A Associação Cultural, Recreativa e Humanitária de Vila Nova da Rainha — onde um incêndio este sábado causou a morte de oito pessoas — não estava obrigada a ter porta com barras anti-pânico. No edifício havia apenas duas portas, sendo que uma delas abria para dentro, o que acabou por fazer com que pessoas ficassem amontoadas e encurraladas sem conseguir abandonar o local. Foi preciso um jipe para arrancar a porta e assim permitir a saída das pessoas.

Especialistas contactados pelo Observador garantem que a lei não obrigava à existência de portas com barras anti-pânico, uma vez que o edifício foi licenciado em 1992 — informação avançada pelo presidente da Câmara de Tondela — e o Regulamento Técnico de Segurança contra Incêndio em Edifícios, publicado em Diário da República a 29 de dezembro de 2008, não obriga os edifícios a fazer alterações no que toca à sua arquitetura ou construção. E as portas com barras anti-pânico obrigariam precisamente a isso.

Marco Miguel, engenheiro e especialista de Segurança contra Incêndio da APSEI, diz que o facto de a porta abrir para dentro “tem a ver com a conceção do edifício”. Uma vez que a licença do edifício foi emitida antes de 2008 (antes do regime jurídico), não é obrigatório que a porta abra para fora desde que esteja desimpedida e possa ser aberta com facilidade. “Do ponto de vista legal, se existe outra porta alternativa, esta porta [a que abre para dentro] não se identifica como um problema, desde que haja garantia que ela possa ser aberta facilmente e que não esteja trancada.” Na noite do torneio de sueca, a porta estava fechada.

E ainda que a lei diga que as portas utilizadas por mais de 50 pessoas têm de abrir para fora — na noite do evento estavam cerca de 70 pessoas no edifício –, “esta legislação não é retroativa em termos das disposições construtivas, ou seja, não obriga a que haja uma adaptação”, acrescenta o engenheiro Marco Miguel.

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Também Jorge Rebelo, engenheiro e especialista de Segurança contra Incêndio, refere que as portas com barras anti-pânico não são obrigatórias porque “tem a ver com a parte estrutural do edifício”. Quanto muito, um técnico que fizesse uma inspeção ao local teria de assinalar que havia uma porta que não abria no sentido da saída e “poderia obrigar o responsável a ter medidas compensatórias, a serem determinadas pelo técnico”. Por exemplo, podia obrigar a que a segunda porta do edifício estivesse sempre aberta durante eventos com mais de 50 pessoas.

“Em edifícios e recintos existentes à data de entrada em vigor deste regulamento, onde as características construtivas ou os equipamentos e sistemas de segurança apresentem graves desconformidades com o disposto no presente regulamento, podem ser exigidas medidas compensatórias de autoprotecção mais gravosas do que as constantes deste título, sempre que a entidade competente o entenda”, lê-se na legislação de 2008.

Extintores: obrigatórios ou não?

Contudo, o Regulamento Técnico de Segurança contra Incêndio em Edifícios obriga a que todos os edifícios tenham medidas de autoproteção. Marco Miguel dá como exemplos ter as “portas desobstruídas” e haver uma “organização de segurança“, ou seja, os elementos do staff terem formação e, em caso de evacuação, encaminharem as pessoas para o acesso mais fácil para o exterior.

“As medidas de autoproteção são transversais a todos os edifícios”, independentemente de terem sido construídos antes de 2008, acrescenta Jorge Rebelo, também engenheiro e especialista em segurança contra incêndio.

O responsável de segurança do edifício — o proprietário ou a pessoa que o explora — é quem tem “uma obrigação legal” de cumprir estas medidas de autoproteção e, para tal, tem de contratar um técnico da área (um engenheiro ou um arquiteto) para lhe dizer que medidas tem de implementar. Neste caso, a própria associação recreativa de Vila Nova da Rainha (proprietária do edifício) teria de chamar um técnico para saber que medidas de autoproteção deveriam existir naquele espaço.

Outras das questões que se colocou foi a existência de extintores na associação — o presidente da Associação confirmou ao Observador que o espaço não tinha extintores. Os especialistas, contudo, divergem de opinião no que toca a obrigatoriedade de haver extintores no edifício.

Marco Miguel, especialista de Segurança contra Incêndio da APSEI, explica que em 1992 “havia muito pouca legislação” no que toca a medidas de segurança contra incêndios e “pode dar-se o caso de não haver exigência de medidas físicas [de segurança] contra incêndios nestas associações”. Isto é, podia não ser obrigatório ter, por exemplo, extintores, iluminação de emergência, sinalização e portas com barras anti-pânico.

Jorge Rebelo, por sua vez, refere que a lei não obriga a que se façam “alterações de arquitetura”, mas “isso não significa que os edifícios não tenham de ir sendo atualizados no que toca a equipamentos“. Ou seja, nenhum edifício “está isento de ter equipamentos” como extintores, iluminação de emergência, sinalética e sistema de deteção de incêndios. “A nível de equipamentos, as pessoas têm de os instalar independentemente de ser um edifício anterior a 2008. Se está a explorar o edifício, tem de ter equipamentos”, defende.

Marco Miguel acrescenta que apesar de não ser obrigatório, o técnico que elabora as medidas de autoproteção pode sugerir acrescentar medidas de segurança, seja através de equipamentos como extintores ou até colocar portas com barras anti-pânico.

“Quando as medidas de autoproteção são elaboradas, é boa prática fazer uma avaliação dos riscos e, muitas vezes, propõe-se a adoção de algumas medidas adequadas em função da avaliação do risco”, explica o especialista na APSEI. “Por vezes, até se condiciona a implementação destas medidas com a adoção de novos equipamentos.”

Fiscalização depende da categoria de risco

Mas outra questão se levanta: a quem cabia a responsabilidade de fazer a fiscalização da segurança contra incêndio em edifícios? Tudo depende da categoria de risco.

Marco Miguel explica que um dos critérios de classificação da categoria de risco é o efetivo teórico máximo, isto é, o número de pessoas que teoricamente pode estar no mesmo espaço em simultâneo. Pela descrição que a comunicação social faz do edifício — para dar um parecer completo, o engenheiro teria de ter acesso às plantas do edifício — o especialista da APSEI acredita que se trata de um edifício com risco reduzido (categoria 1) ou moderado (categoria 2). “Sobre aquilo que a legislação define, se for até 100 pessoas, estamos a falar de risco reduzido, se for mais de 100, é risco moderado.”

Já Jorge Rebelo refere que o edifício da associação se enquadra na categoria 1, de risco reduzido.

No caso de se tratar de um edifício com risco moderado, compete à Autoridade Nacional da Proteção Civil (ANPC) ou uma entidade credenciada pela ANPC fazer essa fiscalização. Se se tratar de um edifício com risco reduzido, a fiscalização é da competência da Câmara Municipal ou, caso a autarquia não tenha protocolo com a ANPC, fica a cargo do Comando Distrital de Operações de Socorro (CDOS).

A legislação obriga a que seja o responsável de segurança do edifício a pedir essa fiscalização, de modo a garantir a segurança dos ocupantes do edifício. No caso da associação recreativa, que se enquadra na utilização-tipo VI “espetáculos e reuniões públicas” prevista na lei, isto só se aplica a partir da categoria 2. “Se for um edifício de primeira categoria de risco e após a elaboração das medidas de autoproteção, o responsável de segurança está isento de pedir fiscalizações”, explica Jorge Rebelo.

Contudo, o engenheiro da APSEI sublinha que “a ANPC tem competências, na sua lei orgânica, para fazer ações de fiscalização” por iniciativa própria — caso ache que a segurança das pessoas está em risco ou para verificar se o responsável de segurança do edifício está a pedir as inspeções regulares com a periodicidade devida — ou em caso de denúncia.

A secretária-geral da APSEI sublinha ainda que habitualmente ninguém verifica se o responsável de segurança pede ou não a fiscalização do seu edifício. “Não temos conhecimento que alguém ou alguma entidade tenha sido punida por não ter implementadas as medidas de autoproteção”, disse Maria João Conde ao Observador.