Era budista, conheceu o Dalai Lama e acreditava que o silêncio era a única forma de contactar verdadeiramente consigo mesmo. Mas dificilmente terá esquecido o dia que o mais inesperado dos sons cortou a manhã. “Acordou com uma vaca na piscina em Belas. Decidiu aos 90 anos, sozinha, que ia tirar a vaca da piscina com um pau e frases de incentivo. Não conseguiu”, recorda um dos bisnetos, Luís Freitas Branco, que confirmou ao Observador a morte de Maria Helena Freitas Branco, traída este domingo pelo coração, aos 99 anos.

A pioneira do yoga em Portugal despediu-se a escassos meses de completar um século de vida. Uma vida longa e rica — e nem por isso fixada nas recordações. “Acreditava inclusive no momento presente a não gostava de reviver o passado”, frisa Luís, recordando a a veterana que morou em Belas desde os anos 80. Uma mãe, avó, bisavó e trisavó cheia de planos para o futuro. “Os planos dela para este ano era fazer um quadro com a família toda e com os nomes em baixo para não se esquecer de ninguém”, acrescenta ainda o bisneto.

Em 2018, a revista Sábado narrava a rotina que mantinha diariamente, apesar da idade avançada. Maria Helena acordava pelas cinco da manhã para exercícios respiratórios e desfrutava do tempo e da natureza no jardim da sua casa, em Belas. “Famosa pelas suas aulas, sempre concorridas, a ex-professora teve uma vida preenchida de aventuras: escapou à Segunda Guerra (1939-1945), ganhou por acaso um torneio de salto em altura, formou-se em composição no Conservatório e apaixonou-se, aprendeu dança, tocou piano, falou alemão e simpatizou com o budismo até fixar-se no yoga”, resumiam.

© José Rebelo de Andrade

Nascida a 26 de abril de 1920, filha de uma suíça, Marie Anna Helena Von Hoffman, e do português António Barros de Abreu, amigo de Afonso Costa, foi ainda no conservatório em Genebra que Maria Helena Freitas Branco tomou conhecimento desta disciplina pela primeira vez, como recordou ao Correio da Manhã em 2007. Na altura com 87 anos, fora homenageada pela Associação Lusa do Yoga, uma distinção que decorrera no Dia Mundial do Yoga, e que reuniu cerca de 400 pessoas em meditação no estádio do Restelo, onde se fizera acompanhar pela neta Sofia Sá da Bandeira. “Decidi que era minha intenção divulgar o yoga em Portugal. E assim foi. Cá não havia ninguém que conhecesse, mas consegui arranjar uma sala e mais tarde fui professora no Ginásio Clube Português durante dez anos”, explicou então a professora mais antiga no ativo. “Hoje, com a minha idade, continuo a meditar diariamente. É muito importante nomeadamente ao nível da respiração”, defendia, acreditando que cinco minutos por dia podiam ter o devido impacto no nosso “papel no mundo”.

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Mas nem só de yoga se fez o curriculum de Maria Helena, não fosse a música uma área quase obrigatória no seio da família. De resto, foi casada com o musicólogo João de Freitas Branco, com quem teve três filhos.”Apesar da minha bisavó estudar dança na Suíça no Instituto Jacques Dalcroze, também estudou piano no Conservatório de Genebra e foi professora de piano durante toda a vida (ensinou praticamente toda a família a tocar piano)”, descreve o bisneto, assinalando ainda as aulas com a lendária Isadora Duncan. Em vésperas da eclosão da II Guerra, Maria Helena e a irmã, a célebre bailarina Margarida de Abreu, encontravam-se no coração da Europa quando escutaram um discurso de Hitler pela rádio. Um ultimato que concedia 24 horas para os estrangeiros abandonarem a Áustria. Ambas chegariam a Lisboa num barco a vapor.

Para a história passa ainda outro detalhe delicioso do seu percurso, ainda jovem. Foi de forma quase aleatória que se inscreveu na competição nacional de salto em altura , acabando por ser coroada campeã nacional.

Um recorte de jornal de quando foi campeã nacional de salto em altura

Yoga, um regresso aos anos 70 em Portugal

“Já no declínio do regime fascista português, surgem, de forma organizada, instituições que disponibilizam aulas de yoga moderno ao público e que são lideradas por mulheres, como é o caso do Ginásio Clube Português no ano de 1973. Maria Helena de Freitas Branco consta nos registos da instituição como a primeira professora de yoga. Seguiu-se Clotilde Ferreira, entre outras professoras”, lê-se na tese de mestrado de Paulo Hayes, sobre O Yoga em Portugal: A Relevância do Yoga para uma Sociedade Multicultural, que reconstitui a prática da modalidade há quase 50 anos e analisa ainda a questão do género ao nível de corpo docente e dos alunos.

“Sabe-se que as práticas indianas, desde as suas origens até ao início do século XX, foram exercidas exclusivamente por homens. A inversão do paradigma – uma vez que hoje as aulas de yoga são frequentadas maioritariamente por mulheres – poderá estar relacionada com os movimentos de emancipação da mulher moderna, com a reconquista de direitos potestativos e com o interesse suscitado pelas finalidades estético-terapêuticas do yoga moderno postural. Sob proposta do vice-presidente do Ginásio Clube Português, Manuel Rodrigues, o yoga é aceite como nova modalidade desportiva, em reunião da direção no ano 1973. Outras modalidades, como karaté, musculação, badminton, foram também introduzidas nesse ano.”

Para termos uma noção do número de praticantes nesta instituição durante o ano letivo 1974/75, foi de 363, ascendendo a 375 praticantes no ano seguinte — algo que batia modalidades como as artes marciais, a musculação e mesmo o ballet, e que comprovavam o sucesso mesmo nos anos de arranque do yoga. Muitos dos iniciantes, e outros tantos alunos pelos anos fora, não esquecerão o seu nome. “Ensinou centenas de alunos a tocar piano e a praticar yoga com a mesma disposição gentil que criou uma imensa família”

O velório realiza-se esta segunda-feira às 17h30 na igreja de Belas. O funeral será terça-feira 16h na mesma igreja.