Cruzar arte, gastronomia e alojamento turístico não é algo inédito em Lisboa, mas o The Art Gate, inaugurado em meados de março, fá-lo num ambiente quase doméstico. Tudo acontece num rico apartamento em pleno Chiado, com 670 metros quadrados, daqueles em que o pé direito impressiona e os tetos trabalhados nos deixam a olhar para cima tempo suficiente para um ou dois tropeções no tapete. Composto por cinco suites, uma galeria de arte, uma cozinha e uma sala de jantar com uma única mesa, visitar este primeiro andar não é um exclusivo dos hóspedes. Aceitam-se reservas para jantar e a galeria está de portas abertas aos curiosos.

A arte é o cartão-de-visita, embora devido à pandemia a galeria apenas esteja a receber visitantes por marcação. Sob a curadoria de Joana Valsassina e Leonor Carrilho, são estabelecidos contactos com outras galerias lisboetas para que algumas peças possam ser expostas neste espaço não comercial. O objetivo é fazer desta localização privilegiada uma montra de galeristas muitas vezes longe do centro e do circuito mais turístico da cidade. Ao lado, numa zona de sofás, há uma estante ainda em processo de composição. Os livros são da Stolen Books e vão chegando ao ritmo deste novo arranque.

A galeria do The Art Gate © Francisco Nogueira

É Diogo Figueiredo quem faz a visita guiada. Aos 32 anos, já deu provas de ser um empreendedor prodigioso. Em 2012, criou a sua primeira empresa, a Savvy, agência de design e publicidade com a qual pensou alguns dos mais bem sucedidos conceitos gastronómicos da cidade. Como consultor, sempre se moveu nos bastidores. Mas foi em 2018 que criou o primeiro projeto próprio, o restaurante Ofício, onde denunciou, desde logo, uma predileção pelo Chiado.

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“Sempre estive entre o universo das artes e o da gastronomia”, afirma ao Observador. Entre a hotelaria tradicional e uma cidade cada vez mais fervilhante, acabou por encontrar espaço para inovar. “Quando queres ver arte vais a uma galeria ou a um museu. Quando ficas num hotel, regra geral, tens um serviço completamente despersonalizado”, completa. Além de, ele próprio, promover circuitos pelas galerias associadas, mantém a ligação ao pulsar cultural de Lisboa com lugares de época reservados em salas de espetáculo. No futuro, Diogo quer também poder contar com um fundo de apoio a artistas emergentes e com um alcance nacional.

De volta à exposição, a prioridade vai para nomes emergentes, como é o caso da argentina Claire de Santa Coloma, de Sara Chang Yan, de Horácio Frutuoso e de Francisca Aires Mateus, os quatro artistas que ocupam atualmente a galeria do The Art Gate. Mas a arte é uma presença constante, não apenas no experimentalismo de quem assenta as primeiras pedras para construir uma obra, mas também por intermédio de autores já consagrados.

Diogo Figueiredo © Francisco Nogueira

No corredor que conduz às suites, damos de caras com uma porta de madeira. O rosto que nela se desenha é inconfundível — a obra de Vhils, nome artístico de Alexandre Farto, não está só aqui, mas entra também dentro das suites, à semelhança de Helena Almeida, Pedro Cabrita Reis e Daniel Blaufuks, entre outros. Ao contrário das que estão expostas na galeria, estas peças foram cedidas por colecionadores particulares. Diogo faz planos para o próximo ano. Gostaria que ver cada uma das suites à mercê da curadoria de um artista. Para já, são os trabalhos que os representam e o intuito é ir renovando os ambientes com novas obras de arte.

Para que estas falem por si, o luxo dos quartos é comedido, com o predomínio de madeiras naturais e de cores neutras que, ainda assim, fazem ressaltar o conforto destes ambientes caseiros. O Atelier Catarina e a Galante colaboraram na seleção e produção de algumas peças de mobiliário, onde o feito à mãe e em Portugal foi privilegiado. A My Friend Paco assina as almofadas e os quadros são peças da Mera Atelier. As amenities são da 8950, a marca portuguesa que trabalha com produtos recolhidos na Serra do Caldeirão.

“O que é comum às reações de todos os nossos hóspedes é realmente o facto de se sentirem em casa. Todos os quartos têm uma sala, tudo é acompanhado pela equipa, tratamos todos os hóspedes pelo nome — é muito fácil sentir que este é um espaço acolhedor”, adiciona.

Fotografia de Daniel Blaufuks numa das suites © Francisco Nogueira

Por estes dias, os pequenos-almoços são servidos no quarto, uma opção de comodidade, mas também de segurança que permite manter os hóspedes no seu próprio ambiente, sem que estejam expostos uns aos outros. Não que sejam muitos. Com o novo coronavírus, Diogo viu 90% das reservas para o mês de junho canceladas. Restou uma pequena margem que nos meses de julho e agosto se esfumou por completo, com a totalidade das reservas canceladas às primeiras notícias da chegada da pandemia à Europa.

Agora, o cenário parece ser de recuperação, depois daquilo a que Diogo chama de “falsa partida”. Muitos dos que se apressaram a cancelar a estadia têm sido, nos últimos dias, os primeiros a voltar a marcar. A retoma das ligações aéreas e a gradual abertura das fronteiras esta a dar lugar a uma sensação de segurança, que apesar de tímida já sente no nicho de clientes do The Art Gate.

Portugal x México. À mesa com Hugo Candeias

O projeto não viveria sem uma mesa, neste caso, uma távola redonda com 2,5 metros de diâmetro, assinada pela Cabana Studio. Sem desprimor para a cozinha, é ela a alma deste restaurante gastronómico — pesada e enegrecida, num efeito conseguido através de uma técnica japonesa que consiste na queima da madeira, seguida de um processo de hidratação. Em contexto normal, sentar-se-iam aqui 12 pessoas. A lotação não vai agora além dos oito convivas.

A mesa do restaurante © Luís Ferraz

Diogo fala na arte como ponto de ligação entre pessoas, ligação essa que culmina, invariavelmente, à mesa. Por aqui, já passou o We Are Ona, experiência temporária que pôs o The Art Gate no mapa, mas agora é Hugo Candeias quem assume o leme da cozinha. O menu de degustação está dividido em quatro momentos, devidamente acompanhados por harmonizações de vinhos feitas por Pedro Martin.

A fusão proposta pelo chef português é inusitada — a base é portuguesa, o toque é mexicano. Algo tão contrastante como a pera nashi impregnada de mezcal que abre as hostilidades. Com aguachile de amêijoa de Olhão, o cruzamento de cozinhas, bem como o de léxicos alimentares, ganha corpo. A tempura de bacalhau apresenta o sabor da patanisca com a sofisticação do fine dining. O caminho fica aberto para as estrelas do menu — um tamboril confitado com molho pipian, mas com a receita mexicana as sementes de abóbora por pinhões e avelãs, e um leitão de pele crocante, servido em quesadillas e acompanhado por um 70/30 da Beira Interior.

A cozinha do The Art Gate marca o regresso de Hugo Candeias a Portugal. Num projeto marcado por uma visão jovem e promissora do que pode ser a oferta turística no país, o chef não é exceção. Começou no Feitoria e ainda passou pelo Martinhal Sagres Beach Resort, mas foi em Londres que começou a abordagem às cozinhas do mundo. Uma viagem que estava apenas no início. Em Barcelona chegou a chef de cozinha do emblemático Hoja Santa de Albert Adriá, de onde trouxe as influências do receituário mexicano.

Leitão assado, o último prato principal do menu de degustação de Hugo Candeias © Luís Ferraz

À mesa, a experiência acaba com três sobremesas — uma amostra de diferentes sabores que incluiu flan de milho e moscatel, framboesas com hibisco e um bolo de chocolate. O menu de degustação não está ao alcance apenas dos hóspedes. Aceitam-se reservas, sobretudo para a hora de jantar e quem sabe se num ambiente partilhado. Mesmo em tempos de pandemia e mantendo a distância, esta é uma mesa comunitária.

O menu de degustação tem um preço de 60 euros por pessoa, ao qual poderá acrescer o custo do pairing de vinhos — 40 euros. Já o alojamento varia consoante a época e a suite escolhida. Os valores andam entre os 184 e os 366 euros por noite.