Durante quase duas horas, 15 pessoas sentaram-se à volta de uma mesa no Pestana Palace, em Lisboa. A pretexto de tomarem o pequeno-almoço juntas, juntaram-se para falar de assuntos sérios, em jeito de debate descontraído e informal. Sim, porque também se pode falar de mobilidade sustentável entre queijo e fiambre, pão e manteiga, café e sumos de fruta. Mas o prato forte desta conversa era outro: “Tendências da Mobilidade Eléctrica 2018” – o tema da primeira 6.ª etalk pela ZEEV, que o Observador cobriu em exclusivo.

Carlos Jesus (ZEEV), Rui Bica (BMW), Rui Gonçalves (Fidelidade), Henrique Sanchez (UVE), Robert Stussi (consultor), Simone Carvalho (Observador), Ricardo Oliveira (Renault), José Pontes (EV Volumes), João Guerra (ZEEV), Pedro Domingues (Efacec), Bernardo Villa (Daimler), Luís Rodrigues (ZEEV), Miguel Branco (SIVA), Alexandre Videira (Mobi.E) e António Sá da Costa (APREN)

Para lhe abrir o apetite ou para lhe facilitar a digestão de tanta informação – porque, acredite, muito foi dito –, fique com as principais questões levantadas neste encontro, ponto por ponto.

Em 2017, venderam-se muitos carros eléctricos em Portugal?

De acordo com José Pontes, analista de vendas e dados na EV Volumes, considerando híbridos plug-in (PHEV) e veículos eléctricos (EV), o mercado português assistiu a um crescimento de 120% das vendas, para as 4.200 unidades. Com uma nuance: ao contrário do que acontece em muitos outros países europeus, onde os PHEV reclamam o maior incremento, em Portugal os híbridos plug-in e os EV cresceram de forma equiparada, ao mesmo ritmo. O que, elogia José Pontes, “é positivo”.

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Mas, para o representante da EV Volumes, “mais interessante do que analisar as vendas, é ver as alterações que estão a acontecer no mix dos combustíveis”. Ora, nota José Pontes, “o diesel perdeu 4% de share em 2017, caindo para 61%” – tendência de queda essa que foi particularmente evidente em Dezembro, mês em que o gasóleo perdeu 9%, ao passo que os híbridos (normais e plug-in) e os eléctricos tiveram 6% de share, com os híbridos plug-in e os EV a representarem 3%.

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Em 2018, a tendência será para manter ou acelerar este ritmo de crescimento?

Partindo do pressuposto que o mês de Dezembro pode servir como uma espécie de barómetro para 2018, José Pontes antecipa uma tendência de “crescimento acentuado”, apontando para que os híbridos plug-in e os EV venham a ter uma percentagem de 3 a 4% do mercado.

Ainda que concorde com a perspectiva de crescimento, o coordenador em Portugal da BMW i (a submarca eléctrica da marca alemã) não se mostra tão confiante numa extrapolação a partir das vendas registadas no último mês do ano. “Dezembro é, tipicamente, aquele mês em que as empresas se lembram que há aquele IVA para pagar, aquele bocadinho de liquidez de tesouraria. Creio que, entre os esquecidos e os last minute, o aumento das vendas reflecte, em grande parte, a tentativa de acabar o ano fiscal com alguma vantagem”, opina Rui Bica.

Podemos olhar para o mercado dos veículos puramente eléctricos de duas formas: o ano passado representaram 0,7% do mercado – foi um crescimento exponencial, mas não deixa de ser 0,7%. Ou seja, há 99,3% que ainda não são”, aponta por seu turno o director de Comunicação e Imagem da Renault Portugal. “Em 2018, a nossa expectativa é que possa chegar a 1%”, antecipa Ricardo Oliveira.

Quem é que está a puxar pelo mercado?

“São as empresas que mais revelam interesse pelos EV, devido aos incentivos que o Estado dá, são os early adopters, ou os particulares também já começam a fazer a opção por uma mobilidade mais amiga do ambiente?” Esta questão, colocada pelo responsável pelo marketing da ZEEV, João Guerra, mereceu o consenso na sala: se as vendas de automóveis eléctricos ou com algum tipo de electrificação têm vindo a duplicar de ano para ano no mercado português isso deve-se, sobretudo, às empresas. O que, para a BMW, não deixou de ser uma surpresa.

O trabalho do grupo tem sido electrificar a gama. Começámos com o i3 e com o i8, este um pouco mais exclusivo, e depois acabámos por electrificar diversos modelos. De início, até pensámos que uma gama superior plug-in com uns 30/40 km de autonomia seria para os early adopters, mas o corporate é que está a puxar claramente”, partilha Rui Bica.

Os números relativos às vendas de híbridos plug-in comprovam isso mesmo, com José Pontes a notar que os veículos deste tipo mais vendidos no mercado nacional são o 330e e o 530e da BMW, surgindo em 3º lugar “um clássico”: o Mitsubishi Outlander PHEV.

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Quais as principais barreiras ao crescimento dos eléctricos?

Habitualmente, a ainda escassa oferta de eléctricos e a respectiva autonomia são apontadas como duas das principais limitações à implementação deste tipo de veículos. Serão as únicas?

Para Ricardo Oliveira, o maior obstáculo é mesmo o desconhecimento: “O primeiro travão à mobilidade eléctrica foi que as pessoas, por um conjunto de circunstâncias, fixaram-se nos inconvenientes – ‘é caro, tem pouca autonomia, onde é que eu vou carregar isto?’ O consumidor, de uma forma geral, não faz a menor ideia do real benefício de utilização de um carro eléctrico.” A sustentar esta afirmação, Ricardo aponta uma acção da Renault, em que a marca reuniu 400 participantes:

Depois de efectuado o percurso, sabem quantos sabiam a quanto correspondia o consumo que tinham feito? Zero! A esmagadora maioria das pessoas não faz ideia de quanto é que custa um kilowatt hora (kWh), logo, é incapaz de saber qual é o custo de utilização de um automóvel eléctrico.”

Sem o saberem, defende, não se apercebem da poupança associada à mobilidade eléctrica. Ao invés disso, continua, concentram-se naquilo que entendem ser os inconvenientes: a autonomia, por exemplo. “Sejamos francos: a distância de Cascais a Lisboa é sempre a mesma, seja feita num carro a gasóleo ou num EV. Um eléctrico que faça 200 km dá para muita coisa”, afirma Ricardo Oliveira. Bernardo Villa, da Daimler, não podia estar mais de acordo: “A maioria dos utilizadores faz 40 a 50 km por dia. A obsessão com a autonomia é uma doença psicológica.” E o próprio presidente da UVE (Utilizadores Veículos Eléctricos) desdramatiza o problema do alcance, na primeira pessoa. “Ando de carro eléctrico desde 2011 e nunca fiquei sem bateria, coisa que na minha anterior vida fóssil fiquei várias vezes sem combustível”, observa Henrique Sanchez.

Rui Bica complementa também que uma real limitação prende-se com a falta de informação acerca dos estímulos à aquisição de automóveis eléctricos. “Julgo que grande parte das pessoas não tem ideia se este ano se mantém ou não o incentivo de 2.250€. Basicamente, porque é muito difícil encontrar informação concertada sobre o tema. Numa altura em que há muita iliteracia a este respeito, e até alguma contra-informação, esta lacuna deveria ser rapidamente sanada”, sugere.

Que efeito têm os incentivos estatais no mercado?

“Temos de ter presente que grande parte dos países europeus desenvolveu a mobilidade eléctrica com recurso a incentivos. Não é o modelo natural, mas é aquele que tem de ser adoptado para o kick-off. O que nós lamentamos é que estes incentivos sejam em número muito limitado, o que só por si já é muito castrador”, refere Bernardo Villa.

O responsável pelos estudos estatísticos e planeamento na SIVA, Miguel Branco, reforça essa ideia com um exemplo nórdico: “A Noruega é um caso muito especial, porque tem uma bateria gigantesca de incentivos. Desde não pagar impostos a não pagar o estacionamento ou a entrada nas cidades, há uma lista interminável de estímulos à aquisição de veículos eléctricos. E isso reflecte-se, naturalmente, nas vendas.”

Contudo, o presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN), António Sá da Costa, apoia-se num estudo efectuado pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, a pedido da APREN, para partilhar uma conclusão surpreendente:

A partir de 2020, um consumidor 100% informado, em Portugal, não compraria outra coisa a não ser um EV. E este estudo não contemplava sequer incentivos fiscais.”

Está a ser complicado, para as empresas, fazer o shift para os eléctricos?

“Basta que o fiscalista saiba que se uma empresa tiver um posto de carregamento pode deduzir 130% do valor de electricidade como um custo e a cultura empresarial começa a mudar”, atira Sá da Costa. Mas, na opinião de Ricardo Oliveira, nem tudo são números e não há uma transição para os eléctricos, em termos de frotas, olhando exclusivamente para os benefícios que as empresas possam retirar dessa opção. “Ainda não chegámos ao ponto em que a empresa dá um colaborador um carro eléctrico e diz ‘desenrasca-te’. As empresas estão a comprar EV compatíveis com actividade que desenvolvem”, diz, sublinhando que essas mesmas empresas “criam as suas próprias condições” para se adaptarem à mobilidade eléctrica. Sá da Costa entende que o caminho é esse e aponta um exemplo internacional: “Em 2014, fui visitar a fábrica da Tesla em Silicon Valley  e muitas das empresas, da Google à Amazon, tinham muitos postos de carregamento nos parques de estacionamento e davam a electricidade, para fomentar que os seus colaboradores tivessem EV.”

Mas, e por cá? Do lado dos colaboradores, as empresas não se debatem ainda com algumas resistências? Segundo Rui Bica, a experiência do Grupo BMW, em Portugal, revela precisamente o oposto: “Internamente, temos um programa de viaturas para colaboradores em renting e criámos um benefício associado à escolha de um EV. Quem o fizesse, tinha a garantia de que a empresa instala uma wallbox no seu lugar de garagem e ofereceria a electricidade. As pessoas, que sabem que gastam 100 ou 150 € por mês em combustível, rapidamente se aperceberam da vantagem. Assim, conseguimos que não só uma percentagem significativa ande de carro eléctrico, como a percepção geral é de que andam mais. Aliás, esta é também a realidade dos nossos clientes de EV, pois alguns percorrem mais de 50.000 km por ano, porque o raciocínio é um pouco este: ‘quanto mais andar, mais depressa se paga’.”

Como é que está a ser desenvolvida a infra-estrutura pública da MOBI.E?

Com todos os presentes a concordarem com o facto de a infra-estrutura de carregamento ser crucial para a disseminação da mobilidade eléctrica, as atenções à mesa viraram-se para o presidente da MOBI.E, Alexandre Videira, que fez o ponto da situação:

Em 2017, fizemos esforços para a implementação da carga rápida, processo que está prestes a ficar concluído. Por outro lado, temos informação de que também os privados estão investir neste sentido, o que nos leva a crer que chegaremos ao final de 2018 com uma rede de postos de carga rápida (PCR) relativamente interessante a cobrir praticamente todo o país.”

Segundo ele, este é também o ano em que a MOBI.E tem previsto a extensão da rede a todos os concelhos do país. “Estamos neste momento numa fase de avaliação das propostas em concurso, pelo que nos próximos meses vamos começar a instalar postos de carga normal (PCN) em cada concelho. Obviamente, estamos a falar de 22 kW de não de carga rápida, mas no final de 2018 deveremos ter 302 PCN, que poderão disponibilizar 604 pontos de carga para EV, o que irá permitir deslocações pelo país inteiro sem preocupações com a autonomia.”

Portugal continental no final de 2018, em termos de Postos de Carregamento Normal

Em 2018, a energia nos postos de carregamento vai passar a ser cobrada?

A resposta é sim. “Este é o ano em que vamos começar a ter pagamentos. Primeiro, nos PCR e, numa segunda fase, nos PCN”, confirma Alexandre Videira. Quando e quanto são, no entanto, questões que o presidente da MOBI.E se escusa a concretizar. “Estamos a trabalhar com todos os operadores, no sentido de garantir as melhores condições possíveis para que que os utilizadores tenham uma boa experiência de utilização do EV. Por melhor experiência de utilização, entendemos uma boa qualidade do serviço que é prestado, a um preço razoável, e é nisso que estamos empenhados.” Mais não diz.

Os 64 PCR previstos

Segundo ele, o modelo existente em Portugal é diferente do que se passa no resto da Europa. “Uns dizem que é mais avançado, outros que é mais atrasado. As opiniões dividem-se, mas a verdade é que temos o único modelo onde conseguimos, de uma forma linear, vender energia aos utilizadores de EV em todos os espaços do país”, sublinha. Contudo, tal obriga a um complicado esforço de articulação. “Isto resulta de uma interligação entre o que é a mobilidade eléctrica e o sector eléctrico; uma interligação complexa que envolve um conjunto muito alargado de entidades. Só para termos uma noção, neste momento, temos 18 operadores de postos de carregamento, cinco comercializadores de electricidade para a mobilidade eléctrica e, a juntar a isto, a EDP Distribuição, que é o maior operador de rede de baixa tensão. Enfim, estaremos a falar de 40 a 50 entidades envolvidas neste processo.”

A exemplo do que a Tesla faz, há espaço neste modelo para que outras marcas avancem pelo mesmo caminho?

A pergunta colocada por Carlos Jesus, fundador da ZEEV, conduziu a uma resposta que deixa em evidência as zonas cinzentas que ainda há por aclarar, no que toca à venda de energia eléctrica.

“ O que a legislação nacional quer garantir é que há segurança e uma boa qualidade do serviço que é prestado aos utilizadores de EV, sempre que esses utilizadores carregam os seus carros em espaços de acesso público”, começa por esclarecer Alexandre Videira. “O que está previsto é que, em espaços públicos, os pontos de carregamento têm de estar ligados ao sistema nacional. Logo, qualquer pessoa pode utilizar esses postos de carga e comprar a electricidade ao vendedor que quiser”, prossegue. “ Mas o caso da Tesla é diferente, porque o que se passa nos espaços privados é da responsabilidade dos privados.”

De acordo com o presidente da MOBI.E, há uma directiva europeia que define o que uma estação de carregamentos tem de ter, no mínimo, em termos técnicos. “Pessoalmente, duvido que a Tesla cumpra isso. Mas lá está, essa directiva aplica-se a espaços de acesso público e não a espaços privados, porque uma coisa é vender electricidade via sistema nacional de mobilidade eléctrica, outra coisa é fazê-lo via sector eléctrico.”

Seja como for, ficou claro que é expectável que as restantes marcas sigam o exemplo da Tesla e comecem, elas próprias, a investir numa rede de abastecimento rápido. Miguel Branco lembrou, a propósito, a joint-venture Ionity, que junta os grupos BMW, Daimler, Ford e Volkswagen para construir uma rede de carregamento, capaz de fornecer energia para 400 km em apenas 15 minutos, composta por cerca de 400 estações de carga rápida com capacidades até 350 kW.

Quando questionado se Portugal está no mapa deste tipo de investimentos, Alexandre Videira garante que essa “é uma porta que está aberta”, adiantando ainda que a “MOBI.E tem tido várias conversações” com esse tipo de entidades. “Admito que Portugal venha a ser também alvo de investimentos nesse sentido”, antecipa.

Já José Pontes considera que “todos os construtores vão acabar por replicar o percurso da Tesla, que começou por instalar os supercarregadores no centro da Europa, porque era supostamente aí que existia maior procura, e depois foi lentamente ampliando a rede”.

E quando houver um boom nas vendas, a rede eléctrica aguenta?

Outro dos pontos em comum entre a maioria dos intervenientes foi o facto de a actual rede de carregamento ser deficitária, quer do ponto de vista da cobertura, quer até do ponto de vista do funcionamento dos postos de carga. Henrique Sanchez não deixa margens para dúvidas a esse respeito: “Numa altura em que a oferta de modelos tem vindo a crescer e as vendas de VE não param de aumentar, aquilo que nos deixa mais desgostosos é o ritmo de instalação e de reparação da rede pública de carregamentos, que claramente não tem acompanhado o crescimento do mercado. Isso leva a que, sempre que alguém nos pede aconselhamento acerca do carro eléctrico que deve comprar, a nossa resposta seja sempre a mesma: ‘Tem onde carregar? Pode carregar em casa ou no trabalho? Então, pode comprar qualquer automóvel eléctrico’.”

Sá da Costa não só concorda, como sublinha ainda mais a necessidade de rapidamente ultrapassar essa limitação. “A meta para 2020 é ter 60% de electricidade proveniente de fontes renováveis, em 2030 mais de 80% e, se chegarmos a 2040 com 100% de renováveis (em balanço, ou seja, a produção de electricidade renovável é superior ao consumo), não será nada do outro mundo. O que nos preocupa é como é que vai ser o consumo, nomeadamente no que toca ao carregamento de EV”, afirma.

Se passássemos todos os veículos com motores de combustão interna a EV, a quantidade de energia eléctrica que iríamos passar a consumir seria apenas mais 20%. Temos capacidade de suprir isso. O problema está no requisito de potência e não na energia. Dou o meu exemplo: mudei a minha instalação de monofásica para trifásica sem qualquer problema, mas vamos imaginar que todos os moradores de um dos prédios habitacionais da Expo queriam fazer o mesmo. Não vai haver potência disponível no ramal para tanta gente”, adverte.

Por essa mesma razão, é da opinião que se deve “fazer um estudo para perceber como é que a infra-estrutura tem de ser adaptada, reforçando-se a rede em potenciais locais de carregamento, de modo a que seja possível entregar a potência necessária”.

No entanto, os avanços tecnológicos também tenderão a optimizar os processos de carregamento. “O smart charging vai buscar informação ao computador do carro acerca de quantos quilómetros percorre e, em função disso, fará uma gestão inclusivamente com o operador de rede eléctrica. Está toda a gente a trabalhar nisto e eu penso que dentro de dois anos isso já será uma realidade”, aponta Pedro Domingues, da Efacec. Isso não só é positivo, como é desejável, já que se espera uma inversão na estrutura de preços da electricidade. “Estamos a fazer outro estudo para 2040 e, até lá, a evolução da tecnologia de produção de electricidade vai levar a um aumento da proveniente da energia solar, pelo que a electricidade vai passar a ser mais cara à noite do que durante o dia”, avança o presidente da APREN.

E o que estão a fazer as seguradoras em relação aos EV?

Com o aumento de veículos eléctricos em circulação, será inevitável que se comecem a registar sinistros envolvendo este tipo de automóveis. Nesse caso, os peritos estão preparados para saber avaliar? Rui Gonçalves, do marketing da Fidelidade, reconhece que este “é um mundo novo” para o qual as companhias seguradoras têm obviamente de se começar a preparar para acompanhar a evolução.

“Estamos a trabalhar a dois níveis, um puramente de condução, ou seja, a tentar identificar se há factores de risco específicos por os VE serem carros diferentes dos outros. Mas a matriz de formulação do preço [da apólice] é a mesma. Enquanto companhia, o que pretendemos é criar um ecossistema em termos de solução seguradora, que vai da contratação à formação de produto, sem esquecer as técnicas de venda, o próprio marketing e, claro, a avaliação do sinistro”, explica Rui Gonçalves. “Por outro lado, estamos a trabalhar também numa solução mais abrangente em termos de mobilidade, porque acreditamos que a tendência será para que as pessoas queiram não um seguro para o automóvel – que é obrigatório por lei –, mas sim uma solução que as proteja, estejam elas a andar de bicicleta ou de automóvel partilhado. E aí temos que avaliar a exposição ao risco”, acrescenta.

Com os carros autónomos é inevitável que os preços das apólices baixem, uma vez que o risco de acidentes diminui?

Rui Gonçalves não está assim tão seguro disso. Segundo ele, sendo certo que o risco de acidentes diminui, não é certo que o preço dos seguros também baixe. Até porque, realça, “no caso do seguro contra todos os riscos, as reparações poderão vir a ficar muito mais caras do que hoje, pelo enorme volume de sensores incorporados em cada carro.”

Para o quadro da Fidelidade, muito antes de se falar em valores, será preciso determinar a quem cobrá-los. “Neste momento, a discussão faz-se acerca de quem é a responsabilidade: se do utilizador ou se do carro. Mas tudo aponta para que a responsabilidade seja do veículo e do construtor.” Rui clarifica que será sempre o seguro do veículo o primeiro a ser accionado, sendo que depois, caso se prove que a viatura estava em condução autónoma e algum dos sistemas falhou e não conseguiu evitar o acidente, a seguradora passa a responsabilidade para o seguro do fabricante.

Ricardo Oliveira, por seu lado, exclui por completo a hipótese de a responsabilidade ser sempre do construtor: “Se um fabricante for responsável por todos os potenciais acidentes que um carro autónomo da sua marca possa vir a ter, nunca vão existir automóveis autónomos.” Ao que Carlos Jesus aventa a possibilidade de se alterar o modelo de formulação do produto, para ultrapassar isso. “Da mesma maneira que actualmente os construtores já incluem no valor do carro uma série de taxas, desde os pneus e impostos ambientais, passam a incorporar também o custo do seguro”, sugere. Sucede que, lembra o director de Comunicação e Imagem da Renault Portugal, “o carro vai ter que ter sempre seguro, isso é inevitável, agora quem é que será o responsável pelo seguro é outra coisa, porque um carro não tem personalidade jurídica. Portanto, aquilo que eu pergunto é quando dois carros circulam sozinhos e têm um acidente, de quem é que vai ser a responsabilidade?” Ora aqui está uma questão que apaixona, divide e que, de momento, não tem resposta concreta. Não, até que a legislação e a regulamentação sejam capazes de lidar com todas as preocupações éticas levantadas pela evolução da tecnologia.

Quando?

Ninguém se atreve a fazer previsões, seja em relação à viragem por completo para os EV, seja em relação ao advento da condução autónoma.

Neste momento, o cerco ao diesel, por cá, é puramente psicológico. Uma empresa continua a ter um benefício real em adquirir um automóvel a gasóleo. O que existe é uma mudança da opinião pública e a preocupação com o valor que o veículo pode vir a ter daqui a cinco anos, se houver uma alteração política. E essa alteração pode acontecer de uma hora para outra, o que leva a que as pessoas – que sabem que já há cidades em que os veículos a combustão, por exemplo, não vão poder entrar – tenham começado a preocupar-se que o mesmo possa vir a acontecer cá”, diz Ricardo Oliveira.

“A Noruega decidiu que, a partir de 2025, não vai sequer ser possível matricular um automóvel a combustão. A Holanda já determinou a mesma coisa e há vários países que estão a seguir esse caminho. Este é um movimento imparável, seja porque há metas a cumprir em termos das emissões de CO2 da frota de veículos novos postos em circulação pelos fabricantes, seja porque os próprios consumidores estão a mudar de hábitos. Querem ter um comportamento verde e, por isso, muito brevemente, o veículo vai ser eléctrico, autónomo, partilhado e conectado”, completa Miguel Branco.

Ninguém arrisca projecções de datas, mas é consensual que o automóvel vai deixar de ser um produto para passar a ser cada vez mais um serviço. Quando, só o tempo o dirá.