No ano em que se assinala o 200.º aniversário da publicação do romance Frankenstein, a Biblioteca Nacional dedica-lhe uma exposição, a editora Guerra e Paz lança uma versão juvenil e os cientistas recordam a sua importância na ciência.

O “monstro” Frankenstein nasceu numa noite chuvosa do “ano sem verão” de 1816. O romance que o apresentaria ao mundo — o clássico “Frankenstein”, da escritora britânica Mary Shelley (1797-1851) — foi publicado pela primeira vez em janeiro de 1818, e com ele nasceu o género “ficção científica”.

Mary Shelley cresceu num dos ambientes intelectuais mais avançados de Inglaterra, filha de William Godwin, filósofo e político revolucionário, defensor das ideias libertárias dos iluministas e dos ideais da Revolução Francesa, e de Mary Wollstonecraft, pioneira do feminismo moderno e autora do livro Reivindicação dos Direitos da Mulher.

No verão de 1816, com apenas 18 anos, Mary acompanhou o futuro marido, o poeta Percy Shelley, o médico e escritor John Polidori e o poeta Lorde Byron numas férias à Suíça, tendo ficado hospedados na Villa Diodati, perto do lago Genebra.

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Mas o mau tempo e a “chuva incessante” daquele que ficou conhecido como “o ano sem verão”, decorrente de uma grande erupção vulcânica na Indonésia, obrigou-os “a ficar muitas vezes fechados em casa”, escreveu a autora no prefácio da edição de 1831.

Nessas noites, “alguns volumes de histórias de fantasmas, traduzidas do alemão e francês, caíram-nos nas mãos”, contou a escritora, acrescentando que, para passar o tempo, Lorde Byron lançou-lhes um desafio, que foi aceite: “Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas”.

John Polidori escreveu o conto “O Vampiro”, que deu origem à personagem vampiro como hoje é conhecida, mas Mary Shelley sentia-se incapaz de escrever uma história que correspondesse ao que se propusera, “uma que falasse aos medos misteriosos da nossa natureza e despertasse horror arrepiante… uma que fizesse com que o leitor receasse olhar à sua volta, lhe gelasse o sangue e lhe acelerasse as batidas do coração”.

Durante as “muitas e longas conversas” entre Lorde Byron e Shelley, das quais Mary foi “uma devota mas praticamente silenciosa ouvinte”, foram abordados temas como o princípio da vida e a possibilidade de o descobrir, as experiências de Darwin, e experiências ocorridas em Londres sobre a influência da eletricidade sobre o sistema nervoso (galvanismo), e a hipótese de assim se reanimar um cadáver.

Quando a noite já ia alta — era a madrugada de 16 de junho –, foram para a cama, mas Mary não conseguiu dormir, com a imaginação a fluir e a dominá-la, até surgirem na sua cabeça, “com uma nitidez muito superior aos limites usuais dos sonhos”, as imagens que iriam compor a sua história.

“Vi o pálido estudante de artes profanas ajoelhado ao lado da coisa que acabara de juntar. Vi o hediondo fantasma de um homem distender-se e, depois, graças a uma poderosa máquina, mostrar sinais de vida”, descreve a autora, que conta como acordou “aterrorizada” e como, assim, descobriu como iria aterrorizar os outros.

No romance — que inicialmente era para ser um conto, mas que foi ampliado por incentivo de Percy Shelley — Mary ficciona a história de um jovem cientista, Victor Frankenstein, que, determinado a entender o princípio da vida, desenvolve uma experiência com cadáveres para tentar criar uma bela criatura.

O resultado, porém, é um monstro, renegado e abandonado pelo jovem cientista, que então se dedica a perseguir o seu criador até à morte.

A primeira edição do romance foi publicada anonimamente em Londres, em janeiro de 1818, e tornou-se imediatamente um sucesso de vendas.

O nome da autora surgiu cinco anos depois, numa segunda edição publicada em 1823, após o sucesso de uma peça de teatro baseada na história, e a edição popular da obra num só volume saiu em 1831.

Dois séculos depois da primeira publicação, “Frankenstein” continua a ser uma referência literária, que suscita dúvidas e reflexões, inspira artistas, e inquieta cientistas.

Aquela que é tida como a primeira obra de ficção científica da história tem tido diversas adaptações ao cinema, ao teatro e à televisão, mas também literárias, como a versão juvenil publicada este mês pela Guerra e Paz, na coleção “os livros estão loucos”, adaptada por Raquel Palermo e João Lacerda Matos.

“Frankenstein” tem levantado também diversas questões científicas e filosóficas, relacionadas com a ética e os poderes e limites da ciência.

O MIT publicou, no ano passado, uma edição de Frankenstein, que combina a versão original de 1818 do manuscrito com anotações e ensaios de especialistas que exploram os aspetos sociais e éticos da criatividade científica levantados por esta história.

A revista científica “The Lancet” assinalou, no dia 26 de janeiro, a efeméride, recordando o artigo escrito, em 1828, pelo primeiro médico a realizar uma transfusão sanguínea, no qual refere a capacidade de imitar ações da natureza e alude à possibilidade de trazer “Frankenstein” para a realidade.

Já a revista “Science” lembrou as inspirações do romance de Shelley para a invenção do marcapasso eletrónico, por Earl Bakken, e afirmou que, com o desenvolvimento dos transplantes, será cada vez mais fácil modificar seres humanos, alertando contudo para o risco de criar algo monstruoso.

A própria literatura científica está repleta de termos inspirados na história de Mary Shelley, tais como “alimentos Frankenstein”, “células Frankenstein” ou “leis de Frankenstein”, além de especialistas convictos da possibilidade de repetir a experiência enunciada no romance.

A Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) e o CETAPS (Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies), da Faculdade de Ciência Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova, associam-se às comemorações dos 200 anos do lançamento de “Frankenstein”, com uma mostra bibliográfica patente na BNP, até dia 08 de fevereiro, e com um colóquio que decorrerá a 27 de setembro.