Anne Frank nasceu a 12 de junho de 1929 em Frankfurt, na Alemanha. Em 1933, quando tinha apenas quatro anos, mudou-se com a família para Amesterdão, na Holanda, depois da chegada ao poder dos nazis no seu país natal. A Holanda tinha fama de bem acolher as minorias religiosas e os Frank, judeus, esperavam poder encontrar no país vizinho uma nova casa. Mas a paz viria a durar pouco tempo — em 1940, os alemães invadiram o território holandês, iniciando uma forte perseguição aos judeus. Anne e a família viram-se obrigados a esconder-se num “anexo secreto”, no mesmo edifício em que Otto Frank tinha o seu escritório. Permaneceram escondidos durante dois anos, até que foram descobertos pelos nazis. Foi durante esse período, entre 1942 e 1944, que Anne Frank escreveu o seu famoso diário. A jovem viria a morrer em março de 1945, de tifo, no campo de concentração de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha.

Apesar de ter ficado conhecida pelo seu diário, publicado pela primeira vez pelo pai, na Holanda, em 1947, Anne escreveu muitos outros textos, alguns deles até anteriores à vida no esconderijo. Foi, porém, durante o período que passou no anexo que produziu a maioria deles, entre os quais se contam pequenos contos, fábulas, memórias, ensaios e uma novela que deixou inacabada, intitulada “A Vida de Candy” (iniciada durante a primeira metade de 1944). Estes foram compilados pela própria num volume (um grande caderno de capa dura) a que chamou “Contos e Acontecimentos do Anexo, Descritos por Anne Frank”, iniciado a 2 de setembro de 1943. Tratam-se de histórias fictícias, mas também relatos de acontecimentos reais. Alguns deles vieram a público pela primeira vez em 1947, incluídos pelo pai na primeira edição do diário.

A primeira edição exclusivamente dedicada aos contos de Anne Frank é mais tardia, de 1949. Foi nessa data que foram publicados oito dos textos (sob o título Lembras-te? Contos e Contos de Fadas) que Anne reunira no grande caderno de capa dura. Uma nova edição, aumentada, surgiu em 1960, e a primeira completa em 1982. A última edição é de 2001, e baseia-se em todos os manuscritos de todos os contos. Um desses, intitulado o “Medo”, foi escrito a 25 de março de 1994. A família de Anne foi descoberta pelos nazis em agosto desse ano, apenas cinco meses depois de ter escrito o texto. É esse mesmo conto que reproduzimos nesta pré-publicação, a poucos dias da edição em Portugal de Contos e outros escritos, pela editora Livros do Brasil.

Contos e outros escritos, de Anne Frank, chega às livrarias esta quinta-feira. A edição é dos Livros do Brasil

Medo

Sábado, 25 de março de 1944

Passei nessa altura por um período terrível. A guerra grassava à nossa volta e ninguém sabia se na hora seguinte estaria ainda vivo.

Os meus pais, irmãos, irmãs e eu vivíamos na cidade, mas esperávamos ser evacuados ou forçados a fugir. Os estrondos dos canhões e os tiroteios enchiam os dias; clarões e estouros misteriosos, que pareciam vir do fundo da terra, enchiam as noites.

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Não o consigo descrever, nem me recordo com muita nitidez do tumulto daquele tempo. Só sei que durante dias inteiros não fazia mais nada senão ter medo. Os meus pais tentavam tranquilizar-me de todas as maneiras, mas em vão; sentia medo por dentro e por fora, não comia, dormia mal e só tremia.

Isto continuou assim durante uma semana, até que veio aquela noite que me ficou gravada na memória como se tivesse sido ontem.

Às oito e meia da noite, quando o tiroteio abrandou um pouco e eu estava, completamente vestida, a dormitar num divã, sobressaltámo-os com duas tremendas explosões. Levantámo-nos num pulo, todos ao mesmo tempo, como se uma agulha nos picasse, e fugimos para o corredor.

Mesmo a mãe, que costumava sempre ser tão calma, estava pálida. As explosões repetiam-se com intervalos bastante regulares, e de repente: um estalar, um tinir e uma gritaria infernais, e fugi tão depressa quanto pude. Com uma mochila às costas, abafada por várias camadas de roupa, corri e continuei a correr, para longe daquela terrível confusão em chamas.

À minha volta, por todos os lados, havia pessoas a correr e a gritar. A rua estava toda iluminada pelas casas a arder e todos os objetos tinham um aspeto incandescente e vermelho assustador.

Não pensava nos meus pais, irmãos ou irmãs, só pensava em mim; tinha de me pôr a milhas para me salvar. Não sentia cansaço, o medo era mais forte, dei conta de que perdi a mochila, corri sempre. É-me impossível dizer quanto tempo corri assim, sempre com a imagem de casas em chamas e caras distorcidas a gritar perante os olhos, e completamente tomada pelo medo.

De repente, senti que havia mais calma à minha volta. Olhei para trás e,como se tivesse acordado de um sonho, não vi ninguém nem coisa nenhuma. Não vi fogo, nem bombas, nem pessoas.

Parei e olhei melhor: encontrava-me num prado, sobre a minha cabeça cintilavam as estrelas, o luar brilhava, o tempo era magnífico, a noite fresca, mas não fria. Já não se ouvia um único ruído. Exausta, sentei-me no chão, estendi a manta que trazia no braço e deitei a cabeça em cima dela.

Ergui os olhos para o céu e nesse momento dei-me conta de que já não tinha medo, medo de nada. Bem pelo contrário, estava muito calma.

Estranho era que não pensava na minha família, nem sentia saudades dela. Só desejava o sossego e não tardei a adormecer na erva a céu aberto.

Quando acordei, o Sol estava a nascer. Distingui, à luz do dia, ao longe, as casas conhecidas à entrada da nossa cidade, e soube onde me encontrava.

Esfreguei os olhos e olhei mais uma vez à minha volta. Não havia ninguém; os dentes-de-leão e os trevos na erva eram a única companhia. Tornei a deitar-me sobre a manta a pensar o que havia de fazer, mas os meus pensamentos desviavam-se sempre para aquela extraordinária sensação que tivera na noite anterior quando, sentada na erva, deixara de ter medo. Mais tarde, voltei a encontrar os meus pais e passámos a morar juntos numa outra cidade.

Agora que a guerra já terminou há muito tempo, sei porque foi que o meu medo desapareceu debaixo do céu tão vasto. Naquele momento a sós com a natureza compreendi, no fundo sem saber claramente, que o medo não nos ajuda e não nos serve de nada, e que o melhor que qualquer pessoa que tiver medo como eu tive naqueles dias pode fazer é olhar para a natureza e convencer-se de que Deus está muito mais perto de nós do que muita gente supõe.

Deste então, e apesar das muitas bombas que ainda caíram perto de mim, nunca mais senti medo a valer.