Na primeira vez que falou em tribunal sobre o processo em que é acusado de quatro crimes, o ex-ministro Miguel Macedo atacou de forma dura, na tarde desta segunda-feira, a acusação que o Ministério Público lhe lançou. A acusação é “infundada” e comete “erros dificilmente explicáveis na forma como trata, quer jurídica quer temporalmente, as questões”. Estava em causa um dos quatro crimes de que o ex-ministro é acusado. Num parêntesis, o juiz presidente simulou uma sentença: Macedo “fez um resumo do que se passou aqui”.

Um ano depois de o processo dos Vistos Gold começar a ser julgado, Miguel Macedo decidiu falar – sem surpresa maior, porque o seu advogado, Castanheira Neves, já tinha deixado claro esse interesse do ex-ministro. Mas Miguel Macedo estava ainda na contestação à primeira de quatro suspeitas pelas quais tem de responder (a nomeação de um oficial de ligação para Pequim, que teria favorecido interesses privados com a atribuição de vistos gold) quando o juiz presidente do coletivo o interrompeu. “Não vamos julgar a sua atuação como ministro, não vamos fazer julgamentos políticos”, disse Francisco Henrique.

Macedo insistiu – já depois de referir cada um dos oficiais de ligação para a imigração nomeados entre 2012 e 2014 –, argumentando que queria deixar clara a sua versão e contestar a acusação do Ministério Público, pejada daquilo que considera serem “erros dificilmente explicáveis”. No final da extensa argumentação, Francisco Henrique descansou Miguel Macedo: “O que disse agora resume bem o que se passou no julgamento.” Logo a seguir, o juiz presidente acrescentaria outro comentário – “essa matéria do oficial de ligação para a imigração é o que é”.

Ambos os comentários deram um sinal de que, numa fase em que o julgamento de Miguel Macedo e outros 20 arguidos está prestes a terminar, para o juiz presidente o caso apresentado pelo Ministério Público tem pouca sustentação. Aliás, a tensão entre o coletivo e o procurador José Niza ficou patente durante a sessão desta segunda-feira.

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Por exemplo, quando o procurador quis explorar um SMS enviado por Miguel Macedo a António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e do Notariado. Ali, lia-se: “Sempre a faturar. Já dei a volta ao assunto China. Abraço”. Macedo ia começar a explicar-se ao procurador quando o juiz interrompeu, dirigindo-se diretamente ao ex-ministro: “Não tem a conotação económica, pois nao?” Macedo disse que não e o juiz atirou a mão ao ar. “Então, pronto.”

O assunto acabaria menorizado pelo presidente do coletivo, tal como a relação entre Miguel Macedo e Figueiredo, que chegaram a passar alguns dias de férias juntos no sul de Espanha. Francisco Henrique suspira, revira o olhar e, como já tinha feito antes, ordena. “Senhor procurador, adiante, adiante…”

Oficial de ligação: MP “carece de rigor e conhecimento”

O ex-ministro da Administração Interna já tinha dito ao Observador, poucas horas antes de entrar no tribunal, que tinha “elementos interessantes” para apresentar para sustentar a sua defesa. Quando se sentou frente ao coletivo, Macedo vinha documentado para contestar cada uma das quatro acusações.

O social-democrata referiu seguir a ordem da acusação e começou, por isso, pela nomeação de um oficial de ligação para Pequim, que teria beneficiado um esquema de proveito ilegal de atribuição de visto gold. Para o Ministério Público, Macedo teria usurpado competências do seu secretário de Estado e levado o então diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a nomear um oficial de ligação para a imigração para Pequim.

Antes de ser interrompido pelo juiz presidente, Macedo leu 17 casos de nomeações de elementos da GNR, da PSP e do SEF para pontos de ligação em diversos pontos da Europa, África e Médio Oriente. “Li todos para que ficasse claro que, ao contrário do que pretende a acusação, e do que podia dizer a acusação, este não foi um caso isolado nem foi caso que tenha caído do céu de páraquedas para resolver os problemas de uns quantos supostos amigos que tinham interesse”, disse o ex-ministro.

Macedo ainda contestou a tese de que foi pouco cuidadoso na forma como geriu o alegado benefício a “interesses privados” ao não procurar apoios comunitários para financiar essa nomeação. Por uma razão: não seria possível beneficiar de apoios da União Europeia quando apenas estavam em causa os interesses de Portugal – e não de vários países da comunidade.

“Todos os pressupostos em que assentam um conjunto de dissertações [do MP] carecem de um fundo de ciência feita, rigor e conhecimento do que se está a falar”, resumiu Miguel Macedo.

Doentes líbios. Acusação é “um bocadinho bipolar”

Para contestar a acusação de que beneficiou Jaime Gomes num negócio de transporte de doentes líbios para Portugal, Macedo levou “ua página e meios de matérias” de que lhe parecia “útil” falar. “Esta parte tão vaga e deslocada da realidade que nem sei bem o que posso dizer”, desabafou o ex-ministro.

O ex-ministro fez um exercício de memória para contextualizar a situação. Recordou o transporte até ao hospital privado de Guimarães de um grupo de doentes estrangeiros e acompanhantes e o facto de, “a dada altura”, as autoridades terem “perdido o controlo” dessas pessoas, “porque não se sabia onde estavam alguns deles”.

Nesse caso, o “SEF e a PSP tiveram e “redobrar esforços para sinalizar a presença” dessas cidadãos estrangeiros “e garantir que as pessoas que tinham entrado naquele período para aquele efeito saiam de território nacional” no final do tempo estipulado no visto. “Essa experiência má, vivida um ano antes” de Jaime Gomes contactar Miguel Macedo, “aconselharia o SEF, e bem, a ter cautelas do ponto de vista do seu planeamento nas ações a desenvolver neste programa”.

É essa a explicação do ex-ministro para o pedido de “apoio logístico” à ILS, que “não sabia os procedimentos” a seguir para trazer um outro grupo cidadãos líbios a Portugal para receberem tratamento médico. Macedo ligou para Manuel Palos e o diretor do SEF acedeu a um contacto direto para prestar o tal apoio. “E o Miguel Macedo sai de cena”, diz o ex-ministro , garantindo que nã deu “nenhuma orientação ao Dr. Manuel Palos” nem pediu “nenhum favor”.

O social-democrata contestou então a tese de que Macedo seria um “ministro que pedia favores” para ajudar amigos. “Como se isso não diminuisse a liberdade que, por egoísmo e convicção que sempre quis preservar para fazer o que quisesse fazer”, atirou Miguel Macedo, deixando a ideia de que “esta acusação é um bocadinho bipolar”. “Duma das vezes, sustenta que Miguel Macedo se dava mal com Palos” e, “por outro lado, sustenta que estavam muito dados os dois e geriam coisas esquisitas em nome de terceiros”.

Kamov e a pergunta a que Macedo não soube responder

Do rol de crimes imputados a Miguel Macedo consta um crime de tráfico de influências por, alegadamente, ter feito a ponte entre Jaime Gomes e Paulo Núncio, então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, para que a ILS fosse isentada de um pagamento de IVA. Macedo não soube responder à questão dos juízes.

Primeiro, reiterou a garantia de que “ninguém” lhe pediu para fazer qualquer favor. Francisco Henrique perguntou então a Miguel Macedo: em tese, se um amigo lhe pedisse, “como fazia para dar um jeitinho?” A resposta veio a dois tempos. “Posso responder a tudo, a isso não sei”, começou Macedo, para concluir. “O que percebo de impostos é que são para pagar.”

Depois, Macedo avançou para a secção mais longa da sua defesa, que resulta de uma acusação de prevaricação por, alegadamente, ter passado informação (um caderno de encargos para a gestão e manutenção dos helicópteros Kamov) a Jaime Soares que permitiu à Everjets vencer o concurso. O Ministério Público ligava esse ponto a uma ligação privilegiada entre Macedo e a empresa Bragaparques.

Sobre isso, o ex-ministro alguma coisa a dizer. Macedo disse que “o critério único deste concurso foi preço mais baixo”, uma vez que essa seria a melhor forma de acautelar o interesse público, e lembrou que pediu à Procuradora-geral da República qu nomeasse um procurador para presidir ao concurso. O nome escolhido foi Amadeu Guerra, atual diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal. “Tudo isto são decisões de quem quer fazer maroscas…”, soltou o ex-ministro.

Macedo também lembrou que, depois de o primeiro concurso para gestão e manutenção dos Kamov ter ficado deserta, o ministro podia ter avançado para uma negociação direta com as empresas. Não o fez e só dois anos mais tarde voltou a lançar um novo concurso – o tal que o Ministério Público suspeita ter sido resolvido com ajuda do ministro.

O ex-governante sustentou a tese de que o “caderno de encargos não foi entregue a nenhuma empresa”, foi entregue Jaime Soares, que “não nem nunca teve nenhum interesse no mercado de que estamos a falar”. Politicamente, o ministro não podia “correr o risco de não ter capacidade operacional” e, justificou, foi essa a razão para enviar o documento ao amigo. Essa entrega serviu para “fazer interessar playres do mercado a virem ao concurso”, assumiu Macedo. “Ele não ia resolver o assunto” da falta de interessados no negócio, mas “podia estabelecer o contacto com a empresa espanhola [Faasa]que opera Kamov e que, pela proximidade geográfica, podia ser um concorrente” para que não deixasse concurso mais uma vez vazio.

“Tentar dizer que eu quis favorecer quem quer que seja não faz muito sentido” porque, “se quisesse, tinha o instrumento da lei que decorria de ter ficado deserto o primeiro concurso”, lembrou Macedo. Nesse caso, “porque não pegava naquilo que a lei diz e fazia eu a negociação direta? É preciso responder a esta pergunta para avaliar se houve intenção de favorecer”, sublinhou.