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A 36 mil pés o meu Natal foi pelos ares. Mas havia coscorões

Há quem passe a consoada a trabalhar para que o mundo não pare. Foi isso que Diogo Lopes viu num voo transatlântico com mais de 200 passageiros e uma tripulação com algumas prendas escondidas.

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O Natal sempre foi a minha festa favorita. Desde pequeno. O seu significado foi mudando, claro: quando era mais miúdo as prendas minavam-me a cabeça. Com o tempo, outras coisas passaram à frente dos Action Men e dos jogos para o Game Boy. A comida foi a primeira maravilha a pegar. Passei a gostar de queijo da Serra, ganhei um reforçado apreço pelo bacalhau (e até pelo arroz de polvo, iguaria que, infelizmente, deixámos de fazer na noite de 24 para 25) e passei a ter idade para beber álcool. Acima disto? A família, (quase) sempre.

Ora este ano, pela primeira vez, o destino fez com que não tivesse nada disto na noite de consoada. Enquanto em Portugal muitos tentavam recuperar depois do jantar carregado de doces, eu estava a 36 mil pés de altitude a sobrevoar o Oceano Atlântico, no regresso de uma visita relâmpago a São Paulo, no Brasil. Já tive de passar o Natal no estrangeiro, mas este caso era diferente.

Bandoletes e luvas natalícias

“O que é que acontecerá lá em cima, no tubinho com asas, durante a consoada?”, pensava a caminho do aeroporto. A hora já era avançada — 21h30, o avião partia às 23h25, hora brasileira. Em Portugal eram duas horas a mais — e as ruas paulistas pareciam desertas. Quando cheguei ao aeroporto, vi que o mesmo cenário se repetia. Não havia quase ninguém nas habituais filas de check-in e as poucas pessoas que por lá andavam alongavam-se em abraços chorosos. O cenário não parecia o mais feliz, mas ao menos não foi preciso esperar muito na fila da segurança.

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Venho de uma família onde tudo o que é festa é levado muito a sério. Pais, avós, tios… Ninguém diz que não a um brinde, uma cantoria, uma máscara, por isso esperava que alguém usasse um barrete de Pai Natal ou um pin festivo. Nada. Qualquer pessoa mais distraída nem notaria que estávamos na véspera de Natal. Mas enquanto esperava pela sua vez no controlo de passaportes, um grupo ria, bem-disposto. No casaco de um dos comissários estava uma chamativa mini-árvore de Natal com luzes a piscar.

Mas enquanto esperava pela sua vez no controlo de passaportes, um grupo ria, bem-disposto. No casaco de um dos comissários estava uma chamativa mini-árvore de Natal com luzes a piscar.

Quase todas as lojas estavam fechadas, mas grupos de jovens, famílias, casais e uma ou outra excursão ajudavam a preencher o vazio. Ao ver a fila gigante que já se formava junto da porta de embarque, rapidamente me arrependi de desejar mais movimentação. Perto do balcão de embarque, um duo ele-e-ela na casa dos 50 e que fazia parte da tripulação despedia-se de um jovem de vinte e poucos anos vestido à civil. Não foi difícil perceber que se tratava de uma família que preferiu passar o Natal em conjunto, mesmo que fosse algures pelos ares.

Depois de largos minutos a serpentear em ridículas e intermináveis filas, vislumbrava a porta do avião. Lá estava o casal a dar as boas-vindas. Ele tinha um crachá redondo com o casaco do Pai Natal e ela umas luvas de veludo vermelho e bainha em pelo branco. “Que maravilha!”, pensei.

Já no corredor do avião vejo duas hospedeiras com bandoletes a imitar hastes de rena. Na fila do lado, um comissário com algo parecido a espreitar da cabeça: um pequeno boneco de neve em feltro. Um senhor brasileiro que estava à minha frente até disse a brincar: “Deixem passar as renas que a seguir só pode vir o Papai Noel!” Todos riram.

Se não vamos aos coscorões, os coscorões vêm a nós

“Senhores passageiros, esperamos que encontrem neste voo a alegria natalícia suficiente para celebrar a data connosco”, disse o piloto pelo altifalante da aeronave. Olho para o relógio e penso que, por aquela hora, Portugal já tinha aberto todas as prendas, bebido todas as águas com gás e apagado todas as luzes. No Brasil, porém, faltavam uns minutos para a meia-noite. Voltaria o comandante a dizer qualquer coisa, quando o ponteiro batesse nas 24h? Acreditei que sim, mas nada.

Um senhor brasileiro que estava à minha frente até disse a brincar: "Deixem passar as renas que a seguir só pode vir o Papai Noel!" Todos riram.

Na hora “H”, nem ele nem absolutamente nenhuma das mais de duzentas pessoas que me rodeavam exprimiram o mínimo sinal de que já era Natal. Assim se desmistificou uma das ideias que tinha sobre esta experiência. Imaginava que pais e filhos se abraçavam, possivelmente até trocando uma lembrança ou outra. Mas não, nada disso. Tudo impávido e sereno, de olhos postos em revistas, livros ou ecrãs.

Pouco depois começou a sentir-se um cheiro a comida. “Haveria uma refeição especial, dada a data?” — esta era outra dúvida que me intrigava. Não tinha grandes esperanças, mas fui surpreendido. “Moça! O que é o jantar?”, perguntou a minha vizinha do lado a uma hospedeira. “É bacalhau, minha senhora”, responderam. Fiquei surpreendido, confesso. Quando me foi servida a bandeja da refeição, nova surpresa. Tinha à minha frente bacalhau, correto, mas este era servido… com arroz. A mistura não seria a mais convencional (umas batatinhas cozidas não faziam mal a ninguém, malta), mas era a consoada possível. Como a sobremesa era um pedaço de Tronco de Natal, nem liguei. De barriga cheia vi as luzes da cabine serem desligadas. As pálpebras já pesavam, o sono vinha a caminho, por isso decidi ir ao WC antes de me recolher.

A casa-de-banho ficava junto às cozinhas do avião, aquele espaço fascinante e metálico cheio de portas e gavetas. Na bancada reparei que havia uma árvore de Natal em miniatura e uns panos a cobrirem algo. Sorrateiramente reparo num comissário que levanta o pano e tira um coscorão. Em conversas cruzada percebo de onde vinha aquilo tudo. Aparentemente, o tal “Pai e Mãe Natal” da tripulação tinham trazido mini-árvores para todas as cozinhas do avião, assim como umas pequenas porções de doces natalícios para dividir com os colegas. “Deram-nos um bocadinho de casa, uma consoada a jato”, disse um dos “aeromoços”.

Já todos ouvimos infinitas reportagens e artigos sobre as pessoas que trabalham em dias como este, contudo, eu nunca tinha assistido a algo deste género. Não sei se terá sido do gesto que estava a testemunhar ou de algum poço de ar furtivo, mas a verdade é que qualquer coisa cá dentro deu uma cambalhota feliz.

Isto já não é o que era

O ar condicionado de avião tem o condão de puxar o pingo do nariz como ninguém. A umas duas horas da chegada a Lisboa dei por mim a acordar com um espirro, que se fez seguir de outro, e mais outro e mais outros. Com as cataratas de Niagara a enfeitar a cara, fui pedir um lenço à galley (nome que dão às tais cozinhas de avião, soube mais tarde). Já aliviado, deixo-me ficar naquela zona mais uns tempos, a sacudir o torpor corporal. Entre o esticanço de pernas, “cruzo-me” com nova conversa.

Na bancada reparei que havia uma árvore de Natal em miniatura e uns panos a cobrirem algo. Sorrateiramente reparo num comissário que levanta o pano e tira um coscorão. 

“Antigamente ninguém voava no dia de Natal, sabiam?”, comentava uma assistente mais experiente com um rapaz que claramente andava na aviação há relativamente pouco tempo. Pelo que fui percebendo — entretanto pedi um copo de água, para ganhar mais tempo — os primeiros voos deste género feitos pela companhia em questão não tinham nada a ver com aquele onde estava agora. “Ainda lá tenho em casa guardado o menu de Natal de um desses voos!”, continua a senhora a explicar. Grande, em formato A3, a carta que na altura era distribuída a todos os passageiros (vim a perceber mais tarde que os viajantes de executiva nem bacalhau tiveram) vinha com uma espécie de postal numa das faces e, do outro lado, a lista de opções: “Podiam [os passageiros] escolher bacalhau ou peru! A bandeja até vinha com uma lembrança e tudo”.

De facto, as coisas tinham mudado muito, mas, como depois percebi, o estado de espírito dos homens e mulheres que olham por nós no avião mantinha-se imaculado. “Mas também trocavam lembranças como agora?”, pergunta o comissário. “Claro!”, foi a resposta. Vejo neste momento que o rapaz tinha um saco de papel na mão, enfeitado com um pequeno laço brilhante, de onde tirou umas pegas para tirar coisas do forno, um marcador e uma etiqueta de mala. Foram estes os recuerdos que um dos elementos da tripulação tinha dado a todos.

Já no meu lugar, ao ver o nevoeiro matinal a tapar Lisboa, vou digerindo tudo o que aconteceu. Antes de embarcar imaginava famílias felizes a trocar abraços e presentes nos seus lugares, a demonstrarem qualquer tipo de ligação ao ideal da quadra. A indiferença a que assisti provou que não podia estar mais enganado. Contudo, o espírito estava onde menos esperava, nas pessoas que trabalhavam. Imagino que ninguém viaje na noite de 24 de dezembro com um sorriso na cara, mas a verdade é que o acabam por fazer. Os outros, os membros da tripulação, esses não têm alternativa. Talvez seja por isso que se esforçam mais por trazer um bocadinho de casa com eles.

Durante o desembarque, já quase no fim, até, reparo que uma das assistentes se dirigia à casa-de-banho para mudar de roupa. “Ainda vai apanhar o almoço de 25”, pensei. Sortuda. Em vez de um Natal, vai ter dois. Um com a família verdadeira e outro com a emprestada. Estive para lhe dizer para “voar para casa” mas depois achei que talvez fosse de mais.

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