Título: “Volta a Portugal”
Autor: Álvaro Domingues
Editora: Contraponto

Um dos livros que vêm à cabeça quando se lê Volta a Portugal, de Álvaro Domingues (Contraponto, 2017), é Reality Hunger, de David Shields, livro de 2010 que, entre outras coisas, defende de forma radical, que a literatura, hoje, pode — e deve — assumir a sua vocação para a colagem e perder o medo de citar abundantemente sem ter de fazer uso explícito de aspas. A certa altura Shields faz uma confissão:

“The urge to connect bits that don’t seem to belong together has fascinated all my life”.

Álvaro Domingues, geógrafo, professor, ensaísta, também parece ter esse fascínio em fazer uma montagem de vozes, dos textos de biblioteca às prosas da internet. Ele sabe que a forma mais certeira de dizer o mundo de hoje – no caso o de Portugal – é a de o mostrar na sua impureza. E intercalando os tempos. O capítulo mais arriscado de Volta a Portugal chama-se “Os Fados da Portugalidade” e consiste numa colagem de textos de figuras com mundividências tão diversas como Fernando Pessoa, António de Oliveira Salazar, Jaime Cortesão, Antero de Quental, Almeida Garrett e Guerra Junqueiro. Engenhosa construção que termina com uma fotografia daquilo que parece ser um cemitério de sanitas.

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Domingues é um geógrafo com uma obsessão: os contrastes na paisagem. Doutorado em Geografia Humana, professor associado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e elemento importante em diferentes gestos culturais (como a Porto 2001, Capital Europeia da Cultura), assume o interesse pelo relacionamento — na sociedade e no território — de pré e pós-modernidade.  Já o havia desenvolvido em Vida no Campo (Dafne Editora, 2012), livro sobre o que classificou de “desruralização”. Volta a Portugal, perseguindo o mesmo sentido, inicia-se com uma sentença esclarecedora num capítulo designado “Uma Narrativa para a Paisagem”:

“Sob a paleta genérica da metamorfose profunda do país rural e da mágoa da sua perda, persiste uma jazida imensa de imagens emaranhadas em filões variados e contrastantes que, de tão diversos ao nível local e regional, comprometem a própria visibilidade da questão ao nível nacional – o todo que nunca houve vai-se perdendo na pulverização das suas peças”.

O que Álvaro Domingues faz a seguir é um lamento, cozinhado pela sofisticação do estilo de escrita e da imagem, do estilhaçamento territorial, que inclui no pacote voos low-cost, resorts e parques aquáticos. “O presente é errático e o futuro um enigma”. Depois da ficção veio a confusão. Na sequência de um passado mitológico, que procurou de um modo muitas vezes forçado fixar uma ideia de identidade, o caos, segundo Domingues, predomina, e, para lá das “aldeias típicas” e dos “centros históricos”, crescem as “paisagens ordinárias, amnésicas ou genéricas como os medicamentos sem marca”.

O capítulo “Subida à Serra da Estrela”, começando por abordar o “mito da ruralidade de Salazar”, favorecido por uma propaganda que fazia o desenho do país a partir das suas paisagens, das suas regiões e dos seus monumentos, transforma-se numa incursão ao, para citar o autor, mais alpino dos nossos Alpes. “Os nossos míticos Montes Hermínios donde brotou Viriato. O peito ilustre lusitano”. Ou, para citar Oliveira Martins, aqui lembrado, “como que o coração do paiz”. Depois o geógrafo segue viagem — vai, como dizia a canção, pelos caminhos de Portugal: Minho, Trás-os-Montes, Douro, Ria de Aveiro, Ribatejo, Oeste, Alentejo, Algarve, Ilhas. E o que vê não é sempre lindo nem um mundo sem igual. Até porque se aproxima muitas vezes do universo banal e uniformizado de muitas zonas do globo vulneráveis e deslumbradas.

No périplo-retrato, o geógrafo vai registando marcas, mudanças e transformações para lá dos guias, deixando aqui e ali anotações reveladoras de uma desconfiança, por vezes radical, em relação ao anonimato do capitalismo e à sua vocação para tudo uniformizar e banalizar. Em “Trás-os-Montes”, começando por fazer um duro diagnóstico que fala em economia assistida, abandono, desemprego, assimetria, acaba com um apelo para uma intervenção de uma entidade regional que “cuide daquilo que não resulta do somatório das pequenas coisas”. No Ribatejo, entre citações de Almeida Garrett, Alves Redol e de uma letra dos Beatles, assinala que “há cada vez menos touros negros e cada vez mais campos de tomate e pimento, vinhas, gado para carne, milho e hortícolas para as multinacionais da agro-indústria”. No “Oeste”, nota a convulsão generalizada, na qual núcleos históricos como Óbidos se convertem em parques temáticos e velhas e distintas estâncias balneares entram na voragem do turismo e do veraneio. No Alentejo, povoado de “novos ratinhos do trabalho sazonal”, afirma, no meio de citações de Gil Vicente, Brito Camacho, António Aleixo, Manuel da Fonseca, que “o latifúndio monocórdico pariu uma estridência radical”. Em “lhas” recorre abundantemente a Gaspar Frutuoso (1522-1591), autor de “Saudades da Terra”, como quem procura recuperar o mistério morfológico dos arquipélagos.

Em todo o livro as fotografias revelam a curiosidade natural do autor, o seu talento em captar a paisagem, mas também, em muitos casos, o seu faro para detectar o que é nela extravagante.

Fundamental é o jogo entre as imagens e as legendas. Algumas legendas são descritivas, secas, mas outras trazem consigo uma intenção irónica e humorística. Aliás, esse gozo a partir desse cenário irregular marca o tom desse geógrafo. Uma casa abandonada é chamada “artigo fora de prazo”. Um lugar religioso é designado “GPS sobrenatural para uso dos gentios”. Uma pequena habitação com um estádio de futebol por detrás é apelidada de “casa aumentada”. Como se, perante o território, onde se encontram incúrias, falências e atropelos ao ordenamento, ao autor ficasse reservada a atitude de deixar uma assinatura provocatória.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.