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1961-70. A vida antes da morte de Salazar

O aumento da contestação contra o regime, a misteriosa vida pessoal e a trágica queda da cadeira marcaram os derradeiros anos de um dos últimos líderes das ditaduras europeias do século XX.

Quais as suas origens, que vontades o moviam, que ideologia defendeu e como acabou por deixar o poder. Salazar é um dos líderes europeus do século XX que Jaime Nogueira Pinto recorda procurando dar resposta a estas questões. Estaline, Mussolini, Hitler e Franco são os outros quatro ditadores que protagonizam o novo livro Cinco Homens que Abalaram a Europa (Esfera dos Livros).

Neste excerto que o Observador publica, o autor recorda parte da última década de Salazar, que morreu em 1970. Por um lado, os aspetos pessoais da vida do ditador. Por outro, o ambiente que rodeava o anunciado fim do regime.

Cinco Homens que Mudaram a Europa

“Cinco Homens que Mudaram a Europa”, de Jaime Nogueira Pinto (Esfera dos Livros)

“A partir de 1926, a ditadura militar tivera de enfrentar forte resistência da oposição – uma série de revoltas começadas logo em Fevereiro de 1927, revoltas que em Lisboa e no Porto causariam mais de duzentos mortos e centenas de feridos. A ditadura criara então uma Polícia de Informação (PI). Em 1931 a PI passara a controlar também as fronteiras, mudando de nome para Polícia Internacional Portuguesa (PIP). A maioria dos responsáveis destas organizações eram quadros militares de confiança política, tenentes e capitães do 28 de Maio.

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Com a proclamação da Constituição de 1933 e o início do Estado Novo, sendo ministro do Interior Albino dos Reis, fora criada a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e em 1945 a PVDE passara a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).

Além da prevenção e repressão de crimes políticos, a PIDE tinha também a seu cargo o controlo dos estabelecimentos prisionais destinados aos pronunciados e condenados por tais delitos. Os seus comandantes ou directores eram oficiais do Exército de baixa patente e de confiança política, como o capitão Agostinho Lourenço, o capitão José Catela, o capitão Neves Graça, o tenente‑coronel Homero de Matos e o major Silva Pais.

Não era uma corporação muito numerosa. Seriam cerca de 350 em 1938, passariam a 400 em 1945, no fim da Segunda Guerra, e, no final do regime, por causa da Guerra de África, seriam perto de 3000. Como todas as suas congéneres, a PIDE tinha também uma rede de informadores, mas estava longe de ser «um Estado dentro do Estado», de ter autonomia fora das suas incumbências definidas. No entanto, não deixariam de existir casos mais graves, como o assassinato de Humberto Delgado, cujos responsáveis não seriam investigados nem punidos. Salazar recebia com regularidade o director da PIDE e alguns funcionários, que o mantinham ao corrente do que era mais sensível. Não é fácil estabelecer uma estatística objectiva das vítimas de repressão nos 48 anos de Estado Novo (1926‑1974), abrangendo a ditadura militar, o período salazarista, de 1932 a 1968, e a etapa final, marcelista. A questão, como outras ligadas à História de Portugal do século xx, caiu cinco homens inteiramente no domínio da polémica ideológica e quaisquer esforços para introduzir sentido, medida e objectividade, provocam reacções pouco racionais.

A amálgama soma vítimas de confrontos de rua com forças policiais – que existem também em Estados democráticos, como na Itália e na França do pós‑Segunda Guerra, ou os caídos em revoluções e golpes políticos – com as que de facto morreram estando detidas ou na sequência de interrogatórios e violência policial. De qualquer modo, o número de vítimas mortais em 48 anos de Estado Novo – 1926‑1974 – situa‑se algures entre um mínimo de 60/65 e um máximo de 100/120.

Na década de mudança que começa com o ano de 1961, o santuário de contestação ao regime são as universidades, onde se desenvolvem movimentos contestatários marcados por razões ideológicas e pela mobilização para o Ultramar. E aqui, nem sempre os filhos e familiares da nomenclatura situacionista dão grandes exemplos de coerência e patriotismo.

Mais resignado que convencido, Salazar defendera o viver habitualmente como receita, para grande desgosto e até indignação da geração dos nacionalistas mais politizados, que achavam que a receita deveria ser «viver perigosamente», ao modo nietzschiano de Mussolini.

Nestes anos finais do regime o chefe do Governo português parece apostado na defesa do Império e da unidade nacional, sobretudo entre as novas gerações que, nas escolas e universidades, resistem à hegemonia esquerdista do movimento associativo. O regime que criou e consolidou dependia dele: os mecanismos das instituições estavam feitos para ele; criara uma classe político‑administrativa com qualidade de gestão e serviço público, geralmente honesta e competente, mas mais ou menos apolítica ou despolitizada e até relativamente indiferente às «questões sociais» de que falara o bispo do Porto, que viam com um paternalismo resignado a inevitável existência de pobres.

O apoio que Salazar vai conseguir, nestes anos finais, vem‑lhe essencialmente da defesa da pátria e do Império, até porque a esquerda vai aliar‑se ao exterior, na sua obsessão de luta contra o regime, confundindo o regime com o Estado e com a Nação.

A guerra obrigara‑o à modernização, ou melhor, o tempo da guerra coincidira com as transformações culturais, económicas e sociais que levariam a essa modernização. Desde logo nos costumes – os anos 60 seriam radicalmente revolucionários, não apenas na política mas na cultura. Essa mudança chegava a Portugal ainda no tempo de Salazar, do Estado Novo e da censura, que nada tinham podido contra ela. E nada tinham podido porque os elementos mais fortes nessa mudança cultural tinham que ver com a laicização da sociedade. Com a crise na Igreja chegava uma certa descristianização que não vinha do comunismo e do materialismo ateus mas do capitalismo, da sociedade de consumo e dos primeiros passos da globalização cultural euro‑americana. Fenómenos como o pacifismo poético do flower power californiano, mais poderosos do que os seus congéneres europeus de Maio de 1968, eram disto reflexo e motor.

Os últimos anos de Salazar – esses anos sessenta – encontraram‑no nas frentes da defesa e da diplomacia, procurando, ao mesmo tempo, aguentar a vulnerável frente interna. Nesses anos, também por causa da evolução da economia internacional, do bom estado das finanças, do extraordinário desenvolvimento dos territórios de África, sobretudo de Angola, a economia portuguesa crescera a um ritmo nunca visto e uma nova classe média afirmava‑se nos hábitos, nos costumes e nos gostos. Passava a haver dinheiro e consumo.

Mas esses hábitos, costumes e gostos – não só de consumo de bens materiais, mas também de bens culturais e políticos – tinham naturalmente muito mais que ver com os modelos culturais e políticos europeus e ocidentais que com aquela «nação em armas» politicamente exótica do autoritarismo e do Império colonial.

Por isso, mais resignado que convencido, Salazar defendera o viver habitualmente como receita, para grande desgosto e até indignação da geração dos nacionalistas mais politizados, que achavam que a receita deveria ser «viver perigosamente», ao modo nietzschiano de Mussolini. «Je maintiendrai»

Salazar parecia ser o primeiro a não ter muitas ilusões sobre a continuidade da sua obra. Oficial e publicamente não deixava de dizer que, depois dele, as instituições funcionariam, mas havia um pessimismo filosófico e antropológico que nunca o abandonaria, como discípulo de Santo Agostinho e dos contra‑revolucionários franceses. A maioria dos conservadores lúcidos, que por teimosia e convicção querem parar a marcha da História, sabem que o dilúvio e a decadência – que adiam mas não impedem – lhes vão suceder; Salazar também parecia saber que, uma vez desaparecido, os seus inimigos – até pelo ódio pessoal que lhe tinham depois de quarenta anos longe do poder – iriam encarregar‑se de destruir tudo o que fizera e tudo aquilo em que acreditara.

O que lhe teria passado pelo cérebro invadido pelos misteriosos fios e nós das doenças e desequilíbrios neurológicos naquele quase ano e meio em que permanecera em São Bento? Ou durante a farsa cruel do agradecimento televisivo, no seu 80.º aniversário? Ou quando o levaram a votar pela União Nacional, em Outubro de 1969, para assegurar uma qualquer «evolução na continuidade»? Teria a marcha da História parado definitivamente também para ele, chegando‑lhe só em estilhaços de lucidez, ou entrincheirava‑se resignada e voluntariamente num suposto engano para se defender da decadência que viera sem que a pudesse já parar ou impedir?

Não casara, mas estivera próximo. Ela tinha 43 anos, ele 56. Tinham‑se conhecido socialmente num almoço que Salazar oferecera à rainha D. Amélia. A partir daí, nalguns jantares ou recepções, convidava‑a para emparceirar com ele como dona da casa.

Não tivera, praticamente, vida privada, não porque «se tivesse casado com a nação», como devotamente diziam os seus admiradores, mas porque o poder, a política, o governo e as suas exigências eram o que mais lhe interessava e lhe monopolizava o tempo. Não fora o «fradalhão de Santa Comba» ou o «eunuco» de que falava Cunha Leal, embora também só dificilmente pudesse ter sido o sátiro pinga‑amores de algumas versões jornalísticas e televisivas póstumas.

Tivera, com certeza, uma ligação, um romance, com Christine Garnier. Começara com a visita da jornalista francesa a Portugal e continuara anos a fio. Conhecera‑a em Setembro de 1951, quando ela viera a Lisboa com um projecto editorial para a Grasset para escrever um livro sobre o homem forte de Portugal. Recebera‑a em São Bento e depois aconselhara‑a a fazer uma visita ao Vimieiro, a Santa Comba, ao seu «Portugal profundo». No Vimieiro a jornalista conhecera as irmãs de Salazar. Christine ficara hospedada na Urgeiriça mas ia até à aldeia onde tinha longas conversas com Salazar, almoços e jantares a dois, passeios pelo Outono português. Ao tempo, Salazar tinha 62 anos, Christine (de seu verdadeiro nome Raymonde Germaine Cagin) 36. Ela tinha sido manequim da Marie Claire antes de ser jornalista do Figaro. A partir desse primeiro encontro nascera uma relação que, na opinião dos contemporâneos, fora mais do que uma afinidade electiva, do que uma amizade especial, do que um sentimento inominado. Ela falava dos olhos dele – «muito negros, triangulares, intensos» – ele achava‑a um «vendaval de alegria», «uma desordem perfumada».

Nesse Setembro, Christine, em Lisboa, pudera entrevistar alguns dos seus próximos: Mário de Figueiredo, o cardeal Cerejeira, Ricardo Espírito‑Santo, José Palha, os Lacerdas. E depois voltara a Paris e a relação continuara, à distância: cartas, telefonemas, presentes. As despesas de Garnier em Portugal eram pagas por Ricardo Espírito‑Santo e Salazar reembolsava‑o por cheques. De vez em quando, pedia a Marcelo Mathias, embaixador em Paris, que lhe comprasse um presente, um anel, um saco Vuitton. Christine voltara a Portugal no Verão de 1952. Era estrangeira, casada, e a relação oferecia‑lhe uma geometria variável que o defendia de opções definitivas. Por isso D. Maria a tolerava, porque a não via como uma ameaça ao «governo da casa do Senhor Doutor». Bem diferente fora a história com Carolina Asseca, depois da Segunda Guerra Mundial, que chegara ao ponto de o Daily Mail de 3 de Outubro de 1945 dar a notícia de que Salazar casara.

Não casara, mas estivera próximo. Ela tinha 43 anos, ele 56. Tinham‑se conhecido socialmente num almoço que Salazar oferecera à rainha D. Amélia. A partir daí, nalguns jantares ou recepções, convidava‑a para emparceirar com ele como dona da casa. Carolina Correia de Sá casara e enviuvara cedo, tendo passado parte da sua vida em Inglaterra. A troca de correspondência e os encontros tinham‑se tornado mais intensos e os rumores saíam do circuito social para as informações de diplomatas acreditados em Lisboa, como o embaixador de Espanha, que comunicara o rumor a Madrid. Notavam‑se em Salazar novas preocupações – no vestuário, no trato, na vida social. Depois a Time, em 22 de Julho de 1946, dera a capa e a cover -story a Salazar num artigo intitulado «Portugal, how Bad is the Best», em que o descrevia como «o decano dos ditadores europeus» que comandava «uma terra melancólica de gente empobrecida, confusa e assustada». A seguir, falava do que poderia ser o preâmbulo para a sua retirada da vida política: o novo romance do «decano dos ditadores» com a aristocrática viúva.

O «decano dos ditadores» não se casara nem saíra do poder e o jornalista da Time fora posto na fronteira.

Salazar ficaria como um émulo de Guilherme, o Taciturno, o príncipe da casa de Orange que se revoltara contra Filipe II e que, apesar de príncipe rebelde, se caracterizara pela prudência e pelo sentido de medida na conservação do adquirido. «Je maintiendrai», fora a divisa do Taciturno.

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