É possível Vieira recusar ser constituído arguido?

Não. Embora o advogado de Luís Filipe Vieira insista que o presidente do Benfica “não é arguido” — pelo simples facto de que essa informação “não consta do processo, e o que não consta do processo não existe” — a verdade é que, a partir do momento em que a Procuradoria-Geral da República confirma que determinada pessoa é arguida, é-lhe apenas comunicada a sua condição.

“Se a PGR, leia-se o Ministério Público, que é o titular desta fase processual, diz que é arguido, então é porque é arguido”, diz fonte judicial ao Observador.

Ou seja, mesmo que Luís Filipe Vieira se tenha recusado a assinar o mandado de busca judicial e o auto da constituição de arguido (que o sujeita a termo de identidade e residência), não é isso que o impede de ser arguido.

Questionado pelos jornalistas esta quarta-feira, o advogado João Correia recusou-se a confirmar se Vieira tinha ou não assinado os referidos papéis — “não sei, não presenciei, não confirmo” –, e lembrou que as buscas não têm necessariamente de ser feitas na qualidade de arguido. “A minha casa pode ser alvo de buscas porque alguém se lembrou de lá pôr uma bomba, não é por isso que eu sou arguido”, exemplificou.

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Certo é que a PGR confirmou que Luís Filipe Vieira tinha sido constituído arguido e, ao Observador, advogados e juízes são unânimes na ideia de que a assinatura ou não assinatura do auto não impossibilita a passagem à qualidade de arguido. “A partir do momento em que é notificado, é-lhe comunicado que foi constituído arguido”, diz o advogado Ricardo Sá Fernandes, sublinhando que “a história parece mal contada”, porque “nunca se viu” uma pessoa recusar-se a assinar os autos. “É estranho porque o facto de uma pessoa ser constituída arguida até a protege e dá-lhe direitos”, acrescenta.

O ex-bastonário da Ordem dos Advogado e eurodeputado Marinho e Pinto partilha da mesma opinião:

“Esta história deve estar mal contada, porque a constituição de arguido não depende da vontade do suspeito”.

[Veja no vídeo as diferenças entre os casos judiciais dos presidentes de Benfica, Sporting e FC Porto]

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O que acontece se recusar assinar o documento?

O cenário é estranho para as várias fontes contactadas pelo Observador, que, por isso, respondem num plano hipotético. “Se a pessoa for notificada, e se tem um mandado para a constituição de arguido, quando muito é uma questão de desobediência. Se foi assim, o que custa a acreditar, deve lá estar no processo uma nota a dizer que se recusou a assinar, mas não deixa de ser arguido”, teoriza o advogado Sá Fernandes.

Outra fonte judicial contactada pelo Observador admite que Luís Filipe Vieira pode “impugnar essa constituição de arguido”, mas é o máximo que pode fazer:

“Pode invocar uma nulidade que afete essa constituição. Para isso, tem de arguir processualmente junto do juiz de instrução e o juiz determinará o que tiver de determinar nessa matéria”.

Não é, no entanto, isso que parece estar em causa. Embora insista que no processo não consta a informação de que Vieira é arguido, o advogado do presidente do Benfica também admite que “quando for constituído arguido não há drama nenhum, é arguido”.

João Correia é o advogado de Luís Filipe Vieira

Os processos que o juiz Rui Rangel terá garantido influenciar podem ser reabertos ou anulados?

É difícil, porque é preciso provas novas. Mas vamos por partes. Rui Rangel é suspeito de quatro crimes de tráfico de influência por alegadamente ter prometido influenciar o resultado de alguns processos. Ao Observador, fonte judicial diz que “pode haver uma revisão dos processos se houver provas de condenação que transitem em julgado de que essa influência aconteceu”. Porém, acrescenta que “isso é demasiado académico porque, se essa situação estiver sequer a ser equacionada, os juízes influenciados também teriam de ser arguidos”. Algo que, pelo menos para já, não aconteceu — não está, portanto, em causa a legalidade das decisões.

A mesma fonte explica ainda que, mesmo no caso de ter havido influência, isso não retira validade às sentenças dos juízes que Rui Rangel possa ter influenciado. “É crime eu ser pago para tentar convencer outro a optar por uma determinada via doutrinal ou jurisprudencial. Mas isso não afeta em nada a opção doutrinal que se possa ter tomado, que até pode estar completamente correta”, diz.

Marinho e Pinto sublinha a mesma ideia, recorrendo a um exemplo extra-judicial: “Um professor recebe um presunto do pai de um aluno para ele passar. O professor passa o aluno. O professor até pode ter recebido o presunto, o que é crime, mas isso não invalida que o aluno não tenha tido mérito para passar”. Ou seja, o facto de o juiz poder ter sido alegadamente influenciado pode não significar que a decisão judicial iria ser outra.

“A possibilidade de pôr em causa decisões passadas é muito remota”, afirma ao Observador o secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes, João Paulo Raposo.

Raposo explica que a justiça prevê a prescrição dos processos (em função da passagem do tempo ou da decisão definitiva) precisamente para não colidir com outro princípio básico do estado de Direito que é a “segurança”. É isso que faz com que, mesmo que muitos anos mais tarde se perceba que a justiça não foi bem feita naquele caso, “não podemos reabrir os processos porque seria pior para a sociedade”, explica. O princípio não é estanque, havendo “válvulas de escape” que permitem a revisão dos processos já fechados, mas isso só acontece em “situações limite”.

E por que razão esta não pode ser uma situação limite? É pouco provável que o seja porque os crimes de que o juiz Rui Rangel é suspeito — recebimento indevido de vantagem ou tráfico de influências — são crimes que se consumam “sem necessidade concreta de prova”. Ou seja, é difícil encontrar prova válida que leve à anulação dos processos ou à reabertura dos casos — e as normas de revisão de sentença só se aplicam se houver prova nova. “Não é preciso demonstrar que o juiz decidiu assim porque recebeu aquilo, e que se não tivesse recebido aquilo tinha decidido de outra forma”, diz o juiz João Paulo Raposo, explicando que não havendo provas novas não há a tal “válvula de escape” que permite a reabertura dos processos.

Além de que, sublinha, o Tribunal da Relação “decide em coletivo, e isso importa não esquecer”. Em causa nestes processos (onde se inclui, por exemplo, o caso João Vieira Pinto), estão promessas de influência em processos onde Rui Rangel não era o juiz, como o Observador explica neste especial.

Operação Lex. As quatro promessas que colocaram Rui Rangel sob suspeita

E todos os outros processos em que Rangel esteve envolvido como juiz? Pode pedir-se nova apreciação?

É ainda mais difícil. Como explica o advogado Ricardo Sá Fernandes ao Observador, “se um juiz comete um crime na prática de um processo, o processo é objeto de revisão”, estando isso previsto na lei, através da causa de revisão de sentença. “Há causa de revisão de sentença quando outra sentença tiver dado como provado o crime cometido pelo juiz” — qualquer que tenha sido esse crime. A questão é que, neste caso, as duas coisas são dissociáveis, já que Rui Rangel não era o juiz nos processos em que terá participado em tráfico de influências. E todos os outros casos em que era juiz, podem ser questionados?

Não, pelo equilíbrio do valor da “segurança” face ao valor da “justiça”. Como explica João Paulo Raposo, os arguidos nesses mesmos processos (qualquer processo sobre o qual Rui Rangel tenha decidido) podem, “em tese, impulsionar o mecanismo de revisão se sentirem que quem decidiu não foi isento”, mas precisam sempre de “prova nova”.

“É sempre necessário que haja, por exemplo, uma prova de uma relação do juiz que decidiu com alguma das partes envolvidas”, diz, explicando que não faria sentido ir remexer em todos os processos sobre os quais o juiz decidiu “há décadas”. “O valor segurança sobrepõe-se ao valor justiça”.

[Os talões, o seguro e os emails a pedir dinheiro. Veja no vídeo alguns indícios contra Rui Rangel e as polémicas do juiz]

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E os processos que passaram pelo oficial de justiça suspeito de viciar sorteios? Podem ser anulados?

O princípio é o mesmo: não. Ou “é muito difícil”. “Pode colocar-se a questão, mas é muito difícil provar-se em que casos houve manipulação derivada do facto de o processo ter ido para as mãos daquele juiz e não de outro”, diz Ricardo Sá Fernandes. Em causa está o facto de o oficial de justiça Otávio Correia estar a ser acusado de ter viciado sorteios, adulterando a escolha supostamente aleatória dos juízes para determinados processos.

De acordo com o secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes, João Paulo Raposo, é preciso provar que “houve nulidade” para o processo poder ser posto em causa — e mesmo assim não é garante de que o processo caia e seja anulado. É que, no sistema judicial norte-americano quando se descobre uma nulidade num processo, “vai tudo abaixo”, mas isso não acontece no sistema judicial português:

“As nulidades são apreciadas individualmente, e é preciso ver o que é afetado no processo por um determinado passo ter sido considerado nulo”.

Para o juiz, é pouco provável que se consiga provar que houve um “vício na distribuição”, e que isso “inquinou o processo desde a base”. Ou seja, isso pode servir como argumento para um advogado, mas não é provável que a decisão recaia sobre a anulação dos processos.

Rui Rangel vai continuar como juiz durante o inquérito? Quem o avalia?

Para já, sim. Cabe ao Conselho Superior da Magistratura abrir um processo disciplinar, sendo essa via totalmente autónoma do processo criminal. Mas o CSM só o deverá fazer quando for formalmente notificado do processo pelo Ministério Público. “Face a indícios públicos fortes, o Conselho Superior da Magistratura pode abrir um inquérito disciplinar, e é altamente provável que o faça”, diz ao Observador o presidente da Associação Sindical dos Juízes, João Paulo Raposo.

“Se quiser, o Conselho Superior da Magistratura pode abrir o processo disciplinar já hoje”, acrescenta, sublinhando o mediatismo do caso e o seu peso na opinião pública.

Mas, explica fonte judicial ao Observador, “a única entidade que tem conhecimento do processo é o titular de ação penal, isto é, o Ministério Público e o juiz de instrução que acompanha o processo”. Por isso, o Conselho Superior da Magistratura só deverá tomar uma decisão apenas depois de o MP o notificar, e depois de o juiz de instrução ouvir o arguido e decidir quais as medidas de coação a aplicar. O juiz Rui Rangel e a ex-mulher, a também juíza desembargadora, Fátima Galante, vão ser ouvidos no dia 8 de fevereiro pelo Supremo Tribunal de Justiça. Em todo o caso, acrescenta o juiz João Paulo Raposo, “qualquer juiz pode ser suspenso de funções se se entender que, por via da investigação criminal, há perigo de continuação da atividade criminosa enquanto decorre o processo”.

Certo é que é sempre o Conselho Superior da Magistratura que avalia a sua atuação enquanto juiz, do ponto de vista disciplinar.