Cansado, mas desafiante e provocador, o presidente da Junta de Freguesia da Estrela, Luís Newton (PSD) começou a Assembleia de Freguesia de terça-feira à noite ao ataque à oposição: queixou-se de “insinuações insidiosas” e de “acusações falsas”. Em três horas de reunião, Newton irritou-se, teve “uma branca”, falou em “chicotes” e quartos escuros, mas tinha as respostas para a oposição guardadas na manga. Sobre a razão de quadruplicar os gastos com deslocações, explicou que, se for à China, desta vez terá de ser a junta a pagar.

Quanto à lista de avençados que a oposição pedia há meses, publicou-a sem destaque no site da junta e justificou-se perante PS, CDS e PCP. Ainda assim, nessa lista não é possível verificar quanto ganham ao certo os avençados nem é possível perceber como são distribuídos os 1,3 milhões de euros em avenças que a junta vai gastar em 2018. Sobre a não publicação dos contratos da junta no portal Base, Newton tinha para mostrar a divulgação de mais de cem contratos em cinco dias, alguns com quatro anos de atraso. Ainda assim, o objetivo foi alcançado: o orçamento da junta da Estrela foi aprovado com os votos a favor do PSD (5), a abstenção do PS (4) e o voto contra de CDS (3) e PCP (1).

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Newton conseguiu condicionar a oposição. Sem que estivesse previsto, o presidente da Junta pediu a palavra para, numa declaração de cinco minutos, rebater as declarações públicas da oposição sobre a forma como tentava esconder onde iria gastar 2,6 milhões de euros em pessoal em 2018.

O autarca lamentou que, nas últimas semanas, tenha sido “visado em insinuações insidiosas”. Luís Newton disse que “desde a primeira hora” faz questão de exercer as “funções com a maior transparência” e que “prova disso mesmo é a disponibilização no site da junta do espaço Portal da Transparência, onde a junta colocou toda a informação que não está disponível no Portal Base.” Ora, basta uma ida a esse Portal da Transparência para perceber que ali se encontram 103 documentos e que nem todos correspondem a publicações do tipo das que costumam ser publicadas no site Base.gov.

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Luís Newton continuou depois a dizer que “é falso que a Junta de Freguesia não preste informações sobre o quadro de pessoal desde 2014”. Fê-lo “em 2015 por solicitação da própria assembleia”, argumentou. Mas Newton ignorou aqui que o mesmo lhe foi pedido em 2016 e em 2017 e que os dados que cedeu em 2015 estão mais do que desatualizados. Ainda assim, fez questão de dizer que esta foi “uma iniciativa sem paralelo” e nunca feita por outras juntas de freguesia.

O presidente da junta disse ainda ser falso o que “um jornalista chegou a escrever (…) que os beneficiários de muitas das contratações polémicas são militantes do PSD”. Basta uma breve pesquisa pelos contratos publicados no site Base (antes e depois da última semana) para verificar que há vários militantes do PSD contratados para a junta de freguesia.

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Como 100 contratos apareceram no portal Base em três dias úteis

Logo na intervenção inicial, Newton admitiu que a junta teve “problemas com a publicação de contratos no Portal Base” ao longo dos últimos quatro anos e meio, mas que passou as “últimas semanas a tentar resolver a situação”. Tudo, garante Newton, em nome da transparência. O que é certo é que entre outubro de 2013 e 25 de janeiro de 2018, a junta só publicou 47 contratos no site Base.gov. Mas, em três dias úteis, mais do que triplicou esse número: na segunda-feira ao final do dia já eram 110 os contratos publicados e, na terça-feira à noite, quando ocorreu a Assembleia de Freguesia, eram 156.

Newton guardou a informação para deixar a oposição sem argumentos. Mas os contratos no Base estão longe de estarem publicados de acordo com os trâmites normais dos ajustes diretos. Muitos destes ajustes não têm um documento PDF em anexo com o contrato — fac-simile do documento oficial –, outros não têm o nome completo da pessoa contratada (mas apenas o primeiro e o último) e aqueles que têm um documento anexo carregado são apenas de minutas de contrato não assinadas e com algumas rasuras. Além disso, há contratos publicados apenas com um ano de atraso, mas outros têm quatro anos de atraso.

Mesmo com todas as falhas nas justificações que deu, Newton apresentou-se como a vítima de um ataque sem justificação da oposição e lamentou: “Que não sintam confiança para dar segurança a este executivo para cumprir os seus compromissos, eu consigo aceitar. Agora que transformem esse intolerância em ataques de carácter com insinuações graves, isso já não posso aceitar”.

Deslocações quadruplicam. Justificação: Huaweigate

As deslocações e estadas dos órgãos do executivo (que incluem o gabinete do presidente da junta) será quatro vezes maior em 2018, em relação ao que foi orçamentado em 2017. Passa de 3 mil euros para 12 mil euros em viagens a realizar durante um ano. A oposição considera o valor exagerado e pediu que presidente justificasse. Sofia Cordeiro, eleita nas listas do PS para a assembleia de freguesia, considerou óbvio que exista uma verba para o presidente se deslocar ao representar a junta de freguesia, mas questionou o presidente sobre se “há algum planeamento que justifique este valor”, já que se trata de uma “autarquia local”.

Luís Newton disse que teve por base o “modelo provisional de anos anteriores”. O autarca explicou que “a junta de freguesia tem sido convidada em vários momentos para fazer apresentações ou participar em conferências que decorrem em várias cidades, quer a nível nacional, como a nível europeu, já foi assim no mandato anterior e há a expectativa que continue porque continua a desenvolver soluções tecnológicas a nível da modernização administrativa tem gerado algum interesse”.

O presidente da junta de freguesia da Estrela fez questão de lembrar o chamado “Huaweigate”, caso noticiado pelo Observador durante o verão e que está a ser investigado pelo Ministério Público. Newton foi então à China a convite da empresa de tecnologia Huawei. Por todo esse impacto mediático (e por essas viagens serem alvo da justiça), Newton diz que agora terá de ser a junta a custear as deslocações:

Ainda para mais porque agora parece ser particularmente evidente que se pretende que em momento algum a junta se desloque a expensas de terceiros e, portanto, nós nessa matéria, se o presidente for novamente convidado para ir à China, irá ser a junta desta vez que irá avaliar se paga ou não paga”.

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Horas mais tarde na mesma reunião, Bruno Mascarenhas, membro da assembleia eleito pelo CDS, lamentou essa atitude: “Há pouco, o senhor presidente do executivo referia-se de uma forma jocosa [ao caso das viagens]. Não vejo onde há piada nisso, porque de facto é um tema que está a ser analisado e escrutinado na praça pública, relativamente às viagens e ao valor que gasta nas viagens.” E criticava a quantia: “Queria dizer-lhe que tenho uma atividade empresarial em que semanalmente tenho de ir pelo país e pelo mundo. E vou semanalmente. E às vezes mais do que um sítio. E o valor não se aproxima sequer deste que está inscrito.”

O valor são 12 mil euros durante o ano. Ou seja: mil euros por mês. Na resposta, Newton foi duro com o centrista, dizendo que era inadmissível comparar “as suas viagens individuais” com as declarações da junta. Lembrou ainda que o valor não era para uso exclusivo do presidente. Newton acusou ainda Bruno Mascarenhas de ser “desatento” e que não o “viu muito” nos últimos quatro anos.

“Parece que há um quarto escuro em que o presidente chicoteia os funcionários”

O presidente de junta manteve o clima de crispação com o eleito do CDS quando discutiram o quadro de pessoal da junta. Luís Newton atirou: “Percebo que esteja desatento, que esteja a fazer um discurso para a cloud, agora insinuar que o presidente da junta gere de uma forma abusadora ou quase terrorista os seus funcionários (…) Percebo que não ligue boi à Assembleia de Freguesia. Mas quem o ouve falar até parece que tem um rol de funcionários que se queixa de que há aqui um quarto escuro em que o presidente chicoteia os funcionários que não concordam com ele”.

Ao longo da reunião, a oposição continuou a insistir na lista de avençados, que pedia desde o final de 2017. Luís Newton sempre se recusou a dar os nomes das pessoas, chegando a alegar em anteriores reuniões que estava em causa a privacidade de pessoas que recebiam avenças muito baixas. No entanto, sem que a oposição soubesse, Luís Newton colocou um documento em formato PDF com a lista de avençados na área de “Transparência” do site da junta de freguesia. Na 35ª linha de uma listagem de documentos, podia ler-se: “Lista avençados por área de intervenção”. Nesse documento consta o nome de 123 pessoas entre assistentes operacionais, assistentes técnicos, técnicos superiores, monitores e professores. São explicadas as funções, mas não quanto ganha cada um.

A forma como o documento foi colocado, em data incerta (que Newton não quis indicar) no site da junta de freguesia. Na imagem, o sublinhado a amarelo foi colocado pelo Observador. Para quem vai ao site, o documento passa despercebido.

Durante a reunião, Sofia Cordeiro (PS) não encontrava o documento. Então, Newton ofereceu-se para abrir o mesmo no telemóvel da sua adversária nas últimas autárquicas. E conseguiu. Sofia Cordeiro ficou sem argumentos, mas lamentou a “falta de respeito” por Newton não ter enviado o documento previamente aos membros da Assembleia de Freguesia. Newton voltou à ironia, dizendo ser “delicioso” que agora o estivessem a criticar por ser transparente de mais.

No fim, o orçamento da junta de freguesia foi aprovado. O PSD não tem maioria e necessitava, pelo menos, da abstenção do PS. Foi o que aconteceu: CDS e PCP votaram contra, mas o PS viabilizou o orçamento.

Este artigo foi objeto de um Direito de Resposta de Luís Newton, que pode ler aqui.