O que Sam Mendes faz em “1917”, já Alfred Hitchcock fez muito antes dele em “A Corda” (1948). Um filme rodado no que parece ser um único plano-sequência, mas que na realidade foi habilmente montado para o simular. Só que Hitchcock fez a montagem de forma tradicional, com os meios de que dispunha na época, enquanto que Mendes recorreu a efeitos digitais para juntar os vários “takes” sem se verem as costuras e dar a impressão de continuidade. E enquanto que a fita de Hitchcock é um policial que não sai do mesmo cenário de interiores, um apartamento em Nova Iorque, “1917” é muito maior em escala, e muito mais complexo, espectacular e dramático, já que se passa nas trincheiras da I Guerra Mundial.

[Veja o “trailer” de “1917”:]

A história de “1917”, situada em França, é o contrário da de “O Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg. Em vez de um grupo de soldados que são mobilizados para salvar um só, aqui dois militares ingleses são incumbidos da missão de salvar 1600 dos seus camaradas. O cabo Blake (Dean-Charles Chapman) e o cabo Schofield (George McKay) são chamados ao seu general (Colin Firth a fazer uma “pontinha”) e informados que as comunicações estão em baixo. Por isso, eles vão ter que atravessar a “terra de ninguém” e avisar um batalhão inglês que vai fazer um ataque matinal às posições alemãs, para o anular, porque irá cair numa terrível armadilha preparada pelo inimigo, que fingiu a retirada. Se eles falharem, a vida de 1600 soldados está em perigo. E o irmão mais velho de Blake é um deles.

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[Veja uma entrevista com Sam Mendes:]

O dispositivo cinematográfico posto em prática em “1917” por Sam Mendes e pelo seu director de fotografia, o magistral Roger Deakins, não se quer comprazer no exibicionismo nem monopolizar a atenção do espectador. Mas a verdade é que não só alguns dos melhores momentos do filme não têm a ver com a execução técnica e com o efeito imersivo e de partilha do ponto de vista dos protagonistas pretendido por Mendes e Deakins (ver a sequência nas trincheiras alemãs e no túnel armadilhado, a chegada à quinta de Blake e Schofield, que faz lembrar àquele o pomar da mãe, o incidente com o “sniper” na ponte destruída), como também, mesmo não sendo essa a intenção do realizador, há alturas em que é impossível que a nossa atenção não seja desviada dos protagonistas para a câmara e as suas deambulações, acabando por expor o artifício e anular o desejado efeito de discrição.

[Veja uma entrevista com o diretor de fotografia Roger Deakins:]

Sucede também que, apesar deste efeito formal de indesmentível complexidade e mestria técnica, que exigiu um aturado trabalho dos atores e com eles, e de cuidadosíssima encenação e  continuidade, “1917” tem uma história convencional, a “missão suicida em corrida contra-relógio”. E a partir de certa altura, quando os dois soldados deixam a “terra de ninguém”, o realismo sujo, feio e chocante próprio de um campo de batalha como aquele vai-se esbatendo e o filme começa a assemelhar-se cada vez mais, conceptual e visualmente, a um jogo de vídeo. As peripécias e os horrores da guerra são atirados para cima das personagens e estas progridem pelo terreno como se estivessem a atravessar os vários níveis de um jogo passado na I Guerra Mundial (veja-se a sequência nocturna na vila de Écoust, a mais claramente artificial de toda a fita).

[Veja uma entrevista com os dois atores:]

O filme foi inspirado a Sam Mendes (que também escreveu o argumento, com Krysty Wilson-Cairns) pelas histórias contadas pelo avô, que combateu na então chamada Grande Guerra, e o realizador procurou que “1917” tivesse o máximo de autenticidade na recriação do ambiente das trincheiras, das situações militares do conflito e dos horrores do cenário de combate. Mas essa intenção é sabotada pela tirania do politicamente correto, que aqui obriga a polvilhar as fileiras inglesas de soldados negros. Ora os exércitos da I Guerra Mundial estavam rigorosamente segregados e as tropas nativas e coloniais serviam em regimentos próprios. Impor a “diversidade” onde ela nunca existiu é, cada vez mais, um dos absurdos do cinema contemporâneo.   

Se há um grande, impressionante e pungente filme passado na I Guerra Mundial feito nos últimos anos, esse filme é “Cavalo de Guerra”, de Steven Spielberg (2011), e não este “1917” inegavelmente hábil e competentíssimo do ponto de vista técnico, mas de resto bastante sobrevalorizado e hiperpublicitado.