Título: “Eles Eram Muitos Cavalos”
Autor: Luiz Ruffato
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 190

Compreender a escolha das epígrafes de Eles Eram Muitos Cavalos é talvez a melhor forma de se começar a compreender o próprio livro, que Luiz Ruffato prefere definir como uma instalação literária em vez de um romance. Antes de entrarmos no livro, encontramos um excerto do Salmo 82 e do poema “Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência”, de Cecília Meireles. No poema da poeta brasileira, fala-se dos cavalos que transportaram poetas, magistrados e sacerdotes, mas que foram hoje inteiramente esquecidos:

“Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe seus nomes,
sua pelagem, sua origem”

O salmo 82 é uma invectiva contra a justiça terrena, que prejudica os fracos em detrimentos dos fortes, perguntando o salmista “Até quando julgareis injustamente,/ sustentando a causa dos ímpios?”

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O projecto de Luiz Ruffato é então uma tentativa de dar nome àqueles que nunca o têm e de denunciar as injustiças de São Paulo e, por extensão, do mundo. Luiz Ruffato descreve-se aliás sempre como o filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira analfabeta, como um escritor que vê na literatura uma forma de modificar o mundo, modificando cada um dos leitores. Ruffato vai até mais longe ao dizer, numa entrevista ao escritor Rinaldo Fernandes:

“Tive uma epifania ao ler meu primeiro livro e percebi que dali para a frente nada mais seria igual. A realidade brasileira se impõe a mim, porque o que me move é o olhar da indignação. Não sou cúmplice da miséria que se alastra pelo país, não sou cúmplice da violência, filha do desenraizamento, que toma o Brasil”.

Escaldados por escritores-profetas que, ofuscados pela luz divina, fazem dos seus livros panfletos e das suas personagens denúncias, receamos. No entanto, o valor de “Eles Eram Muitos Cavalos” vai muito para além do da simples reportagem das injustiças muito concretas e gritantes de São Paulo, da corrupção, do racismo, da violência ou da hipocrisia.

Eles Eram Muitos Cavalos passa-se todo no dia 9 de Maio de 2000 em São Paulo e contém sessenta e nove pequenos contos, cuja unidade vem, mais do que da cidade ou do dia (muitos dos contos não parecem passar-se propriamente numa data específica), de uma miséria comum. Com muito raras excepções, todas as personagens têm direito ao seu quinhão de infelicidade, todas elas foram de alguma maneira empurradas pela cidade para uma ou outra forma de desgraça. Num dos últimos contos do livro, diz-se de uma personagem que “no porão guarda um marido que acabou louco de bêbado pelos bares mais sujos da periferia de São Bernardo” (página 166).

O que Luiz Ruffato nos quer sempre mostrar é que, em São Paulo, todas as pessoas guardam alguma coisa no porão. Mesmo nos contos em que somos levados a crer que se narra uma possibilidade qualquer de felicidade são destruídos no final pela revelação de que essa felicidade já passou. Em “Crânio”, conta-se a história de um rapaz da favela que se consegue elevar acima dessa podridão e se refugia na literatura (que como já vimos, é para Ruffato uma possibilidade de salvação), apenas para, nas últimas linhas, sermos informados de que este mesmo rapaz foi espancado brutalmente sem qualquer motivo pela polícia na noite anterior; em “Malabares”, lemos a história do dia em que uma prostituta foi tratada com respeito e carinho por um cliente que só lhe quis oferecer roupas, levar a uma festa e apresentá-la aos amigos, para sabermos que esta história serve de refúgio a essa mesma rapariga em noites como a deste 9 de Maio em que foi levada para um motel por um cliente que “quer porque quer que eu dê pra ele e pros dois amigos de uma vez só, pinto na boca, pinto na buceta, pinto no cu, pensam que sou, meu deus, o quê?, se eu não fizer o que eles mandam vão me encher de porrada (…) e sempre que acontece uma coisa ruim assim eu lembro aquele dia, o Shopping Iguatemi, o bufê em Moema, aquele restaurante na rua Oscar Freire, onde provavelmente esses putos nunca entraram, nunca entraram nem nunca vão entrar, nunca vão entrar…”.

O mérito maior de Luiz Ruffato não está, no entanto, no activismo político mas na sua competência literária, evidente em contos como “Era Um Garoto”, “Ratos” e “Chegasse o Cliente” (este último um digno herdeiro de “Construção”, de Chico Buarque), mas evidente também em passagens como as em que descreve um homem silencioso e zangado com o mundo como alguém que “no seu bunker de silêncio, [nos] fuzila a todos” (página 164), ou em neologismos como o que usa para descrever um cão que acompanha fielmente um mendigo pelas ruas de São Paulo, ao dizer que o cachorro “acompanhava madaleno a via-sacra do seu dono” (página 34).

Este projecto de desanonimização dos habitantes de São Paulo no livro de Ruffato leva ainda a que o escritor procure sempre novas formas de descrever as suas personagens, o que faz com que quase todas as sessenta e nove histórias sejam escritas com recurso a técnicas diferentes, sendo que mesmo nas mais excêntricas (horóscopos, preces à deusa Lua, diplomas de baptismo na Igreja do Evangelho Quadrangular) o mote parece ser sempre uma tentativa de resposta à miséria e ao desespero. Talvez o exemplo mais perfeito disso mesmo sejam os três contos com o título de “Na Ponta do Dedo”, onde lemos a página de classificados do dia, colocando-no na posição de alguém que procura, num dos casos, um emprego de maçariqueiro, noutro, um companheiro amoroso e, no último, uma prostituta. Contudo, em contos como “Crânio”, esse experimentalismo não traz grandes vantagens narrativas.

A supremacia do escritor em relação ao activista político não é, apesar de tudo, completa ao longo do romance. Ruffato faz de todas as personagens ricas ou com poder pessoas depravadas, corruptas ou criminosas. Essa visão condenatória de todos os poderosos parece vir precisamente do olhar de indignação de Ruffato que, não querendo ser cúmplice da miséria, acaba por encadear o escritor. Só essa tal cegueira momentânea trazida pela indignação pode justificar que, em menos de duzentas páginas, Ruffato repita tantas enumerações do tipo de pessoas que se encontra nas ruas de São Paulo. Ainda que essas repetições sirvam o propósito de dar uma imagem da visão que o escritor da cidade, torna-se incomodativo ler, em nove contos diferentes variantes da enumeração que Ruffato faz dos marginalizados paulistas, pouco diferentes da que se encontra em “O Evangelista”:

“Desempregados, bêbados, mendigos, drogados, meninos cheirando cola, fumando crack, batedores de carteira, batedores de celular, batedores de cabaça, aposentados, velhacos”.

Ainda assim, a escrita de Ruffato nunca se deixa dominar inteiramente pela indignação. Luiz Ruffato é, como diz Caetano Veloso em “Triste Bahia”, bandeira branca enfiada em pau forte.