Pintura e desenho, sobretudo, mas também rascunhos até agora nunca exibidos em público. A exposição “No Tempo Todo”, que é inaugurada nesta quinta-feira à noite no Museu de Serralves, no Porto, apresenta-se como a maior retrospetiva de sempre do pintor Álvaro Lapa (1939-2006). São cerca de 300 obras provenientes de coleções museológicas e de particulares, e permitem ter uma “perspectiva abrangente sobre o percurso” do artista, refere o crítico Miguel von Hafe Pérez, comissário da mostra.

Em vida, o pintor e escritor nascido em Évora fez duas grandes exposições: 1994, em Serralves, e 2006, no Museu da Cidade de Lisboa (depois de ter recebido o Grande Prémio Fundação EDP Arte). Em ambas as ocasiões, participou ativamente na escolha das obras exibidas. “No Tempo Todo” é diferente. Não só pela quantidade de obras – mais cerca de duas centenas do que em 1994 e 2006 –, mas também por constituir o primeiro olhar externo sobre a produção plástica deste artista enigmático que nunca quis ser enquadrado em correntes artísticas ou de pensamento.

“Álvaro Lapa é uma das figuras mais enigmáticas da arte portuguesa do século XX”, classifica Miguel von Hafe Pérez, em entrevista ao Observador. “A palavra enigma, que o próprio usa para descrever a obra, não significa opacidade. Com disse o filósofo José Gil, na apresentação de uma exposição em 2005, na Galeria Fernando Santos, Lapa criou um ideoleto. Nem todos acedem ao seu léxico fundamental, mas isso não impede que se tenha uma relação com a obra. Por vezes temos uma relação difícil com a arte contemporânea, e até com a clássica, mas a fruição é sempre possível.”

Particularmente notável é a exibição, pela primeira vez, de 40 estudos que Álvaro Lapa deixou. Esses papéis fazem parte de um conjunto de três centenas, até há pouco tempo na posse dos herdeiros do artista e entretanto adquirido pela Fundação Gulbenkian. “É uma importante colecção de estudos e constitui de alguma forma um vocabulário que ele iria usar ao longo de mais de 40 anos de trajetória artística”, segundo Miguel von Hafe Pérez.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O autodidata surrealista

Nascido a 31 de julho de 1939, Álvaro Lapa passou a infância e a adolescência em Évora. O pai foi preso quando ele tinha oito anos e mãe e os irmãos fixaram-se no Barreiro. Lapa foi criado pelos padrinhos na cidade alentejana e teve Vergílio Ferreira como professor, o que o iria marcar. Em 1956, mudou-se para Lisboa, frequentou a Faculdade de Direito, sem terminar os estudos, e logo em 1964 fez a primeira exposição individual – uma das exposições inaugurais da mítica Galeria 111, de Manuel de Brito.

A exposição está patente em Serralves até 13 de maio

Em 1975, concluiu uma licenciatura em filosofia e dois anos depois publicou o primeiro livro, Raso Como Chão. Estabeleceu-se no Porto como professor da Escola Superior de Belas-Artes e alcançou na década de 80 grande reconhecimento como pintor, embora com fraca receção crítica. Veio a morrer em Matosinhos, de cancro, a 11 de fevereiro de 2006.

Sem formação académica em artes plásticas, Álvaro Lapa foi um autodidata sob influência do surrealismo, de Jack Kerouac e William S. Burroughs, da filosofia zen, do imaginário dos excluídos, da literatura sem convenções.

“Nunca foi um artista comercial, apesar da visibilidade que alcançou nos anos 80, através, por exemplo, da Galeria Valentim de Carvalho. Esteve sempre à margem desse circuito, interessava-se por outras questões”, refere o comissário. “Ele afasta-se da convencionalidade instituída, daquilo que é o bem fazer pictórico, cria ruma linguagem muito própria. Tem uma admiração profunda por um determinado surrealismo, o surrealismo que não se deixa ancorar em convenções, mas não é surrealista e não pode ser enquadrado em nenhuma corrente. Há uma aproximação ao pintor americano Robert Motherwell, por exemplo, mas aquilo que torna interessante é a dispensa de qualquer encaixe num determinado estilo.”

Ainda segundo Miguel von Hafe Pérez, “No Tempo Todo” revela um Álvaro Lapa de pensamento político bem definido, antes e depois do 25 de Abril de 1974, mesmo se nem sempre explícito. “A série Escuro, anterior a 74, faz alusão a um regime totalitário e a um isolamento compulsivo, e depois da revolução, quando se pensava que iria rejubilar, apresenta um exposição, logo em 1975, com uma visão negra e critica da sociedade”, diz o comissário.

A exposição em Serralves mantém-se até 13 de maio e inclui um ciclo de artes performativas, cinema e pensamento, de que se destacam uma nova versão do espetáculo “Raso como o Chão”, de João de Sousa Cardoso, dia 18 de fevereiro, e a performance “O Praner de Urizar”, de Von Calhau!, dia 28 de abril.