, que encena no Teatro da Trindade, em Lisboa, e que se estreia esta quarta-feira.

Partindo dos números oficiais da Amnistia Internacional, que cifra em 153 milhões o total de crianças escravas no planeta, Maria João Luís construiu um espetáculo para denunciar esta “dura realidade” “de que todos acabam por ser cúmplices, mesmo sem que se apercebam”, como a própria disse à agência Lusa.

Trabalhar o neorrealismo — como já fizera com “O cravo espanhol”, de Romeu Correia, e “Gândara” e “Finisterra”, de Carlos Oliveira — foi o ponto de partida para a construção do drama, elaborado a partir dos textos “Em homenagem aos nossos empregados”, de Mickael de Oliveira, “A Gaivota”, de Anton Tchekov, e “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes, afirmou a atriz e encenadora.

A partir da necessidade de “voltar à terra, à infância e adolescência”, numa viagem de retorno em que se cruzou com “a luta dos pobres”, Maria João Luís constrói em “150 milhões de escravos” uma peça densa, dura e que obriga o espetador a interrogar-se com frequência se não faz parte daquele mundo burguês de que tudo é capaz, apenas para obter os seus intentos.

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Num espaço marcado apenas por uma rampa e por uma paisagem lateral em plástico insuflável — que no final da peça sufocará o elenco –, Maria João Luís põe em cena um drama que muitas vezes se socorre do movimento corporal, secundarizando a palavra sem que com isso deixe de transmitir mensagem.

Numa peça em que a atriz “leva” também ao palco fragmentos de Artur Rimbaud, utilizando a inquietude característica do escritor francês para pôr os atores a expressarem as suas opiniões pessoais sobre a escravatura infantil, Maria João Luís acaba por admitir que, a “determinada altura, sentiu que ninguém se iliba de culpa desta coisa medonha”.

“Aquilo que tentei foi libertar-me da culpa”, disse a atriz, sublinhando que, embora não comungue da mentalidade burguesa que perpassa a grande maioria das personagens da peça, não deixa de ser cúmplice desta realidade “atroz” que é a escravatura infantil.

“Sou cúmplice, porque sou aquela que compra a camisola em que miúdos trabalharam e que compra chocolate, cuja apanha de cacau é quase toda feita por miúdos”, afirmou. Levar as pessoas a questionarem-se sobre que tipo de cumplicidade têm para com esta realidade violentíssima dos tempos modernos, foi outro dos eixos que norteou o trabalho de Maria João Luís.

A ação de “150 milhões de escravos” centra-se numa herdade com trabalhadores clandestinos, onde, a determinada altura, morre um trabalhador menor de idade. Como o proprietário da herdade tem aspirações políticas e não pretende sofrer consequências do incidente, acabam por matar os trabalhadores todos, para omitirem o que se passa na exploração agrícola.

“O que se passa naquela exploração agrícola não difere muito da realidade, porque quem explora a escravatura infantil é capaz de tudo. São grupos capazes de tudo”, sublinhou a atriz. Este trabalho foi ainda, segundo a encenadora, muito duro, já que todos os dias os atores diziam “eu não posso estar a dizer isto, eu não sou isto”.

“Daí que fosse preciso que esta posição dos atores também estivesse na peça. Por isso fui buscar o Rimbaud”, precisou, sublinhando que “era preciso trazer essa zona sanguínea ao espetáculo”, assegurando que “Era vital para mim”.

Maria João Luís disse ainda que, com esta peça, pretende também mostrar que o ser humano não tem qualquer controlo sobre nada. A propósito, citou o exemplo da investigação do processo de adoção de crianças, no âmbito da IURD, sublinhando tratar-se de uma realidade que não se passou em África nem em nenhum país emergente. “Foi em Portugal”, disse.

A peça pretende também pôr as pessoas a pensar além da sua zona de conforto, referiu, “porque enquanto o nosso conforto lá estiver, nós quase não pensamos nisso”, acrescentou. O objetivo é trazer esta obra para a contemporaneidade, transportando as crianças trabalhadoras dos telhais e jovens operários para os dias de hoje, procurando ver quem são hoje “os filhos dos homens que nunca foram meninos”.

A interpretação está a cargo de Beatriz Godinho, Catarina Rôlo Salgueiro, Emanuel Arada, Ivo Alexandre, João Saboga, José Leite, Hélder Agapito, Lígia Soares e Teresa Sobral. A cenografia é de Ângela Rocha, o vídeo, de Inês Oliveira, o movimento, de Paula Careto, e o desenho de som e de luz de José Peixoto e Pedro Domingos, respetivamente.

Coproduzida pelo Teatro da Trindade INATEL e pelo Teatro da Terra, em parceria com a Câmara Municipal de Ponte de Sor e o Museu do Neorrealismo, a peça vai estar em cena a partir de quinta-feira, até 28 de janeiro, com espetáculos de quarta-feira a sábado, às 21h30, e aos domingos, às 16h30.