Londres, anos 50. Reynolds Woodcock, papel interpretado por Daniel Day-Lewis, é um designer de moda que se move num circuito de estrelas e aristocratas. Mas não vale a pena googlar o nome à espera de encontrar dados biográficos. Woodcock nunca existiu fora do imaginário do realizador Paul Thomas Anderson da mesma forma que Linha Fantasma não é um filme sobre moda. “A alta-costura é uma parte importante da história. Mas podia ser qualquer outra área do mundo criativo. O trabalho em si é qualquer coisa de imaterial”, admitiu Day-Lewis à Vanity Fair, em novembro do ano passado.

A alta-costura traça o ambiente, mas não é a história. O protagonista, obstinado com o seu trabalho, assume traços de genialidade que facilmente encontramos em vários criadores de moda do século XX. Do comportamento esquivo aos métodos usados dentro do atelier, quem terá inspirado Reynolds Woodcock.

Imagem do filme: Reynolds Woodcock e uma das suas criações © Focus Features

Às primeiras imagens do filme, todos apontaram na direção de Charles James, o designer britânico que fez carreira nos Estados Unidos. Ficou conhecido como o “primeiro costureiro da América”, mesmo tendo começado com um simples atelier de chapelaria em Chicago. No final dos anos 40, as suas criações já tinham aparecido nas páginas da Vogue. Os seus vestidos eram dignos de passadeira vermelha e deram nas vistas ao serem usados por algumas das figuras mais exuberantes do século, entre elas Millicent Rogers, Marlene Dietrich e Babe Paley.

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O trabalho de Charles James inspirou Christian Dior na hora de desenhar o célebre New Look. O criador francês chegou mesmo a considerá-lo “o maior talento da minha geração”, elogio replicado por Cristóbal Balenciaga que afirmou ser “o único no mundo a elevar a construção de um vestido de arte aplicada a arte pura”. Mas a verdade é que o seu nome não se viria a tornar tão popular como o dos seus pares europeus. “Entre os especialistas em moda, todos conhecem James, mas para o grande público, como não sobreviveu enquanto marca, é um daqueles nomes esquecidos”, afirmou Harold Koda, curador do Costume Institute do Metropolitan Museum of Art, em 2014, a propósito da inauguração da exposição “Charles James: Beyond Fashion”.

Charles James em 1952 © The Metropolitan Museum of Art, Photograph by Cecil Beaton, Beaton / Vogue / Condé Nast Archive

No mesmo ano, Charles James foi o mote da Met Gala. As convidadas responderam com criações Marchesa, Prada, Christian Dior e Valentino e homenagearam as volumetrias exageradas, os bustos esculpidos e drapeados do criador, que morreu em 1978, vítima de pneumonia. À genialidade do design, Charles juntava um temperamento, no mínimo, especial. Há relatos de ter despachado um possível cliente com a frase: “Não posso fazer nada para um mono como você”. Cecil Beaton, um dos grandes fotógrafos de moda do século XX, escreveu no seu diário: “O seu talento era maravilhoso; o seu feitio amargo… ninguém consegue lidar com o temperamento dele durante muito tempo”.

“Linha Fantasma”: o requintado e brilhante adeus de Daniel Day-Lewis

Parece que, como homem de negócios, James também era muito pouco genial. Os preços das suas peças faziam hesitar até os mais abastados e conta-se que, um dia, terá gastado 20 000 dólares (mais de 16 000€) só para ajustar uma manga. O perfecionismo saiu-lhe caro. Nos anos 50, altura em que, segundo o britânico Telegraph, um vestido de Charles James custaria à volta de 1500 libras (cerca de 1700€), a casa de alta-costura estava atolada em dívidas. Segundo o mesmo jornal, o designer nunca se esforçou para encobrir a sua homossexualidade. Ainda assim, casou em 1954 com Nancy Lee Gregory, uma milionária texana, divorciada e 20 anos mais nova. Na altura, terá dito “toda a sociedade é bissexual”. Tiveram dois filhos e divorciaram-se sete anos depois. Mudou-se para um hotel, onde instalou também o atelier, e subsistiu à conta dos clientes mais fiéis. Chegou a ser visto no Studio 54, em Nova Iorque, e na companhia de Andy Warhol.

Vestidos de baile de James Charles fotografados por Cecil Beaton para a Vogue © The Metropolitan Museum / Condé Nast Archive

Mark Bridges desenhou todos os figurinos de Linha Fantasma, incluindo as criações de alta-costura da casa Woodcock. Mais do que simples vestidos, o desafio de Bridges foi dar forma ao universo estético do protagonista, tal como Paul Thomas Anderson o tinha imaginado. “Muito da nossa pesquisa implicou conhecer a fundo o que se andava a passar a nível cultural em Londres, nessa altura, saber quem eram os designers, o que é que faziam, quem eram os seus clientes e, nesse mundo, onde se encaixaria Reynolds”, afirmou Bridges, que colaborou em todos os filmes de Anderson, à revista Vulture. O designer conta que realizador começou por lhe perguntar se já tinha ouvido falar em Charles James

O que começou por parecer um filme quase autobiográfico em que Charles James seria a personalidade retratada, tornou-se numa miscelânea de influências cozinhadas pelo realizador, em conjunto com o ator principal. “Por muito fascinante que a sua vida tenha sido, não era a vida que queríamos explorar”, esclarece Day-Lewis na mesma entrevista à Vanity Fair.

Cristóbal Balenciaga a trabalhar, em 1968 © Victoria & Albert Museum / Henri Cartier-Bresson, Magnum Photos

Mas realizador e protagonista referem outra fonte de inspiração, uma personalidade muito mais esquiva e silenciosa, tal como o próprio Woodcock. “No geral, não tinha assim tanto conhecimento nem interesse no mundo da moda até começar a saber mais sobre um rapaz chamado Cristóbal Balenciaga. Ele levou uma vida bastante monástica, completamente consumido pelo seu trabalho — por vezes, sacrificando outras coisas na vida. As nossas personagens tornaram-se muito diferentes. O foco da nossa história está em perceber, se tivesses uma personagem como esta, o que seria capaz de criar uma rutura na sua vida. Como sempre, é o amor que faz isso”, contou Paul Thomas Anderson ao Entertainment Weekly.

Balenciaga: basco, começou a trabalhar como aprendiz de alfaiate aos 12 anos. Em 1919, com 24 anos, abriu a primeira loja em San Sebastián. Vestia a aristocracia espanhola de uma ponta à outra, incluindo a família real, mas partiu para Paris com o rebentar da guerra civil. Foi preciso esperar até aos anos 50 para assistir ao desabrochar da silhueta de Balenciaga. Os ombros largos, as peças descoladas do corpo e as formas arquiteturais fizeram com que ficasse conhecido como o mestre dos volumes.

Modelo exibe casaco Balenciaga em Paris, 1954 © Mark Shaw / mptvimages.com

Metódico, perfecionista e infléxível — a descrição bate com o perfil de Balenciaga, mas também com o de Reynolds Woodcock. Tal como o designer espanhol, a personagem de Paul Thomas Anderson (e último papel de Daniel Day-Lewis no cinema) também se rodeia de patronos aristocratas e trabalha para famílias europeias endinheiradas. Em 1960, Balenciaga desenhou o vestido de noiva de Fabiola de Mora y Aragón, futura rainha consorte da Bélgica. No filme, também Woodcock faz um vestido de noiva para a família real belga.

Até na hora de fazer um vestido do zero, o protagonista do filme reproduziu um modelo do designer espanhol. Não é à toa que Daniel Day-Lewis é o único homem à face da terra com três Óscares de Melhor Ator. Conhecido pelo empenho e por mergulhar a fundo no universo de cada personagem, durante meses, acompanhou Marc Happel, responsável pelos figurinos do New York City Ballet, na qualidade de aprendiz. “Vi uma fotografia de um vestido cintado Balenciaga, inspirado num uniforme de escola”, contou o ator à W Magazine, outubro do ano passado. “Era muito simples. Ou pelo menos parecia muito simples até ter de arranjar forma de o fazer e depois ter percebido, meu Deus, isto é inacreditavelmente difícil. Não há nada mais belo em todas as artes do que uma coisa que parece simples”, relatou na mesma entrevista.

Imagem do filme: vestido de noiva desenhado por Reynolds Woodcock © Focus Features

Mas é na esfera pessoal que o designer real e o da ficção se separam. Enquanto Woodcock salta de musa em musa em busca de inspiração, Cristóbal Balenciaga viveu anos ao lado do aristocrata Vladzio Jaworowski d’Attainville, que era também seu sócio. Segundo descreve Mary Blume no livro The Master of Us All (foi assim que Christian Dior o chamou), biografia publicada em janeiro de 2013, Balenciaga nunca mais foi o mesmo depois da morte de Vladzio, em 1948, chegando mesmo a considerar fechar definitivamente a loja, na Avenue George V, em Paris. Linha Fantasma não é um filme biográfico, mas se um dia um senhor Anderson estiver para aí virado, material não falta. Infelizmente, com o mesmo protagonista é que não vai dar.