Uma investigação jornalística promete voltar a abalar a monarquia britânica. As atenções viram-se agora para o príncipe Michael de Kent, primo direito de Isabel II, acusado pelo Sunday Times de explorar a sua condição enquanto membro da família real para proveito próprio. A investigação, que envolveu dois repórteres sob disfarce, conclui que o príncipe disponibilizou-se para estabelecer ligações entre empresários e a administração de Vladimir Putin em troca de dinheiro.

Aos 78 anos, e embora não seja formalmente considerado um membro sénior da família real britânica, de todos os primos de sua majestade, Michael de Kent é o que mais proximidade tem mantido com a rainha e com o núcleo duro do clã. Vive numa das muitas acomodações do Palácio de Kensington, propriedade onde moram também William e Kate. Tornou-se presença habitual na imponente varanda do Palácio de Buckingham nas mais importantes celebrações da família. Em maio de 2019, viu a filha casar na mesma capela onde Harry e Meghan haviam dado o nó, um ano antes.

Banquet At London'S Guildhall During The State Visit Of President Putin

O príncipe Michael de Kent (à direita), numa receção a Vladimir Putin em Londres, em 2003 © Mark Cuthbert/UK Press via Getty Images

O mesmo primo chegado vê agora a sua imagem manchada por um escândalo de tráfico de influência que chegou, no último sábado, às paginas do Sunday Times e que chegará também à antena da Channel 4, já na noite desta segunda-feira. Na reportagem, é relatada uma reunião via Zoom entre dois empresário sul-coreanos, o príncipe e o marquês de Reading, seu amigo chegado e sócio. Contudo, os primeiros tratavam-se de dois repórteres sob disfarce, representantes da House of Haedong, empresa fictícia que procurou no primo da rainha uma porta para entrar no mercado russo.

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O investimento seria favorecido pela influência que Michael de Kent tem junto das autoridades daquele país, uma afinidade que foi sendo cimentada ao longo dos anos. Secretamente gravada, a videoconferência mostra o príncipe disponibiliza-se para fazer a ponte entre os empresários asiáticos e o Kremlin, um processo confidencial pelo qual receberia dez mil libras por dia (quase 11.500 euros). Por 200 mil dólares (perto de 165 mil euros), o septuagenário faria um discurso gravado onde apoiaria, usando do seu prestígio enquanto membro da família real, a empresa em questão, predispondo-se ainda a usar a sua própria casa, no Palácio de Kensington como cenário.

Ao lado de Michael estava Simon Isaacs, também de 78 anos, cuja amizade remonta aos tempos de escola, em Eton. Conhecido como marquês de Reading, chegou a descrever o amigo como “o embaixador não oficial de sua majestade na Rússia”. Na mesma chamada, foi o próprio príncipe a puxar dos laços e honrarias que o ligam ao país — das raízes familiares ao idioma no qual se tornou fluente, passando pela distinção da Ordem da Amizade, atribuída pelo Kremlin em 2009.

Britain's Prince Michael of Kent visits Museum of Moscow

Em 2016, durante a inauguração de um museu, em Moscovo © Alexander ShcherbakTASS via Getty Images

Em resposta à investigação, o porta-voz de Michael de Kent referiu que o marquês fez “sugestões que sua majestade não desejava ou que não seria capaz de cumprir” durante o encontro através do Zoom. O mesmo gabinete negou ao Sunday Times que o príncipe mantenha uma “relação especial” com o presidente russo, frisando não existir contacto entre as duas partes há quase 18 anos.

Já o marquês de Reading, também através de um comunicado emitido na sequência da reportagem, admitiu ter cometido um erro — “prometi demais, estou verdadeiramente arrependido”. Contudo, no contacto com os repórteres, alertou para o carácter confidencial dos serviços do príncipe e para a importância de manter a discrição em torno das “motivações comerciais” da relação do mesmo com Putin.

A versão televisiva deste trabalho de investigação será transmitida esta segunda-feira, às 19h30, no Channel 4, com o título “Royals for Hire: Dispatches“, e é apenas o primeiro capítulo de uma série de reportagens sobre como membros da família real britânica usam o seu estatuto para conseguir ganhos próprios.

Anwar Hussein Archive

Os príncipes Michael de Kent rodeados por membros seniores da família real e pela rainha, na varanda do Palácio de Buckingham, em 2018 © Anwar Hussein/Getty Images

Esta não é a primeira vez que, este ano, um primo de Isabel II protagoniza um escândalo com contornos criminosos. Em fevereiro, Simon Bowes-Lyon, sobrinho bisneto da rainha-mãe e primo em terceiro grau da monarca, foi condenado a dez meses de prisão por abuso sexual. O episódio aconteceu em fevereiro do ano passado, quando Simon, de 34 anos, agrediu sexualmente uma mulher de 26 anos que estava hospedada na sua casa. O local em questão é o Castelo Glamis, na Escócia, uma propriedade de família onde a princesa Margarida, a 21 de agosto de 1930.

A relação com a Rússia, a maçonaria e a família: quem é Michael de Kent?

Michael de Kent é primo direito de Isabel II e nasceu a 4 de julho de 1942. Era, na altura, o oitavo na linha de sucessão ao trono, filho do príncipe Jorge, duque de Kent, e da princesa Marina da Grécia e da Dinamarca. O pai, que morreu tragicamente na queda de um avião menos de dois meses após o seu nascimento, era filho de Jorge V e irmão mais novo de Jorge VI, pai da atual rainha.

A ascendência russa sobressai na genealogia do príncipe, que completa 79 anos este verão. Nicolau II, o último czar, era primo direito de ambos os avós maternos, o príncipe Nicolau da Grécia e da Dinamarca e a grã-duquesa Elena Vladimirovna, mas também o avô paterno. Em 1991, o príncipe foi uma das pessoas cujo ADN foi usado para o reconhecimento dos corpos do czar russo, assassinado em julho de 1918.

Desde a queda da Cortina de Ferro que o príncipe se tem aproximado da Rússia, através de várias visitas. Em 1998, participou das cerimónias fúnebres em honra de Nicolau II e da mulher, Alexandra Feodorovna. A condecoração chegaria 11 anos depois, pela importância assumida nas relações entre as duas potências. Michael de Kent é ainda membro honorário da Associação da Família Romanov e patrono da Câmara de Comércio Russo-Britânica.

Em Eton, revelou a vocação para as línguas. Depois do francês, do alemão e do italiano, tornou-se no primeiro membro da família real britânica a aprender russo, acabando por atingir a capacidade e intérprete. Durante 20 anos, serviu como militar, deixando ligações no exército, mas também na marinha e na força aérea. Casou em 1978 com a baronesa Marie Christine von Reibnitz, hoje conhecida como princesa Michael de Kent.

Kent Wedding

O casamento do príncipe com a baronesa Marie Christine von Reibnitz, a 30 de junho de 1978 © John Downing/Getty Images

A união com a antiga designer de interiores alemã, católica e divorciada, obrigou a abdicar, ainda que temporariamente, do seu lugar na linha de sucessão. A cerimónia civil teve lugar em Viena, após permissão de João Paulo II. O casal tem dois filhos: Frederick Windsor, já com carreira na banca aos 42 anos, e Gabriella Kingston, uma jornalista de 40 anos.

Embora não sejam considerados membros seniores da família real britânica, os príncipes Michael de Kent permanecem como elementos próximos da rainha, integrando o seu círculo mais imediato em diversas ocasiões (o funeral do duque de Edimburgo foi uma rara exceção). Vivem no Palácio de Kensington, privilégio que pagam do próprio bolso. No centro dos negócios do príncipe está a Cantium Services, uma consultora. Sem receberem dinheiro de Isabel II, o único encargo dos fundos públicos diz respeito à segurança de que dispõem, dentro e fora do país.

The Wedding Of Lady Gabriella Windsor And Mr Thomas Kingston

As funções de representação de sua majestade também pesam sobre a agenda dos príncipes Michael de Kent. Segundo a página oficial do casal, cumpriam uma média de 200 eventos por ano, antes da pandemia. A mesma plataforma explora a afinidade do príncipe com a Rússia. De acordo com o Sunday Times, durante as suas viagens àquele país, Michael de Kent fica ocasionalmente hospedado na embaixada britânica. Destaque ainda para a ligação à maçonaria como grão-mestre da província de Middlesex.

Ao final da tarde desta segunda-feira, a biografia do príncipe Michael de Kent, bem como o historial de compromissos ao serviços da rainha, não estava disponível na página oficial da família real britânica, ao contrário das informações relativas aos seus dois irmãos — o príncipe Edward e a princesa Alexandra — que continuam a poder ser consultadas.