“Lembram-se de alguma campanha publicitária da Zara nos anos 90? Lembram-se de algum editorial de moda da Vogue dos anos 80? Vá lá, façam um esforço. Então não se lembram de nada? E da Benetton? De quantas imagens se lembram?”.

Foi assim, neste tom provocador, que o fotógrafo, artista plástico e publicitário Olivier Toscani, de 75 anos, se dirigiu ao público que enchia a Ágora, o anfiteatro das instalações da Fábrica em Treviso, cidade onde a marca nasceu em 1965. O centro de investigação de moda, design e arte criado por ele e por Luciano Benetton nos anos 90, foi o palco para a apresentação da nova vida da marca italiana, que, depois de anos consecutivos de perdas, muda de estratégia e assume desafios significativos: a suas roupas voltam a ser produzidas na Europa (e norte de África), Toscani vai assegurar as campanhas publicitárias políticas e fraturantes e a marca passará a ter a colaboração non stop de artistas vindos de todo o mundo e das mais diferentes áreas de expressão e do saber.

O duo Luciano e Oliviero, que nos anos 80 e 90 deram à Benetton projeção universal, quer que o coração da marca volte a bater fora das folhas de excel e que o sangue novo parta dali, da Fábrica que se quer uma nova babilónia. Outra das novidades é o regresso da revista Colors, agora apenas online, e que deverá plasmar este renascimento da marca.

Oliviero Toscani e Luciano Benetton na Fábrica, em Treviso, para apresentar ao renascimento da Benetton com jovens artistas de várias nacionalidades e expressões

A tarde cinzenta e fria do inverno no norte de Itália pareceu estar a gostar do humor de Toscani, o sol apareceu e Luciano Benetton, 82 anos, anunciou que a produção ia regressar à Europa. Este foi o momento mais aplaudido, porque a deslocalização daquela que em tempos foi um dos símbolos da qualidade e vanguarda da moda italiana continua a ser uma mágoa para os italianos. “O processo de saída da Ásia será faseado mas o objetivo é começar já no próximo mês a reestruturar as unidades de produção” avançou o dono da marca que, em 2008, se tinha afastado para dar o leme ao filho.

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Porém, agora assume que tudo correu mal. Só em 2016 a marca teve perdas na ordem dos 46 milhões de euros. “Perdemos a luz, a magia, o espírito humanista e agora está na hora de o recuperar”, afirmou. O abandono da produção de malhas, que era a alma da Benetton foi outro dos “erros” que Luciano disse querer corrigir. E, tendo em conta que a malha voltou ser uma das tendências de moda mais fortes do momento a par com uma paleta feita de cores fortes onde os pigmentos e as texturas se aliam a uma nova consciência ecológica e a uma maior exigência dos consumidores, este pode mesmo ser “o momento de voltar a erguer a bandeira United Colors of Benetton”, disse.

20 fotos

Se Luciano Benetton quer afastar os gestores e entregar a marca aos criativos, Oliviero Toscani não disfarça o seu desprezo pela indústria da moda a que chama “fascista”, pois obriga a uma “normalização que leva à intolerância, que não incorpora a falha, o acidente, algo fundamental à criatividade e à mudança”. Mas vai mais longe: “Já viram o que a moda faz aos corpos? Reparem como repetem todos os mesmos gestos, as mesmas poses”.

E com o seu corpo grande, põe-se a mimar as posturas e os modos das modelos nas revistas, fazendo todos rir. Mas ele não ri, não desarma, não se esforça por ser agradável ou delicado. Tal como nas suas campanhas publicitárias (quer na Benetton nos anos 80 e 90, quer depois) que somaram polémicas, proibições, ações judiciais, o artista sabe que as pessoas “gostam de uma realidade agradável, não querem ver a realidade tal como ela é, as pessoas dizem que as minhas fotos são ‘chocantes’, mas ‘chocante’ é a realidade que elas preferiam não ver”, afirma contundente.

Contrariando o habitual a apresentação da Benetton não foi feita para o universo da moda mas para artistas, jornalistas, jovens estudantes

“Vou vestir a Nossa Senhora de jeans e T-shirt”

Nos arredores da medieval Treviso e a meia hora de Veneza, a Fábrica é um lugar estranho, no melhor sentido do termo: uma Villa do século XVII foi incorporada num edifício em espiral futurista e minimalista desenhado pelo arquiteto japonês Tadao Ando. Uma estrutura nua e fria, sem ornamentos, que é um tributo à simplicidade e ao desejo de conhecimento.

A Fábrica, ali no meio do campo é bastante representativa do espírito que norteou a marca durante mais de duas décadas: a abertura ao novo, a integração do diferente, a coragem de fazer ruturas. O projeto de Toscani e Benetton é fazer deste lugar um ponto de encontro onde 24 sobre 24 horas haja conferências, workshops, festivais, produção de conhecimento e de cultura. O renascimento da Benetton tem já essa ousadia: não está a falar exclusivamente para a industria da moda, está a falar para a comunidade alargada. E, não deixa de ser significativo que os primeiros eventos da nova Fábrica não incluam modelos, hit girls, bloguers a tirar selfies com a mais recente coleção da marca. Ao invés estão presentes dezenas de jornalistas, músicos engenheiros de som, fotógrafos como Daniel Stier ou Noa Jansma, cujas exposições tocam dois temas profundamente atuais: a relação entre os homens e a tecnologia e o assédio sexual.

Será possível sobreviver ignorando o poder dos mega-grupos de moda como a Inditex, ignorando as redes sociais, as semanas da moda? Em entrevista ao Observador, Oliviero Toscani foi lapidar:

“Estou-me nas tintas para esses grupos que tentam impor o seu poder e esperam que nós fiquemos a um canto cheios de medo. Não vou ficar a um canto com medo do que dizem de mim nas redes sociais. Nasci durante a II Guerra, cresci durante a reconstrução da Itália, o meu pai era fotografo do Corriere della Sera. Nos anos 70 trabalhei com Andy Warhol. A minha ideia de um produto, seja ele qual for é tirá-lo da montra e mostrar a sua relação intima com a vida. Não há nada neste mundo que não seja político e religioso. Se eu quero mostrar uma T-shirt ou uns jeans eu vou usar uma Nossa Senhora e vou vesti-la de jeans e T-shirt, uma T-shirt colorida. Cada produto tem que ter uma magia, tem que criar nos outros vontade de nos copiar.”

“Mais de 50 anos de Magníficos Falhanços”, saiu em 2015 e reúne, sob um título provocador, as imagens mais emblemáticas do fotógrafo

Sobre os motivos que o levaram a aceitar regressar à Benetton, depois de ter saído em 2000, de ter escrito livros e de se ter dedicado mais ao seu lado de artista e menos de publicitário, Toscani é sucinto: “Na Benetton estão as pessoas mais inteligentes com quem trabalhei. Aqui sabem que uma fotografia não é nada se não contar uma história. Eu gosto de contar histórias.”

Quem cresceu nos anos 80 e 90 pode ter esquecido muita coisa mas não esqueceu certamente as imagens hiper-realistas de temas polémicos que o fotógrafo usou para promover a marca. Na altura, muitos ficaram chocados, outros indignados, alguns países retiraram as campanhas. A sida, a multiculturalidade, a religião, a sexualidade, o nascimento, a pena de morte, tudo isto nos passava em frente dos olhos ao ponto de a cada estação as fotografias de Toscani serem mais aguardadas que as próprias roupas que, curiosamente, eram bastante conservadoras se comparadas com as campanhas publicitárias. Ainda em 2007, já fora da Benetton, Toscani voltou a agitar consciências com a imagem de uma modelo com uma anorexia terminal.

Porém, se olharmos para trás vemos não apenas a coragem mas também a capacidade do fotógrafo de compreender profundamente a sociedade ocidental e atacá-la nos seus tabus. Se hoje avançamos tanto no caminho, devemo-lo, em parte, a Toscani e à Benetton. Hoje em dia, o fotógrafo parece ter entrado numa fase de maior subtileza, como mostra o seu primeiro trabalho para a marca, publicado em dezembro de 2017; uma sala de aula com crianças de 13 nacionalidades vestidas com roupas Benetton. Um retrato soft, tendo em conta aquilo a que o artista nos habituou, de um tema fraturante: a Europa a braços com a chegada incessante de refugiados. A imagem não é chocante mas é ainda e sempre política. O vídeo da campanha pode ser visto aqui.

Uma sala de aula real na Itália de 2017 : 28 alunos de 13 nacionalidades diferentes, todos vestidos com roupas Benetton, foi o primeiro trabalho de Toscani no seu regresso à marca

“A Benetton está a trabalhar diretamente com a Cruz-Vermelha para ajudar os refugiados que chegam a Itália. Conhece outra marca de roupa que faça isso? Não há. A moda que hoje nos vendem quer excluir as pessoas reais e está a ajudar a criar novas divisões sociais. As grandes aprendizagens não se fazem na academia, nem nos gabinetes, fazem-se na rua. E agora sinto que há cada vez mais medo da rua. O medo está a impor-se e eu quero combater isso”, afirma o artista quando confrontado com o poder da tecnologia e das redes sociais no mercado da moda.

“Todas as gerações desde sempre lidaram com mudanças na técnica e nas tecnologias. Isso não é novo. A tecnologia é apenas um veiculo, não é uma voz em si mesma. Agora acham que a tecnologia é a palavra mágica, a solução para tudo. Mas ainda não inventaram nada melhor que olhar olhos nos olhos, nenhuma tecnologia é tão poderosa como a comunicação entre os corpos humanos. Estamos e estaremos sempre a falar uns para os outros. O verdadeiro motor da humanidade é a imaginação”.

O Observador viajou para Treviso a convite da Benetton