Apesar da postura provocatória do título, é mais do que óbvio que o sucesso astronómico de Minecraft se deve ao quão inovador e abrangente o jogo conseguiu ser desde a sua criação. Demarcado pela sua estética poligonal e pouco exigente do ponto de vista de recursos técnicos para o correr, Minecraft definiu a tendência dos jogos de construção. O seu sucesso foi tão grande que bastariam os 2,5 mil milhões de dólares pagos pela Microsoft para adquirir a Mojang e os direitos de Minecraft para a argumentação sobre a sua relevância terminar por aqui.

Foi também graças a este jogo (entre outros casos como GTA) que o conceito de sandbox (a possibilidade literal de estarmos num jogo e fazermos o que quisermos sem imposições de direcção pré-estabelecidos) acabou por ficar tão impregnado no mercado contemporâneo. O problema que sempre sentimos com Minecraft e com os seus muitos clones é que esta liberdade total e a falta de um objetivo claro acabou por funcionar no efeito inverso, e tornar-se redutora. Quando podemos fazer (virtualmente) tudo num mundo digital e alterá-lo a nosso bel-prazer incorremos num risco de monotonia, já que essa liberdade é quase a única força-motriz do próprio jogo. E foi sempre essa sensação de liberdade total que rapidamente se esgota sem uma direcção clara aquilo que nos afastou do género.

Mas a importância deste jogo sentiu-se e sente-se ainda hoje, com muitas das ideias de recoleção de materiais, construção poligonal e sobrevivência a serem reproduzidos e aplicados em jogos de géneros distintos. Esse contágio criativo não se resume a jogos novos criados “a partir do zero”. No ano passado falámos aqui da série Dragon Quest, criação de Akira Toriyama, conhecido mundialmente por ser o autor de Dragon Ball. O recém lançado Dragon Quest Builders é mais um spin-off da série original (que é uma das géneses dos japanese role-playing games) e também um cruzamento com elementos de Minecraft.

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A história de todos os Dragon Quest é uma lenda linear medieval: conduzir o herói a derrotar o dragão (ou o Senhor dos Dragões) e salvar o mundo, mas Dragon Quest Builders vem inverter por completo esta linha narrativa. O herói cedeu ao apelo do mal e aceitou governar o mundo ao lado do Senhor dos Dragões, acabando por ser traído por este e finalmente derrotado, deixando o mundo de Alefgard (onde decorre a história) dominado por monstros. Uma das consequências desta conquista atípica do mal sobre o bem é que os humanos sobreviventes foram ao longo do tempo perdendo a capacidade de criar e de construir algo novo.

Num mundo sem um herói e sem capacidade para se reconstruir, acaba por cair o manto dessa responsabilidade sobre nós, que encarnamos o papel do Construtor, a única entidade no mundo que tem a capacidade de criar.

Este é o fundamento que explica a interligação conceptual entre o mundo de fantasia medieval de Dragon Quest com as lógicas de Minecraft. Mais do que combater monstros – que também o fazemos – grande parte do nosso trabalho de reconstruir e iluminar novamente Alefgard passa por reedificar a civilização. Para isso, temos de construir ferramentas, como espadas e martelos, que nos vão permitindo recolher materiais das árvores, dos solos, das pedras e até da flora e fauna locais. E com estes elementos de recolha ir descobrindo “receitas” para construir paredes, portões, mobílias, e novas e mais poderosas ferramentas. Sempre numa lógica de escala em que necessitamos de uma ferramenta mais comum para ir conseguindo obter materiais mais raros, para com eles construir ferramentas “mais avançadas”, e assim sucessivamente.

Mas ao contrário de Minecraft, que na sua base é um “mero” sandbox, Dragon Quest Builders coloca-nos uma estrutura de progressão por capítulos e com um objetivo claro. A forma e o ritmo com que atingimos esse objetivos (e as muitas quests que os restantes habitantes nos dão) depende apenas de nós. Dragon Quest Builders consegue interligar a liberdade de um sandbox em mundo aberto mas dar-nos em simultâneo um propósito. Indica-nos o ponto de chegada mas permite que sejamos nós a definir como e quando lá chegaremos.

Apesar de ter sido lançado no final de 2016 para PlayStation 4 e PlayStation Vita, a chegada à Nintendo Switch no próximo dia 9 de Fevereiro demonstra que o aspeto híbrido da consola é perfeito para este jogo. Já que podemos jogar Dragon Quest Builders ao nosso próprio ritmo, podemos simplesmente relaxar em qualquer lado, pegar na consola e dedicar-nos apenas a partir pedras ou a escavar e a recolher materiais. Ou pegar nesses materiais e começar a construir a nossa cidade de forma sólida, para que os seus habitantes estejam protegidos contra os ataques de monstros que ocorrem quando a noite cai.

Há uma pequena e subtil adição mecânica que os criadores da Square Enix implementaram em Dragon Quest Builders, e que o tornou ainda mais interessante quando comparado com outros jogos do mesmo género. Um dos desafios destes jogos é a gestão do espaço limitado da nossa “mala” para guardar materiais. Quando encontramos novos materiais temos de deitar fora outros se não tivermos como guardar todos. Sendo um jogo de fantasia medieval, Builders encontrou uma solução curiosa: sempre que temos o nosso inventário cheio, os novos materiais que recolhemos são automaticamente enviados para um baú mágico na nossa cidade. Este parece um ponto menor, mas o facto de que não termos de sacrificar materiais ou viagens intermináveis para guardar recursos na cidade torna este jogo muito mais divertido e menos frustrante.

Com uma história linear e a quebrar com os clichés de toda a série, Dragon Quest Builders conseguiu unir na perfeição o mundo criado por Toriyama com a fórmula de Minecraft. Mas fê-lo de forma mais apelativa e menos monótona, criando-nos um propósito e um direccionamento que não é habitual neste género. E por ser um jogo de liberdade quase total em que podemos jogar à nossa velocidade é o jogo perfeito para conviver com a alta adaptabilidade da Nintendo Switch.

Ricardo Correia, Rubber Chicken