O martelo caiu às 19h17 e desfez a dúvida: a tiara de diamantes e safiras da década de 1840, que pertenceu à rainha D. Maria II e suscitou interesse da direção do Palácio Nacional da Ajuda, foi arrematada em leilão da Christie’s por nada menos que 1 milhão e 322 mil euros. Como sempre acontece nestas ocasiões, a leiloeira não divulgou a identidade do comprador, mas fonte oficial da Direção-Geral do Património Cultural (DGPCP) confirmou ao Observador que não foi o Estado Português quem ficou com a peça.

A DGPC, que é tutelada pelo Ministério da Cultura e responsável pelo Palácio Nacional da Ajuda, tinha desde há vários meses mostrado interesse em disputar a peça, com vista à integração no acervo do futuro Museu do Tesouro Real, em Lisboa. O museu tem abertura prevista para os próximos meses — já não será em junho, como chegou a estar previsto — e situa-se precisamente no Palácio da Ajuda, que foi residência oficial da família real portuguesa a partir do reinado de D. Luís I (1861-1889).

Até à última hora não houve comentários oficiais sobre o assunto, o que é comum numa situação em que um interessado quer evitar dar trunfos sobre a sua capacidade de compra a eventuais concorrentes, explicou nesta quarta-feira ao Observador um especialista no mercado dos leilões, que pediu para não ser identificado. A DGPC indicou sempre que estava a “analisar uma eventual aquisição”, sem mais detalhes. Os proprietários não terão aceitado uma venda privada, prévia à realização do leilão, e optaram por manter o lote em venda, escreveu o Expresso em inícios abril.

A valiosa peça partia com uma base de licitação de cerca de 155 mil euros (170 mil francos suíços) e depois de uma disputa que durou 10 longos minutos alcançou o valor de martelo (ou seja, sem contar com impostos) de 1.322,545 milhões de euros, muito acima dos cerca de 320 mil de teto máximo previsto pela leiloeira.

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O especialista no mercado da arte que falou com o Observador fez notar que a tiara “não parece uma obra-prima do ponto de vista artístico nem será tão valiosa quanto se apresentou no leilão”. Ainda assim, reconheceu que ela tem “um enorme valor histórico para os portugueses”, pelo que “faria todo o sentido que o Estado português a quisesse comprar”. “Uma vez que o Estado quer abrir um museu com as joias da coroa, esta compra seria imprescindível”, indicou o mesmo especialista.

O leilão em questão, denominado “Magnificent Jewels“, realizou-se esta quarta-feira à tarde no Four Seasons Hotel des Bergues, em Genebra, com transmissão em direto pela internet. Durou mais de cinco horas e foi conduzido em inglês e francês pelos leiloeiros François Curiel, Maximillian Fawcett e Rahul Kadakia. Incluía peças “históricas e modernas” de joalharia de diversos períodos e de casas como Cartier, Boucheron, Tiffany & Co., Chaumet, Reza, Van Cleef & Arpels, entre outras. Um diamante de 100,94 quilates e quase 11 milhões de euros de base de licitação, da diamantífera Alrosa, foi a joia mais valiosa levada a praça nesta ocasião e fez a capa do catálogo. Terminou vendido por 9,9 milhões de euros.

Da coleção de D. Maria II ao leilão da Christie’s: a história da tiara que define um gosto português

A tiara, ou coroa, que constituía o lote 145 e penúltimo da hasta pública, é composta por uma vistosa safira birmanesa e outras quatro de menor dimensão, mais de 1.400 diamantes e ouro. Símbolo de poder e estatuto, pertenceu inicialmente à coleção particular de D. Maria II. Foi herdada por uma das filhas, infanta Antónia de Portugal (1845-1913), que se casou com o príncipe Leopoldo de Hohenzollern-Sigmaringen, e pelo filho destes, o príncipe alemão Guilherme de Hohenzollern-Sigmaringen (1864-1927). Segundo a Christie’s, a peça chegou a leilão com origem “numa família real”, sem mais pormenores. É de supor que seja a família real da Suécia.

D. Maria II (1819-1853), conhecida pelo cognome “A Educadora”, foi a segunda monarca reinante em Portugal, entre 1834 e 1853, num período politicamente marcado pela passagem do absolutismo ao constitucionalismo. Nasceu no Rio de Janeiro a 4 de abril de 1819 e morreu em Lisboa a 15 de novembro de 1853. A tiara parece denotar um conhecimento da rainha das tendências mais sofisticadas da joalharia europeia da primeira metade do século XIX.

“As joias transformáveis são uma grande novidade desse período e uma moda que se estende até aos anos 20 do século XX”, explicou há dias ao Observador Eduardo Alves Marques, investigador e autor do livro Se As Joias Falassem (2009). “É por isso que esta tiara é tão identitária. Ela pertence a um período específico, a um gosto específico e a um território específico, que é Portugal”, acrescentou.