Treinos, exigência física, transpiração e medalhas: De um modo muito geral estas são as palavras que melhor descrevem aquilo que é estar numa prova olímpica. Por muito que 2020 seja ano do maior evento desportivo do mundo, aquele que para aqui é chamado nada tem a ver com o lançamento do peso, o curling ou qualquer forma de atletismo. O que aqui se destaca são as IKA/Culinary Olympics, ou seja, os jogos olímpicos da gastronomia que decorrem a partir desta sexta-feira e até 19 de fevereiro, em Estugarda, e onde Portugal volta a concorrer com duas equipas, uma de juniores e outra de seniores.

A sede da Associação de Cozinheiros Profissionais Portugueses (ACPP) é bem diferente do enorme pavilhão onde mais de 2000 chefs de 59 países vão estar a cozinhar, mas foi aí mesmo, nesse espaço lisboeta onde também se realizam cursos e onde mora “uma das maiores bibliotecas gastronómicas do país” (como disse o presidente da ACPP, Carlos Madeira), que ambas as equipas mostraram tudo aquilo que vão apresentar no grande evento onde Portugal já tem história — e palmarés.

A mesa de jantar improvisada onde o Observador provou alguns dos pratos que irão a concurso. Diogo Lopes/Observador

A competir desde 1900

Apesar de ser muito mais mediatizado o bi-anual concurso francês Bocuse d’Or, uma das várias grandes criações do icónico monsieur Paul”, este IKA/Culinary Olympics é bem mais antigo. É preciso recuar até 1900 para ver em Frankfurt aquilo que viria a ser esta importante competição que, por exemplo, só este ano vai contar com a apresentação de mais de 7000 menus completos. Nessa altura apenas quatro nações participavam e o objetivo do grupo de cozinheiros alemães que criou o concurso era melhorar o seu próprio trabalho graças ao que aprenderiam com o contacto com outros países.

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Foram precisos 92 anos e vários percalços (as guerras mundiais, por exemplo, impossibilitaram que este evento mantivesse o seu ritmo quadrienal) para se chegar à primeira edição que contou com participação portuguesa. Nesse ano em que pela primeira vez o concurso passou a carregar o nome que até hoje leva, o IKA/Culinary Olympics, Portugal arrancou as primeiras medalhas: duas de bronze, uma para a equipa sénior e outra para a júnior. Desde então já foram várias as glórias trazidas para casa, mesmo tendo em conta que os países nórdicos, por exemplo, “costumam ser quem mais domina a competição”, contou ao Observador o chef Luís Gaspar, responsável pelos restaurantes Sala de Corte e Big Fish Poke, em Lisboa, que já tem um longo historial nesta competição e atualmente ocupa o lugar de Capitão Adjunto da equipa sénior para 2020.

O chef Luís Gaspar a terminar os últimos pormenores da travessa fria de peixe e marisco, uma das componentes da prova. Ao lado, em madeira, estão os suportes feitos à mão pela Rival. Diogo Lopes/Observador

No total, todas as participações portugueses nesta prestigiada competição já renderam um total de 29 medalhas: 14 de bronze e quatro de prata para a equipa sénior e oito de bronze mais três de prata para a equipa júnior. O ouro ainda nos escapa. Por enquanto.

Caravelas portuguesas rumam a Estugarda

A vela de um navio com a cruz de Cristo presa a um mastro que se transforma numa colher de pau — tudo em tons de verde, vermelho e branco. É este o logótipo que aparece nas jalecas de todos os “atletas” destas equipas nacionais. Na cozinha da ACPP, aquando da apresentação à imprensa dos menus que serão apresentados em breve na Alemanha, todos os atletas/cozinheiros já traziam este símbolo às costas, juntamente com o clássico toque blanche, o chapéu alto e branco que já é folclore do imaginário gastronómico. Surgiu inicialmente em França e servia para o cozinheiro melhor ventilar a cabeça nas cozinhas infernais de anos que já passaram. Neste caso são utilizados como símbolo de rigor, tradição e algum classicismo — tudo elementos muito valorizados pelos jurados das olimpíadas, seja na comida como na apresentação de quem a faz.

“Isto é um processo que decorre há cerca de um ano. Lançámos candidaturas a nível nacional para escolas e hotéis”, conta o chef Jorge Fernandes. O responsável pela comida do hotel Iberostar de Lisboa é o capitão da equipa júnior que representará Portugal e explicou que receberam várias candidaturas (30, mais precisamente), e desde então foram sendo feitas vários testes e avaliações que culminaram com 11 jovens cozinheiros: o capitão Jorge Fernandes, Paulo Vieira, Miguel Ramos, Sérgiu Ursu, André Serra, Tiago Silva, Tomás Pereira, Tomás Morgado, Iuri Duarte, Rafael Pombeiro e João Duarte.

O prato principal da equipa sénior teve de incluir borrego, uma exigência deste ano imposta pela organização das Olimpíadas. Diogo Lopes/Observador

A definição da equipa sénior é mais simples, estando muito dependente dos cozinheiros da júnior que vão “subindo de escalão”. O capitão desta equipa, o chef Celso Padeiro, é exemplo disso, já que tem um longo percurso neste tipo de competições. A ele juntam-se o chef Luís Gaspar (Capitão Adjunto), Pedro Monteiro, João Silva, Fáb io Santos, Marcelo Santos, Diogo Ornelas, Joaquim Sousa (Chef Pastelaria do JNCQUOI) e João Simões.  Pode não reconhecer alguns destes nomes mas a verdade é que é muito provável que no futuro próximo isso mude, basta olhar para trás e ver que cozinheiros conceituados como António Bóia (atual responsável pela cozinha dos JNCQUOI), Tiago Bonito (uma estrela Michelin no restaurante Largo do Paço) ou Filipe Carvalho (uma estrela Michelin no Fifty Seconds by Martín Berasategui), só para nomear uns quantos, em tempos estiveram no lugar destes jovens que vão representar Portugal em Estugarda.

Menus: técnica e mais técnica

A prestação de ambas as equipas será colocada à prova em dois momentos principais, no contexto “Mesa do Chef” e o “Menu Quente”. O primeiro decorre no dia 15 de fevereiro e o segundo dois dias mais tarde, a 17. No caso da prova “Mesa do Chef” as equipas terão cinco horas para receber, transformar e cozinhar todos os ingredientes que entrarão num menu completo, com 17 momentos. “A técnica é um fator super importante para os jurados, daí todo o treino intensivo em que todos nos aplicamos”, explica o chef Celso ao Observador. Muitos rolos, terrinas, elaborações delicadas e produtos nobres são peça chave em ambos os menus, tanto de juniores como de seniores, apesar de ambos terem diferenças. Ou seja, a estrutura é quase idêntica mas mudam alguns detalhes.

O chef Celso Padeiro é o capitão da equipa sénior. Diogo Lopes/Observador

No caso do menu sénior, por exemplo — o que o Observador pôde provar — estão incluídos: dois “dips” (manteiga de ovas de bacalhau e patê de sardinha à portuguesa); seis “finger foods” (queijo de cabra com nozes, mel e sementes/cavala marinada com crocante de batata/blini com camarão, vieiras e lula frita/marmoreado de pés de porco com copita e maçã verde/pastel de bacalhau em massa tenra crocante/perna de codorniz recheada de foie gras, alheira e molho barbecue); uma travessa fria de peixe e marisco (com terrina de lavagante com espargos verdes, aneto, tosta de pinhões e vinagrete/ gelatina de robalo com açafrão, gaspacho sólido, guacamole e molho virgem com alcaparras/salmão marinado com citrinos e funcho, batata com salada russa e nata acidulada); um prato intermédio vegan (terrina de portobello e feijão verde com tofú com crosta de sésamo, quinoa de cebolinho e puré de batata doce e soja); o prato principal de lombo de borrego assado com rolo de borrego com farinheira e pastel de pá de borrego estufado com hortelão, cenoura, ervilhas e molho de borrego; a sobremesa de biscuit de chocolate com crocante de praliné, mousse de avelã e trufa quente de chocolate. Finalmente três petit fours para terminar a refeição: sablé breton com creme de limão e merengue; chocolate com amendoim e manga e pistachio com framboesa e baunilha.

Jorge Fernandes é o cozinheiro principal da equipa júnior. Diogo Lopes/Observador

“O sabor é muito importante, como é óbvio, mas a confeção e a forma como os ingredientes são trabalhados é um critério bastante valorizado pelos jurados”, explica o chef Luís Gaspar. Ora na segunda prova, a tal que se realiza dois dias depois desta “Mesa do Chef”, esse mesmo critério ou forma de fazer as coisas também é aplicado. Dentro das diferenças em relação à outra prova está o maior tempo de prova, que passa a ter um total de seis horas — “a partir do momento em que o tempo é ultrapassado começam a penalizar-nos nas pontuações”, explica o mesmo chef Gaspar — e o número de pessoas a servir passa para… 110. Espera-se, portanto, que ambas as equipas apresentem um espécie de mini-carta composta por quatro entradas, três pratos principais e três sobremesas. É um desafio semelhante ao do reality show Hell’s Kitchen (chefiado pelo carismático Gordon Ramsey) no qual vão figurar sugestões como rolo de lavagante com coentros, robalo corado com molho de caldeirada, no capitulo das entradas; magret de pato recheado com foie gras e cogumelos ou aba leitão assado com molho de vinho do Porto, no que diz respeito a pratos principais; e bolo dacquoise de amêndoa com mousse e sablé de coco, por exemplo, como sugestões de sobremesa.

Pormenores sobre as regras e as ementas à parte, a verdade é que Portugal já tem uma tradição de sucesso associada a estas provas, até noutras semelhantes como o Global Chefs Challenge (Equipa júnior de 2010 ganhou uma medalha de ouro e outra de prata), por exemplo. O panorama gastronómico português num todo tem estado a crescer e evoluir e isso também significa que o nível dos cozinheiros também está a aumentar. Será isso sinal de que vem aí “glória olímpica”? É esperar para ver.