Os Jogos Olímpicos de Amesterdão, em 1928, tiveram um grande simbolismo para o movimento feminino que, há 90 anos, deu um passo muito importante em termos evolutivos: numa reunião que contou com a presença de dois dirigentes portugueses (José Pontes e o conde de Penha Garcia, por curiosidade), ficou deliberado que “apenas os desportos violentos que lhes retirassem a natural gracilidade” seriam vetados a mulheres. Assim, e depois do tiro ao alvo, da ginástica e da natação, entraram no Estádio Olímpico via atletismo. Foi histórico.

Foi em Amesterdão que Johnny Weissmuller, que ficaria mais conhecido na história como ator no papel de Tarzan, confirmou a hegemonia na natação que começara em 1924 (onde além de três ouros ainda ganhou um bronze no torneio de polo aquático). Foi em Amesterdão que Ethel Catherwood venceu o concurso de salto em altura com 1,59 metros embora se tenha tornado “mediática” por ser o centro das atenções dos fotógrafos pela beleza de miss e por ter dito que “preferia tomar veneno do que entrar em películas de Hollywood”.

Foi em Amesterdão que Percy Williams e Boughera El Ouafi dominaram a velocidade e a maratona antes de terem fins trágicos. Foi em Amesterdão que Betty Robinson ganhou a prova feminina dos 100 metros antes de um grave acidente que a impediu de competir em 1932 mas que não impossibilitou que recuperasse o ouro em 1936.

Foi em Amesterdão que Portugal ganhou a sua segunda medalha olímpica de bronze, com Mário de Noronha, Paulo d’Eça Leal, Jorge de Paiva, Frederico Paredes, João Sesseti e Henrique da Silveira a terminaram a prova de espada por equipas na esgrima no terceiro lugar, apenas atrás de Itália e França. E foi em Amesterdão que Carla Marangoni conquistou a medalha de prata por equipas em ginástica.

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Em condições normais, e tratando-se até de uma prova constituída apenas por equipas de cinco países, o feito não parece ter uma especial relevância. Mas ganhou-a, com o tempo. E ficou marcada para sempre.

Nascida em Pavia, Carla, também conhecida em alguns meios por Clara num erro que se prolongou no tempo, ganhou a medalha em Amesterdão com apenas 12 anos, numa equipa que contava ainda com Bianca Ambrosetti, Lavinia Gianoni, Luigina Giavotti, Virginia Giorgi, Germana Malabarba, Luigina Perversi, Diana Pizzavini, Luisa Tanzini, Carolina Tronconi, Ines Vercesi e Rita Vittadini. 11 anos antes da Segunda Guerra Mundial, a Itália foi apenas superada pelo conjunto da Holanda, ficando à frente de Grã-Bretanha (bronze), Hungria e França.

O feito hoje, por exemplo, não poderia ser repetido: desde que a jovem romena de 14 anos Nadia Comaneci ganhou em Montreal (1976) com uma nota 10 perfeita, o limite mínimo para a participação de atletas nos Jogos Olímpicos passou a ser de 16 anos. Mas, chegados a 2018, Carla Marangoni era a medalhada olímpica mais velha com 102 anos. Morreu esta quinta-feira, de acordo com informação veiculada pelo Comité Olímpico Italiano.

Adolph Kiefer, o americano que ganhou os 100 metros costas em 1936, era o que mais se aproximava da transalpina, tendo falecido no ano passado com 98 anos. E ainda houve o caso de Walter Walsh, que não ganhou medalhas na prova de pistola a 50 metros (12.º lugar) mas tornou-se famoso por ter morrido em 2014 com 106 anos, após uma carreira de sucesso na Marinha e como um dos melhores agentes do FBI. Mas Carla Maragoni, a antiga campeã que se mostrava emocionada por “dar sempre alento aos atletas italianos antes de cada edição dos Jogos”, também tem uma história muito maior do que aquela que a coroou no plano desportivo.

Irá permanecer para sempre como uma inolvidável protagonista da história do desporto italiano”, resumiu o Comité Olímpico Italiano na comunicação da sua morte.

Como conta o Le Parisien, e já depois de ter deixado a carreira de ginasta, Carla Marangoni foi uma das primeiras mulheres em Itália a passar no exame da carta de condução e, também, das habilitações necessárias para poder comandar um barco. Em paralelo, ficou também conhecida por, ao contrário do que era normal na altura, nunca ter casado. “Por escolha”, contou em entrevista. Em 1981, perdeu o sobrinho Luigi, que era diretor do hospital policlínico de Milão, assassinado pelas Brigadas Vermelhas: após várias ameaças por ter denunciado os autores de um plano de sabotagem na unidade médica, foi intercetado por quatro homens.

Aos 102 anos, era a única sobrevivente dos Jogos de Amesterdão em 1928. A medalha de prata que conseguiu foi a primeira do desporto feminino italiano”, destacou o Comité Olímpico Internacional.