Dizer que a história de Francis Ngannou é algo saído de um filme não é uma hipérbole. Há cerca de quatro anos, Ngannou não tinha dinheiro, não tinha trabalho, não tinha casa. Nada. Apenas um sonho: o de se tornar pugilista profissional. Mas, com 26 anos e sem nunca ter praticado qualquer tipo de desporto, o sonho provavelmente não passaria disso. Quatro anos depois, Ngannou está prestes a lutar pelo título de Peso Pesado da UFC, a principal organização de Artes Marciais Mistas (MMA) do mundo.

Francis Ngannou competiu na UFC, a Ultimate Fighting Championship, pela primeira vez em 2015. Era profissional há apenas dois anos quando chegou à organização, e estreou-se com estrondo: Ngannou acertou um uppercut em cheio no queixo do brasileiro Luis Henrique, que simplesmente caiu — knock out. Foi a primeira finalização do atual candidato ao título na UFC, onde já leva uma submissão e cinco KO’s, cada um mais brutal do que o outro. Este fim de semana, Ngannou assina mais um capítulo da sua jornada rumo ao topo, a qual começou há muitos, em Batié, Camarões.

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De Batié para o mundo, sem nada

Quando era novo, Ngannou queria ser algo que lhe puxasse pela cabeça, como advogado ou contabilista. Mas, aos 12 anos, o destino de Francis Ngannou já estava praticamente selado: quando se cresce pobre numa pequena povoação, sem dinheiro para estudos, pouco mais há a fazer do que trabalhar. Foi o que fez, passando os dias numa mina para ajudar a mãe e os irmãos. O pai, que era um lutador de rua famoso nos Camarões, abandonou a família após se divorciar da mãe. Num cenário destes, e embora Ngannou já sonhasse, não havia espaço ou tempo para desporto ou qualquer outro tipo de lazer.

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Em Batié, a vida era pouco mais do que acordar e trabalhar para poder comer. “É algo que a maior parte das pessoas não consegue compreender”, disse Ngannou em entrevista ao site MMA Fighting. Durante anos, Ngannou foi confrontado com a possibilidade de vir a acartar baldes de areia de um lado para o outro da mina para o resto da sua vida. Até que um dia, após anos a considerá-lo, o camaronês decidiu ir embora. Ia à procura do sonho, mas não sabia bem onde.

Família e amigos, os poucos que tinha, disseram que era maluco, que o resto do mundo seria ainda mais duro do que a vida nas minas. Mas Ngannou estava decidido, e em 2013 foi-se embora dos Camarões, sem destino. Acabou em Paris, onde a vida, como lhe tinham dito, não se tornou mais fácil.

Parou em Paris só para descansar e acabou lutador

Em França, Francis Ngannou parou para descansar e planear o próximo passo. Como não tinha nada, viu-se obrigado a dormir nas ruas de Paris. Foi assim durante dois meses, até que encontrou uma organização que lhe dava um sítio onde dormir em troca de voluntariado. A situação foi melhorando e o camaronês acabou por encontrar um sítio onde treinar boxe, a razão pela qual tinha saído dos Camarões.

Foi então que a vida de Francis tornou a dar uma volta: o ginásio onde treinava ia fechar. Em conversa com outros voluntários da organização, Ngannou revelou que estava à procura de um sítio para treinar, que se queria tornar um pugilista profissional. Um membro da organização decidiu ir falar com um treinador, explicando-lhe que havia um homem com 1 metro e 95 e mais de 100 kg a fazer voluntariado que queria treinar boxe, mas que não tinha meios financeiros para o fazer.

“No dia seguinte vi um homem enorme à entrada do ginásio e soube logo que era o Francis”, contou Fernand López, treinador que acolheu o atleta. Apesar de o nome não o indicar, López é também ele camaronês, algo que lhe permitiu “perceber um bocado” daquilo por que Ngannou tinha passado. Trabalham juntos desde o dia em que Francis Ngannou entrou pela porta do seu ginásio, o MMA Factory.

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Mas Ngannou, que saiu dos Camarões com o boxe na mente, não queria nada com as Artes Marciais Mistas. Não queria pontapés, não queria luta greco-romana, não queria Jiu-Jitsu Brasileiro. Mas lá ia treinando qualquer coisa na modalidade, muito por pressão e influência do treinador. Em França é díficil obter uma licença para lutar boxe profissionalmente, pelo que Fernand López foi encaminhando Ngannou para o MMA, modalidade em que o lutador podia ganhar mais dinheiro e subir nos rankings mais rapidamente.

Apesar de não ter intenções de lutar MMA profissionalmente, Ngannou concordou em participar num torneio profissional para ganhar algum dinheiro, apenas três meses depois de ter começado a treinar. Francis venceu o primeiro combate por submissão, mas não foi a vitória que lhe deu o gosto pela modalidade — foi a derrota que veio depois.

No segundo combate do torneio, um mês após o primeiro, Francis perdeu por decisão unânime dos juízes. O lutador decidiu que a sua carreira enquanto lutador de MMA não podia terminar em derrota. Decidiu continuar, e desde então que nunca mais perdeu. Quatro vitórias, dois KO’s e duas submissões depois, a UFC bateu à porta.

“O toque da morte”

Desde que luta na principal organização de MMA do mundo, Francis Ngannou não mostrou ser nada menos do que absolutamente imparável. Ngannou, dizem comentadores e analistas, tem aquilo a que chamam “o toque da morte” — quando o camaronês acerta “limpo” num adversário este cai, inconsciente. Deixa de ser capaz de continuar. Foi assim com todos os adversários na UFC, com exceção de Anthony Hamilton, que finalizou através de uma Kimura (uma chave de braço que aplica pressão na articulação do ombro).

Em maio de 2017, após cinco vitórias na UFC, Francis Ngannou decidiu mudar-se para Las Vegas, a capital mundial do combate, para se “preparar para o próximo nível”, escreveu o camaronês no Twitter.

Uma oportunidade de competir pelo título de Peso Pesado da UFC estava à vista. Para lá chegar, Ngannou teria de enfrentar o teste mais difícil da sua carreira — um combate contra Alistair Overeem, um dos lutadores mais experientes e condecorados da história do MMA, a 3 de dezembro.

Dentro do octógono de nada serviu o palmarés de Overeem. Ngannou pô-lo a dormir, como fez com tantos os outros. Passados um minuto e 42 segundos da primeira ronda, o camaronês conectou com um uppercut de esquerda por baixo do queixo do holandês, cujo corpo endureceu imediatamente e caiu no tapete. Tinha sido um dos KO’s mais devastadores da história da modalidade. Ngannou ia lutar pelo cinturão.

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O combate contra o campeão, Stipe Miocic, um dos melhores Peso Pesado da história do desporto, ficou marcado pouco tempo depois, para o dia 20 de janeiro (madrugada de 21, em Portugal).

Há pouco mais de quatro anos, para o resto do mundo, Francis Ngannou não era ninguém. Este fim-de-semana pode tornar-se o “Baddest Man on the Planet”. Já só basta acertar uma vez.