O chocolate, esse alimento que derrete e faz derreter, pode ter um lugar especial e metafórico na vida de muita gente, mas entre os próximos dias 1 e 4 de fevereiro, o recanto vai ganhar forma física no Campo Pequeno, em Lisboa, com a quinta edição de “O Chocolate em Lisboa”.

Nestes quatro dias de goludices, o filho prodígio do cacau vai ganhar destaque especial na programação deste evento que, com o tempo, já se tornou de visita obrigatória por não ser parco na oferta de coisas para ver, fazer e provar: veja-se o exemplo de workshops como o “Vinho e chocolate, o segredo está na origem” — dedicado à harmonização entre ambos os produtos, que será protagonizado pelo crítico de vinhos Fernando Melo, custa 10€ (incluí entrada na feira) e realiza-se dia 3, às 18h — ou o “Delícia de Chocolate com Cremoso de Morango” — pais e filhos são convidados pela chocolatier Céu Carvalho a fazer uma sobremesa em conjunto; custa 15€ (pai e filho) e decorre dia 3, pelas 15h.

Posted by O Chocolate em Lisboa on Thursday, February 11, 2016

Para lá destes exemplos (consulte a programação completa aqui) vão haver demonstrações, palestras e conversas com mais de 20 cozinheiros, produtores e entendidos do assunto como Fabian Nguyen, o pasteleiro chefe do hotel Ritz Four Seasons Lisboa, Joaquim Sousa, da famosa pastelaria francesa Ladurée ou até o chef Nuno Diniz, conceituado cozinheiro e professor na escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa.

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Todas estas atividades já mais que justificam uma visita ao “O Chocolate em Lisboa”, contudo, convém ir preparado. Foi com o intuito de perceber melhor o mundo do cacau e do chocolate que o Observador falou com Odete Estevão, a presidente do Cacau Clube Portugal (organização sem fins lucrativos que desde 2003 se dedica a promover e explicar este universo) e estudiosa da matéria há mais de 24 anos. O objetivo da conversa? Dar a conhecer alguns pormenores e curiosidades sobre o alimento que nasce do cacaueiro, ou, como dizem os cientistas, do Theobroma cacau, terminologia que vem do grego e significa “alimento dos deuses”.

Os originais e o híbrido

“Existem três principais tipos de cacau”, começa por explicar Odete. Excluindo “as milhares de espécies híbridas”, é deste trio que nasce a grande maioria do chocolate que se come no mundo. Há o criollo, o espécimen mais raro (entra em “5% ou menos” dos chocolates que hoje são vendidos) que é tido como sendo “delicado, frágil e muito aromático”. Por outras palavras, é aquele que predominará em qualquer tablete premium que lhe passe pelas mãos.

O irmão deste criollo é o forastero (“é como se um fosse o príncipe e o outro o pajem”, diz Odete, entre risos), variante mais ácida e menos nobre que a primeira. A sua principal vantagem é o facto de ser extremamente resistente a pragas e intempéries, isso justifica a sua popularidade na indústria chocolateira.

Os três principais tipos de cacau.

Finalmente encontramos o cacau trinitário, o único híbrido desta trindade, que ganha essa designação por nascer de um cruzamento entre os dois tipos de cacau originais, junção feita com o objetivo de criar uma nova “estirpe” que conseguisse unir o aroma intenso dos grãos criollos com a resistência dos forasteros.

Se alguma vez se questionou sobre porque é que nunca viu um cacaueiro enquanto passeava pelo país, saiba que isso é perfeitamente natural, já que este é um ser vivo que só cresce e prolifera “junto ao Equador”, onde temperaturas elevadas e muita humidade criam o clima perfeito para se desenvolver.

O rei Tolteca que só queria o bem dos seus amigos

Sobre a origem do cacau em si, Odete explica que apesar de muitos afirmarem que ele só surge “há cerca de 600 anos”, a verdade é que há registos desta planta e produto que somam “mais de quatro mil anos”. Contudo, a história que nos conta sobre o nascimento destas sementes leva-nos à Venezuela e ao Brasil, mais concretamente às margens dos rios Orinoco e Amazonas, locais onde “surgiram os primeiros cacaueiros”, explica.

Esta espécie botânica começa a espalhar-se quando as primeiras tribos sul-americanas descobrem que dava para plantar os “caroços” da fruta do cacau — que eram deixados para trás pelos pássaros que as comiam. Em pouco tempo, o fama deste alimento começa a espalhar-se, chegando primeiro ao México pela mão dos Olmecas, povo que está na origem daqueles a que hoje chamamos mexicanos e que, historicamente, são tidos como os primeiros a domesticar o cacaueiro.

Um cacaueiro. Os grãos de cacau são retirados do interior do fruto. ©ISSOUF SANOGO/AFP/Getty Images

O cacau foi ganhando uma fama tremenda, tornando-se figura central numa série de profecias místicas, sendo consumido, por exemplo, em muitas cerimónias religiosas. Entre os primeiros a transformar o grão de cacau em algo comestível surge a civilização Maia, que adorava uma bebida fria e muito amarga chamada xocolatl — daí o nome que conhecemos hoje.

No meio de tudo isto, Odete recorda uma história curiosa que envolve o rei Tolteca QuetzalCoatl (não confundir com a divindade que tem o mesmo nome). Aparentemente, o governante era um total viciado em chocolate porque acreditava que este “tinha propriedades afrodisíacas e potenciava o vigor sexual”. Para que mais ninguém pudesses provar da sua “poção mágica”, QuetzalCoatl decretou que “só ele e os seus amigos mais próximos” tinham direito a provar esta iguaria.

Ilustração Maia de dois homens a partilharem um copo de xocolatl. ©Codex Zouche-Nuttall

Tudo isto mudou radicalmente com a chegada dos europeus, mais concretamente, com Hernán Cortés. Ao ver a importância que os nativos sul-americanos davam a este produto, o conquistador espanhol fez de tudo para o conseguir trazer para a sua terra natal. Ao ver que os grãos “eram organismos sensíveis e difíceis de transportar em condições”, experimentou torrá-los, técnica que funcionou. Ficou assim um passo mais perto das tabletes e bombons que hoje conhecemos.

“Os primeiros grãos de cacau entraram na Europa por Sevilha”, continua a explicar a presidente do Cacau Clube Portugal. A partir desse momento a semente espalha-se por mais pontos do Velho Continente, sendo Portugal um deles. Ora foram precisamente os portugueses que voltaram a fazer viajar o cacau, levando-o para São Tomé e Príncipe, “introduzindo-o assim no continente africano”, região que atualmente é um dos maiores exportadores deste produto.

Do grão ao bombom há muito que se lhe diga

“Da semente ao chocolate em si há um processo muito complicado pelo meio”, começa Odete por dizer. De facto, hoje em dia é quase impercetível todo o trabalho que existe antes de se deitar a baixo uma caixa de trufas. A especialista começa a explicar o processo já depois dos grãos terem sido colhidos. “A primeira coisa a fazer é a lavagem”, afirma. É neste minucioso primeiro momento que todos as sujidades são retiradas, passando os grãos, depois disso, por uma rigorosa inspeção.

O momento que se segue é a torra dos grãos, fase onde as cascas se separam da semente (depois serão aproveitadas pela industria farmacêutica, por exemplo) e sobra apenas o miolo do cacau. O produto que se obtém nesta fase é depois esmagado e nasce assim a pasta de cacau, “uma espécie de papa” que é uma dos ingredientes base de qualquer receita de chocolate. A partir deste momento acontece um de dois cenários: ou passa-se a pasta por uma prensa, de forma a “separar a manteiga de cacau” — ingrediente essencial na confeção do chocolate — da “parte negra”, componente rica em antioxidantes que assume a forma “de uma bolacha” (é daqui que sai o cacau em pó); ou usa-se a mesma pasta para começar a construir o chocolate.

Por esta altura já se obteve os “ingredientes” necessários e chega a altura de decidir o tipo de chocolate que será feito (negro ou de leite, por exemplo). Odete Estevão explica que “um bom chocolate deve ser composto por 70% de pasta de cacau [é o que lhe dá a cor e o aroma], 20% de açúcar e 10% de manteiga de cacau”, sendo possível adicionar leite, por exemplo, se desejarmos um chocolate desse tipo.

Escolhidos os elementos para o chocolate desejado, passa-se para a chamada fase de “conchagem”, onde todos os ingredientes são colocados numa espécie de batedeira gigante (as pás têm forma de concha, daí o nome) que pode girar entre 9 e 72 horas. “Quanto mais tempo ficar, mais macio e saboroso fica o produto final”, remata. A mistura arrefece e assim que ganha estado sólido chega-se ao momento final: a temperarem.

Fãs do programa Master Chef seguramente já terão visto alguns desafios dedicados a este momento. Na prática, este processo”muito complexo” serve para dar uma tez mais brilhante ao chocolate final, assim como uma textura mais sedosa e crocante. Na prática, o que se faz é derreter, arrefecer e misturar o chocolate de forma metódica — o controlo de temperatura é essencial, já que se trata de um processo de manipulação molecular — para evitar que, por exemplo, a gordura do doce se “separe” e dê origem a um chocolate acinzentado e com uma textura semelhante à da cera. Em jeito de pormenor, saiba que este fase só é necessária se estiver a fazer uma peça achocolatada que vá viver por si, ou seja, se estiver a preparar chocolate para fazer um brownie, por exemplo, não precisa necessariamente de recorrer à temperagem.