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Casa Comum - Fundação Mário Soares

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As 10 grandes decisões políticas da vida de Soares

Numa vida preenchida de combates políticos, recorde as dez grandes decisões de Mário Soares.

    Índice

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Este artigo foi publicado originalmente a 7 de dezembro de 2015, quando Mário Soares fez 90 anos.

A adesão ao Partido Comunista

O fim do liceu e a entrada na faculdade marcam o início da política ativa de Mário Soares — apesar de dizer que aos 13 anos fez “questão” de colocar gravata preta quando Afonso Costa morreu no exílio. A adesão ao Partido Comunista deu-se em finais de 1942 por ser a “única entidade organizada” contra o regime nas universidades de Lisboa — Soares frequentou a Universidade de Letras — “e com condições para se fazer um trabalho de frente”, tal como admitiu a Joaquim Vieira, autor do livro Mário Soares, uma vida. Mas já na altura dizia sentir algumas reticências quanto a esta militância: “[…] Comecei muito cedo a contestar aquele tipo de militância, irritavam-me as regras de disciplina, dita conspirativa, achava ridícula a agenda de trabalho das reuniões [….] Sentia que não era por aí que devíamos caminhar: o importante era virar a juventude contra o regime” (em entrevista a Maria João Avillez no livro Soares — Ditadura e Revolução).

Nas eleições presidenciais de 1949, a oposição decidiu aproveitar as estruturas do Movimento Unitário Democrático (MUD) para apoiar a candidatura do general Norton de Matos. Por escolha de Azevedo Gomes (diretor da campanha), Mário Soares, com 24 anos, assumiu as funções de secretário da candidatura presidencial de Norton de Matos — o que deixou o PCP contente. Rapidamente Soares estabeleceu uma relação de proximidade e de confiança com o velho general republicano, amigo de longa data do seu pai, João Soares. “Um dia, o ‘Armando’ comunicou-me que o Secretariado do PC entendia que eu devia revelar ao Norton de Matos a minha qualidade de filiado no Partido. E mais: que lhe devia dizer que, a partir daquele momento, passaria a ser o representante do PC na candidatura”, disse a Maria João Avillez no livro Soares — Ditadura e Revolução. Contrariado, Soares obedeceu às ordens do partido e contou ao general que era filiado no PCP. Norton de Matos reagiu mal e, a partir dessa altura, Mário Soares deixou de acompanhá-lo a lugares públicos. “Não mais voltei a falar com o Norton, nunca mais me recebeu. Quebrara-se irreversivelmente a nossa ligação, que fora, até aí, direta e fecunda”, confessou.

Norton de Matos discursa na sua campanha presidencial

No início da década de 50 deu-se o corte de Mário Soares com o Partido Comunista. Ainda que se definisse, nessa altura, como um “socialista de formação ou inspiração marxista”, Mário Soares foi-se afastando progressivamente do PC e cimentando as suas dúvidas (e críticas) relativamente às práticas estalinistas.

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A criação da Ação Socialista Portuguesa e a oposição democrática

Após um período que correspondeu ao abrandamento da oposição interna ao regime, o final da década de 50 e início da década de 60 trouxeram agitação ao país com a candidatura de Humberto Delgado em 1958, o assalto ao paquete Santa Maria em 1961 e a revolta estudantil de 1962. Embora com pouca visibilidade, Mário Soares não ficou alheio aos acontecimentos.

“Foi uma mudança importante. Passámos de um grupo de reflexão para uma organização parapartidária que se foi articulando por todo o país e entre os exilados no estrangeiro”, Mário Soares

“O grupo a que pertencia evoluiu da Resistência Republicana e Socialista — que era um mero grupo de reflexão política de uma ou duas dezenas de amigos que elaborava manifestos, de tempos a tempos, de crítica acerba ao regime, que distribuíamos clandestinamente pelas caixas de correio de Lisboa e Porto — para a Ação Socialista Portuguesa. Foi uma mudança importante. Passámos de um grupo de reflexão para uma organização parapartidária que se foi articulando por todo o país e entre os exilados no estrangeiro”, lembra Soares no seu livro Um político assume-se. A Ação Socialista Portuguesa (ASP) foi assim fundada a 7 de Abril de 1964, no Hotel Moderne, em Genebra, e, para além de Soares, são ainda fundadores Tito de Morais e Ramos da Costa.

Campanha da candidatura do general Humberto Delgado no Liceu Camões. Delgado está ao centro

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Após ter estado com Humberto Delgado — exilado pouco tempo após as eleições de 1958 — em Praga e Paris, Soares ofereceu-se em 1965 como advogado da sua família quando foram encontrados dois corpos em Vila Nueva del Fresno, sendo um deles o de Delgado. Soares foi a Espanha reclamar os corpos e começou a ser perseguido pela PIDE. Questionado por Maria João Avillez no livro Soares — Ditadura e Revolução sobre se uma das suas motivações para esta ação foi o protagonismo, Soares respondeu: “Tire essa ideia da cabeça. A mola que me movia nunca foi o protagonismo”. Disse ainda: “Nunca previ que esse caso me trouxesse tantas complicações”.

Mário Soares no exílio em São Tomé

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Até 1968 foi preso várias vezes, até ser deportado nesse ano para São Tomé e Príncipe, onde permaneceu durante oito meses. Recebeu visitas da família nesse período e continuou a ler e a escrever, embora tivesse os “movimentos muito controlados” pela PIDE — Soares disse que “houve momentos que chegaram a ser divertidos”. Foi aí que soube da queda de Salazar da cadeira, e regressou passado pouco tempo, nos primeiros momentos da primavera marcelista.

Nas eleições legislativas organizadas por Marcelo Caetano em 1969 constituiu a sua própria lista eleitoral: a Comissão Eleitoral da Unidade Democrática (CEUD). A CEUD só concorreu sozinha em três distritos — Lisboa, Porto e Braga –, mas aliou-se a outros movimentos por todo o país. Maria Barroso, mulher de Soares, era candidata em Santarém. Soares foi cabeça de lista em Lisboa e disse que os seus apoiantes foram vítimas de “espancamentos, proibições, interrupções de sessões”. As eleições eram controladas pelo regime e tanto a CEUD como as candidaturas conjuntas saíram derrotadas. Soares partiu então para um exílio voluntário que duraria até ao 25 de abril de 1974.

2 fotos

A formação do Partido Socialista

Soares acabou por fixar-se em Paris, onde, segundo o próprio, “seguir a política francesa, diariamente, e encontrar líderes socialistas europeus como Willy Brandt, Olof Palme, Pietro Nenni, Kreisky […], constituiu uma aprendizagem política de exceção” — pelo meio viajou para o Chile e conheceu Salvador Allende.

“Daí nasceu uma responsabilidade e uma influência que os amigos da Internacional Socialista assinalaram”, disse Mário Soares.

Em 1972, a ASP foi aceite na Internacional Socialista e passou a ser ouvida “com simpatia” e ajudada pelos partidos desta organização. “Foi então que o Ramos da Costa, o Tito Morais e eu começámos a pensar seriamente em transformar a ASP em Partido Socialista português. […] Chegaram-nos rumores seguros de que havia uma conspiração militar em marcha e nós precisávamos de um instrumento com contactos europeus sólidos, para nos podermos impor na hora H”, conta no seu livro Um político assume-se. Apesar de alguma oposição dos núcleos de Lisboa, Coimbra e Porto, devido aos riscos acrescidos de constituir um partido, o PS foi fundado a 19 de abril de 1973 em Bad Munstereifel, perto de Bona, na Alemanha.

Os fundadores do PS em Bad Munstereifel

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“A pressa que eu tinha em criar o PS repousava fundamentalmente no facto de achar que ia dar-se uma ruptura do sistema. Para isso, tínhamos de estar organizados, ter um partido, com dirigentes reconhecidos, capazes de poderem falar em nome dele e ser ouvidos. Era essa a minha percepção fundamental.”
Mário Soares

A pressa de chegar ao 25 de Abril e a oposição ao PCP

Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, Mário Soares encontrava-se em Bona, na Alemanha Federal. Quando soube o que se estava a passar em Lisboa, partiu para Paris com a mulher, Tito de Morais e Ramos da Costa. Como o aeroporto estava encerrado decidiu voltar a Lisboa de comboio (no Sud Express), na manhã de dia 27 de Abril — chegou a 28. A intenção de ser o primeiro dos exilados a chegar a Lisboa cumpriu-se, uma vez que Cunhal apenas chegaria a Portugal no dia 30, dois dias depois Soares.

Chegada a Santa Apolónia no dia 28 de abril de 1974

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As expetativas de Soares ao regressar do exílio não eram muito elevadas, como o então secretário-geral do PS confidenciou a Maria João Avillez: “Tinha, quando muito, a ambição de poder vir a ser deputado do PS, mas na oposição. Era, sinceramente, o máximo que eu julgava possível”. No entanto, Soares foi rapidamente catapultado para a primeira linha da Revolução, sendo convidado pelo general Spínola para assumir a pasta dos Negócios Estrangeiros no I Governo Provisório. Aceitou contra a opinião do partido, que, por questões protocolares, achava que Soares deveria ficar também como ministro sem pasta, tal como Cunhal (líder do PCP) ou Francisco Sá Carneiro (líder do PPD). No entanto, o secretário-geral dos socialistas preferiu aceitar a pasta que lhe foi atribuída. “Por duas razões: porque era uma pasta que não dava grande desgaste interno e também porque era a que tinha mais visibilidade. Não me arrependi”, diz no livro Um político assume-se.

“Valeram-nos a reação salutar – e de bom senso – da maioria dos delegados. Manuel Alegre, com a sua oratória inflamada, produziu um discurso memorável que pesou nas decisões de muitos congressistas”, disse Mário Soares.

O primeiro Congresso do PS na legalidade ocorreu nos dias 13, 14 e 15 de Dezembro de 1974, na Aula Magna da Reitoria de Lisboa. Neste congresso, aparecem todas as contradições que dividem internamente o Partido Socialista nesta fase. A contestação interna encabeçada por Manuel Serra, que representava uma fação mais radical do partido, conseguiu ganhar espaço de manobra e colocar em causa a liderança. Segundo Soares, o grupo de Manuel Serra estava infiltrado por oficiais da Comissão Coordenadora do MFA – Vasco Lourenço, Pinto Soares, Almada Contreiras – e, indiretamente, pelo Partido Comunista. “Pretendiam, claramente, tomar o poder dentro do PS, apoiados por essa rede de cumplicidades. Valeram-nos a reação salutar – e de bom senso – da maioria dos delegados. Manuel Alegre, com a sua oratória inflamada, produziu um discurso memorável que pesou nas decisões de muitos congressistas”. A vitória alcançada no primeiro congresso permitiu a Soares consolidar a sua linha política no partido e constituiu, segundo o próprio, “a primeira derrota do projeto unitarista e hegemónico do PCP.”

Foi nos meses de novembro e dezembro que Mário Soares se apercebeu que “Álvaro Cunhal queria fazer a economia de uma revolução” e “passar de uma revolução democrática e pluripartidária para uma revolução socialista (leia-se: comunista)” — como descreve no seu livro Um político assume-se. O conflito entre os dois partidos tornou-se, a partir de então, inevitável e explodiu em torno da questão da unicidade sindical. Os socialistas, liderados neste combate por Salgado Zenha, opuseram-se aos intuitos hegemónicos do PCP no campo sindical. “Salgado Zenha, no célebre artigo publicado no Diário de Notícias ‘Unicidade Sindical ou Medo à Liberdade’, inventou a palavra ‘unicidade’. Quando o li – o que só ocorreu depois da publicação –, achei a expressão bizarra, nem sequer a compreendi bem. Mas, logo a seguir, apercebi-me de que entrara rapidamente no léxico político e que traduzia bem a realidade. Com ela conseguimos demonstrar que éramos a favor da unidade dos trabalhadores, desde que construída livremente por eles, embora rejeitássemos uma ‘unidade à força'”.

Soares discursa no comício da Alameda D. Afonso Henriques, em pleno Verão Quente

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A partir da unicidade sindical e até abril, a grande preocupação de Soares e dos socialistas seria a realização das eleições no prazo estipulado pelo programa do MFA. Até porque, depois dos acontecimentos do 11 de Março, segundo Soares, “menos de um ano depois do 25 de Abril, a revolução dera um salto gigantesco e o PCP surgia, à luz do mundo, como o principal aliado do MFA”. Nesta altura, numa reunião entre o PCP e o PS, Cunhal chegou mesmo a ameaçar o secretário geral do PS: “O melhor, para todos, é que o PS se junte a nós. Caso contrário, ocorrerá com os socialistas o mesmo que se passou já com a direita: serão implacavelmente eliminados!”, pode ler-se no livro de Maria João Avillez, Soares, Ditadura e Revolução.

As eleições constituintes, realizadas a 25 de abril de 1975, ao darem a vitória ao Partido Socialista (37, 87%) e ao demonstrarem o escasso apoio popular de que gozava o PCP (12, 53%) e o MDP/CDE (4, 2%), marcaram um ponto de viragem no processo revolucionário. Durante o PREC, os choques entre os socialistas e o PCP e o primeiro-ministro Vasco Gonçalves sucederam-se. Nas comemorações de 1 de Maio desse ano, Mário Soares e os dirigentes socialistas que o acompanhavam foram impedidos, por elementos da Intersindical de entrar no estádio e depois aceder à tribuna. A partir daqui o PS organizou várias manifestações, como Soares refere a Maria João Avillez: “Até aí, nunca tínhamos descido à rua sozinhos. Fizéramo-lo sempre em manifestações mais ou menos unitárias, com toda a gente, comunistas incluídos. Mas, após aquela afronta pública, pensámos: ou avançamos agora, ou, se recuarmos, estamos perdidos. Decidimos avançar!”.

No dia 19 de julho de 1975, realizou-se a maior manifestação de contestação ao gonçalvismo, o célebre comício da Fonte Luminosa, à Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa. Segundo Mário Soares, “o comício da Alameda foi o princípio do fim de Vasco Gonçalves e marcou o ponto de viragem da cavalgada revolucionária insensata que, se não fosse detida como foi, arrastaria Portugal para o abismo”. Em novembro desse mesmo ano, Soares confrontaria ainda Cunhal num debate televisivo que durou várias horas.

Soares, primeiro primeiro-ministro de um Governo Constitucional

Com o lema “Vencer a Crise. Reconstruir o País”, o PS ganhou as primeiras eleições legislativas em 1976, com 35% dos votos, um resultado que não lhe deu maioria absoluta — mesmo assim, Soares decidiu avançar com um Governo unicamente socialista, procurando posteriormente acordos no Parlamento. O então líder do PS esperou até às presidenciais e consequente eleição de Ramalho Eanes para tomar posse, sendo nomeado como primeiro-ministro — Almeida Santos era ministro da Justiça, Medina Carreira ministro das Finanças e José Medeiros Ferreira ministro dos Negócios Estrangeiros. “O I Governo Constitucional criou uma imensa expetativa e gerou à sua volta um grande consenso. Tinha a estimulante sensação, quando comecei, que as pessoas confiavam em mim. […] Estava sinceramente convencido de que o Governo poderia ter uma longa vida”, admitiu Soares a Maria João Avillez no livro Soares — Democracia.

Apresentação do I Governo Constitucional na Assembleia da República

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“Cometi erros políticos, alguns graves […] Apesar de o PS ter ganho as eleições, deveríamos ter, porventura, dialogado mais e estendido a mão quer ao PPD quer ao PC, em vez de ter feito, com alguma arrogância, um governo assumidamente minoritário, sem concessões”, afirma Mário Soares.

Esta sensação não duraria muito já que, a 25 de abril de 1977, Eanes se distanciou do Governo no seu discurso oficial, deixando Soares sem margem política para iniciar a necessária intervenção do FMI. Procurou ajuda junto do PSD e do PCP para um apoio parlamentar, mas sem sucesso. O seu governo chegou a cair quando uma moção de confiança foi chumbada, mas Eanes exigiu que Soares encontrasse uma solução. Aproximou-se então do CDS no fim desse ano e concluiu um acordo de incidência parlamentar, com a participação de três ministros e cinco secretários de Estado do CDS — o II Governo Constitucional. Entretanto, Vítor Constâncio, novo ministro das Finanças, negociou o primeiro plano de resgate com o FMI, mas este Governo não duraria sequer um ano, com Eanes a fazer um novo discurso contra o executivo a 25 de abril de 1978 e com Freitas do Amaral a retirar os ministros do CDS, acusando o PS de forjar entendimentos secretos com o Partido Comunista, como relata Teresa de Sousa na sua biografia de Mário Soares (1988).

6 de Dezembro de 1977, votação da moção de confiança - véspera do 53.º aniversário de Mário Soares

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O Bloco Central e a segunda vinda do FMI

Soares só voltará ao Governo depois de ganhar as eleições de 1983 com 36% dos votos, novamente num período de crise financeira provocada pelo choque petrolífero dos finais da década de 70. Desta vez não se arriscou a governar sozinho e fez uma coligação pós-eleitoral com Mota Pinto, então líder do PSD. “Antes das eleições, em casa de Proença de Carvalho, tinha tido dois ou três encontros com Mota Pinto. Ele era partidário, há longa data, de um Governo de coligação entre os dois maiores partidos. Quis fazê-la antes das eleições, o que teria alargado a votação de ambos os partidos. Por mim, opus-me, com o argumento de que seriam as eleições que ditariam quem seria o primeiro-ministro: Mota Pinto ou eu. Dependeria de qual fosse o partido mais votado. Mota Pinto concordou. Esse foi o compromisso”, escreveu Soares no seu ensaio autobiográfico Um político assume-se.

Retrato de grupo com elementos do governo do Bloco Central. Mota Pinto está à direita de Soares

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Para a pasta das Finanças foi escolhido Ernâni Lopes, que levaria a cabo as negociações com o FMI, concluídas em setembro desse ano — Vítor Constâncio, que liderara as negociações com esta organização em 1978, não se mostrou disponível para integrar o Governo devido a desavenças dentro do PS. “Fez-se a política de austeridade, sabendo de antemão que era tremendamente impopular, embora imprescindível. E, efetivamente, fez-se sangue. O poder de compra diminuiu, houve salários em atraso, contratos a prazo, falências… Era inevitável. Mas a verdade é que não havia outro caminho”, disse Soares a Joaquim Vieira para o livro Mário Soares, uma vida. Outra das tarefas deste Governo foi a conclusão dos tratados de adesão à CEE, que seriam assinados em 1985.

"Mota Pinto foi um excelente interlocutor e compreendeu, desde o início, o alcance do que estava em causa: a gravidade imensa da situação do país. Ainda hoje estou sinceramente convencido de que foi uma sorte para Portugal, e para mim próprio, o facto de ser Mota Pinto quem dirigia o PSD nessa altura."
Mário Soares

Soares avança e torna-se Presidente-rei

No livro Soares, Democracia, Mário Soares afirmou à jornalista Maria João Avillez que a decisão de concorrer à presidência data do final de 1984. Após ter sido primeiro-ministro três vezes e depois de um longo período de 13 anos como secretário-geral do PS, “presumia estar bem colocado para ser o primeiro civil Presidente da República”. “Decidi avançar, não obstante ter a consciência de haver feito no Governo uma política impopular – mas necessária –, correndo o risco, por isso, de perder as eleições!”.

Cartoon alusivo à candidatura de Soares à presidência

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A impopularidade do governo de bloco central liderado por Mário Soares, a hecatombe eleitoral sentida pelo PS nas eleições legislativas de 1985 devido ao aparecimento do PRD, a multiplicação de candidaturas à esquerda – entre elas a do amigo de sempre Salgado Zenha, apoiado pelo PRD e pelo PCP, que vinha dividir o eleitorado socialista – e o pleno da direita efetuado pela candidatura de Freitas do Amaral (apoiado pelo PSD e pelo CDS), colocaram Mário Soares numa posição muito difícil.

“A campanha foi muito dura. Lembro-me de que numa das primeiras saídas de Lisboa fui a Santarém onde, numa sede de campanha extremamente pequena, fui recebido por uma escassa dezena de militantes, que não escondiam o seu pessimismo quanto aos resultados”, recorda Mário Soares no livro Um Político Assume-se.

“A pouco e pouco, porém, as coisas foram-se compondo e a máquina eleitoral começou a trabalhar! Nos debates da televisão, na primeira volta, acho que me saí bem e os ganhei. Zenha – com quem tive o debate mais difícil, por razões emotivas – disse-me, com uma frieza que me chocou, que eu devia desistir”. Contra muitas das previsões inicias, Soares conseguiu passar à segunda volta das eleições presidências com 25,4% dos votos. A dificuldade agora passava por encurtar a enorme distância que o separava de Freitas do Amaral, que tinha conseguido, na primeira volta, somar 46,3% dos votos.

Na campanha de 1986

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Na segunda volta, Mário Soares pôde contar com o precioso apoio dos comunistas, que, para impedir a vitória de Freitas do Amaral, decidiram apelar ao voto no candidato socialista. Soares acabou por vencer as eleições presidenciais com 51,18% dos votos, contra os 48,8% de Freitas do Amaral. No discurso da vitória, Mário Soares declarou esgotada a maioria que o elegera, procurando, a partir daí, afirmar-se como o Presidente de todos os portugueses. “Considero que esse foi dos gestos mais corajosos e importantes que tomei na minha vida política”, declarou a Maria João Avillez. “O meu sentimento dominante era de que necessitava, urgentemente, de pacificar Portugal, que se encontrava, praticamente, dividido ao meio. Essas duas metades estavam muito radicalizadas, de uma parte e de outra. Era imprescindível e urgente estabelecer a concórdia nacional. As minhas palavras funcionaram, assim, como um bálsamo.”

“Lembro-me de que o meu amigo Proença de Carvalho, que era o mandatário de Freitas do Amaral, me telefonou a pedir-me, em nome de Portugal, para desistir, evitando um debate inútil, porque não tinha nenhuma possibilidade de ganhar, dada a distância que separava os dois candidatos. Na verdade, assim parecia. Mas, na realidade, não foi."
Mário Soares sobre as eleições presidenciais, que disputou com Freitas do Amaral

Macau: Emaudio e o fax de Melancia

Após a chegada a Presidente e em plena abertura da comunicação social à iniciativa privada em Portugal, o histórico socialista queria um grupo de comunicação social, segundo Rui Mateus, antigo militante socialista e muito próximo de Soares. Logo no início de 1986, começou a negociar com Silvio Berlusconi, já na altura um dos homens da comunicação social em Itália. Constituiu-se então o grupo Emaudio, onde as principais figuras eram Rui Mateus, Almeida Santos, João Soares, Bernardino Gomes, Carlos Melancia, entre outros.

Berlusconi só queria investir na televisão, e Carlucci, antigo embaixador americano em Portugal, sugeriu então que os dirigentes da Emaudio falassem com Rupert Murdoch, dono da News Corporation — que chegou mesmo a vir a Portugal e que, tal como Berlusconi, foi recebido no Palácio de Belém. No entanto, outro magnata da comunicação quis aproveitar a onda: Robert Maxwell. O checo, naturalizado britânico, tinha ligações ao Partido Trabalhista e era amigo de Mitterrand, ficando assim selada a preferência por este parceiro de negócio.

Visita de Soares a Macau em 1989. Ao seu lado direito está Carlos Melancia

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Maxwell queria a TV de Macau, território que então ainda estava sob domínio português e cuja televisão também estava prestes a ser privatizada e abrangia uma audiência de 160 milhões de telespetadores, tal como Joaquim Vieira transcreve de uma entrevista dada pelo próprio magnata à revista Le Point em 1987. A influência de Soares nas ações da Emaudio voltou a ser posta em causa quando um dos primeiros atos do novo governador, Carlos Melancia — nomeado então pelo Presidente da República –, foi o cancelamento do concurso internacional para a concessão da TV de Macau, mudando então a estratégia para a subconcessão de um canal em língua chinesa e transformando o estatuto da rádio e televisão desse território de empresa pública para sociedade anónima. Em Portugal, as notícias destes negócios começaram a surgir sobretudo no semanário Expresso.

Nesta altura, e segundo a versão de Rui Mateus, que escreveu o livro Contos Proibidos – Memórias de um PS desconhecido, a Emaudio entraria no negócio do aeroporto de Macau, que estava a ser construído, por ordens do Palácio de Belém, de onde terão vindo indicações para aceitar 50 mil contos da empresa Weidleplan. Nem o aeroporto foi construído pela Weidleplan, nem a TV de Macau foi para Maxwell, mas emergiu nas páginas do jornal O Independente um fax da Weidleplan endereçado a Melancia pedindo os 50 mil contos de volta. O escândalo rebentou, Carlos Melancia foi formalmente acusado (e absolvido) e Soares voltou a ser eleito com uma votação esmagadora.

Sobre todo o caso, Soares disse a Joaquim Vieira: “Desconhece-se uma coisa essencial: é que eu tenho repulsa por esse tipo de coisas. Se me vier um gajo qualquer, por aquela porta ou por outra porta qualquer, falar-me de coisas de dinheiro, eu mando-o logo à merda. É a minha maneira de ser”.

A oposição ao domínio de Cavaco Silva

Soares ganhou as eleições em 1991 com o apoio do PSD, mas, passados poucos meses, teve um confronto com os social-democratas quando Cavaco Silva renovou a maioria absoluta a 6 de outubro desse ano. Apesar de dizer a Maria João Avillez no livro Soares, o Presidente que aceitou a decisão democrática dos portugueses, não deixou de criticar o seu próprio partido e o líder socialista, Jorge Sampaio, que então concorreu contra Cavaco Silva — “A mensagem do PS não passou”. “Teria sido útil para o país — penso — uma oposição mais ativa e agressiva e, ao mesmo tempo, capaz de dar sinais, à sociedade civil, de que o PS era bem diferente do PSD. Não conseguiu nem uma coisa nem outra”, disse o antigo Presidente a Avillez.

Reunião do Conselho de Estado em 1990

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“Diremos, em síntese e com objetividade, que não foram apresentadas aos portugueses [nas eleições de de 1991] alternativas suficientemente consistentes”, conta Mário Soares no prefácio do livro Intervenções 6.

Descontente com a ação do seu partido, que entrou em ebulição logo a seguir às legislativas e elegeu um novo líder, António Guterres, tomou então para si o papel de opositor a Cavaco. Embora não admita que foram feitas com esse propósito, Soares organizou diversas Presidências Abertas durante as quais se deslocava a várias regiões do país com dificuldades, em plena altura de reformas cavaquistas — visitando barracas à porta de Lisboa e esgotos a céu aberto. “Se a atitude do Governo tem sido outra, mais aberta, dialogante, flexível, diferente teria sido a perceção política que o país teria tido da Presidência Aberta. […] Mostrar a realidade e dizer, ou fazer dizer, a verdade nunca pode ser contra o Governo, mas sim uma forma inteligente e crítica de o ajudar”.

Farto das indiretas do Presidente e dos chumbos das contas públicas por parte do Tribunal de Contas, liderado então por Sousa Franco, Cavaco diria em 1992, no XVI Congresso do PSD, no Porto: “As forças de bloqueio ao Governo têm um rosto […]: todos aqueles sectores ou políticos que, frontal ou encapotadamente, querem impedir a legislação e querem bloquear a modernização do país”.

Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas em 1994

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Mais tarde, Soares diria de si próprio e deste seu segundo mandato terem sido “uma força de contenção”. “Fui uma força de contenção contra os demónios da arrogância e do autoritarismo, que algumas vezes terão marcado o Governo de Cavaco Silva. […] Fui também, e sobretudo, uma válvula de segurança do regime democrático, procurando evitar derrapagens, excessos ou eventuais explosões”, disse a Maria João Avillez.

"Fui uma força de contenção contra os demónios da arrogância e do autoritarismo, que algumas vezes terão marcado o Governo de Cavaco Silva. [...] Fui também, e sobretudo, uma válvula de segurança do regime democrático, procurando evitar derrapagens, excessos ou eventuais explosões."
Mário Soares

As candidaturas inesperadas de Soares

A 9 de março de 1996, com quase 72 anos, Mário Soares cessou as funções de Presidente da República que vinha desempenhando desde 1986. E voltou à política ativa muito pouco tempo depois — nas suas palavras “um novo rumo, bem inesperado”. “António Guterres, temendo que as eleições para o Parlamento Europeu não fossem particularmente boas para o PS, convidou-me, com particular insistência, para aceitar ser cabeça de lista dos candidatos do PS. Custou-me a aceitar. Primeiro, já tinha, nessa altura, organizado a minha vida. Segundo, porque se tratava de uma obrigação para cinco anos. E nunca gostei de não cumprir os compromissos que assumi, até ao fim. Mas acabei por aceitar. Era uma experiência internacional totalmente nova e ainda por conhecer que podia ser útil ao PS”, diz Soares na sua autobiografia Um político assume-se.

No entanto, gerou-se logo um caso com a sua chegada a Bruxelas. Embora o PS tivesse ganho as europeias de 1999 com 43% dos votos em Portugal, o voto global na Europa deu maioria à direita, o que dificultou a eleição esperada por Soares como presidente do Parlamento Europeu, um lugar de relevo e prestígio dentro das instituições. Tentou-se então um acordo que permitisse dividir o mandato ao meio, mas isso falhou. Nicole Fontaine, eurodeputada francesa do PPE, foi eleita para o cargo e, depois da votação, Soares referiu-se a ela como domestique, ou dona de casa em português.

Mário Soares fala no Parlamento Europeu

Parlamento Europeu

Apesar desta derrota, Soares cumpriu o seu mandato até ao fim. “Reconheço que o Parlamento Europeu foi, para mim, uma fonte extraordinária de aprendizagem e de informação especializada sobre os grandes temas internacionais”, disse Soares.

Pouco tempo depois da saída do Parlamento Europeu, no dia 7 de dezembro de 2004, no jantar comemorativo do seu 80.º aniversário, Mário Soares disse no seu discurso que afastava a possibilidade de voltar à política ativa e, com ela, uma possível candidatura presidencial, que alguns dos organizadores do jantar, segundo Soares, pareciam querer promover. “Quando entrei naquele enorme salão da FIL – cerca de duas mil pessoas sentadas à mesa – senti que a maior parte tinha em mente essa ideia de uma nova candidatura. Mas eu não queria.”

“Foi uma surpresa geral. A minha família próxima (a minha mulher, os meus dois filhos e as netas mais velhas) não aprovou a minha decisão. Mas, como sempre, apoiou-me”, afirmou Soares.

O PS não aceitou a candidatura de Manuel Alegre contra Cavaco Silva, que se posicionava à direita, e pediu uma nova intervenção a Soares.”Em meados de junho de 2005, tive uma conversa com o Sócrates, que foi para mim decisiva. Para poder avançar – disse-lhe – precisava que ele me prometesse três coisas. Responsabilizar-se pelo dinheiro necessário para a campanha, que eu não tinha; fazer com que o PS – os seus quadros e militantes – participassem na campanha; e, finalmente, aceitar ter eu liberdade, no plano político, para orientar a campanha como melhor entendesse. Disse-me a tudo que sim, sem qualquer dificuldade”, descreveu no seu livro.

Soares na campanha de 2006

FRANCISCO LEONG/AFP/Getty Images

Mário Soares afirmou que, durante a campanha, foi percebendo, tal como no dia da eleição, que a derrota era inevitável. O antigo primeiro-ministro e antigo Presidente teve 14,31% dos votos, ficando atrás de Manuel Alegre, que conseguiu 20,74%, e de Cavaco Silva, que venceu as eleições com mais de 50%. Anos mais tarde, recordaria essa noite:“Numa sala à cunha li um texto curto, assumindo pessoalmente a responsabilidade da derrota. Formulei os melhores votos para a Presidência de Cavaco e acabei com um célebre slogan do tempo da resistência antifascista: ‘Só é vencido quem desiste de lutar’. E eu não tencionava desistir…”.

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