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uan Naharro Gimenez/Getty Images

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A América proibida de Oliver Stone

Fez 70 anos este mês, ao mesmo tempo que era publicado um livro sobre um dos realizadores mais polémicos de Hollywood. Bruno Vieira Amaral explica porquê, poucos dias antes da estreia de "Snowden".

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The Oliver Stone Experience – um livro que, segundo o autor, não é apenas um retrato mas uma homenagem a Oliver Stone – aparece numa altura em que o realizador de “Platoon” bem precisa de carinho. Depois de um período em que foi, sem dúvida, o realizador mais importante do mundo, aquele sobre o qual toda a gente tinha de ter uma opinião, e não necessariamente sobre os filmes, Stone parece ter perdido a qualidade mágica que o fez alinhar uma série extraodinária de filmes “importantes” e “controversos”.

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Entre 1986 e 1995, Stone deu-nos estes filmes: “Salvador”, “Platoon”, “Wall Street”, “As Vozes da Ira”, “Nascido a 4 de Julho”, “The Doors: O Mito de Uma Geração”, “JFK”, “Quando o Céu e a Terra Mudaram de Lugar”, “Assassinos Natos” e “Nixon”. Independentemente da reavaliação estética que agora se possa fazer sobre alguns deles, das acusações de sentimentalismo e de moralismo, é inegável que estes filmes marcaram uma época, originaram múltiplos debates sobre a representação da violência no cinema e o outro lado da história americana e influenciaram uma geração de realizadores, como Ramin Bahrani, autor de “99 Casas” e do prefácio deste livro, e que na altura estavam mais habituados ao que o crítico Zoller Seitz (autor do livro) chama de “filmes série B com orçamentos gigantescos”. As críticas a “Snowden”, o mais recente filme de Stone (que se estreia dia 22 em Portugal), refletem essa perda da aura, com o crítico do Guardian, por exemplo, a dizer que o realizador, apesar da escolha de um tema actual e inegavelmente “stoniano”, não está em sintonia com o seu tempo. A pergunta que se deve fazer é: alguma vez esteve?

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[o trailer de “Snowden”]

O rejeitado

“Platoon” e “Nascido a 4 de Julho” são, na verdade, filmes dos anos 70 que, por uma série de acasos, só foram feitos nos anos 80, numa altura em que o tratamento cinematográfico sério da guerra do Vietname tinha sido fixado por filmes como “Apocalypse Now” e “O Caçador” e quando, no auge do reaganismo, começavam a surgir as narrativas de reparação, do género “desta vez ganhávamos”, como “Rambo II” e os “Desaparecido em Combate”, com Chuck Norris. O zeitgeist estava num filme como “Top Gun”, que assinalava o reavivar do triunfalismo norte-americano. A rejeição pelos estúdios daqueles dois projectos sobre o Vietname marcou Oliver Stone que chegou mesmo a acreditar que nunca veriam a luz do dia (Sidney Lumet esteve para realizar “Platoon” e William Friedkin, “Nascido a 4 de Julho”).

O modesto percurso dos seus dois primeiros filmes – “Seizure” [1974] e “A Garra” [1981] – em nada contribuiu para dar poder ao realizador. Foi como argumentista que conquistou espaço em Hollywood para os seus projectos. Desde logo, com “O Expresso da Meia-Noite”, de Alan Parker, um filme polémico que fez do sistema prisional turco o que Dante fez do Inferno. Os turcos reagiram contra o filme, acusando os autores de divulgarem uma imagem distorcida e negativa do povo e das instituições turcas. A história era baseada no caso real de Billy Hayes, um norte-americano condenado a uma pena de prisão na Turquia por ter tentado entrar com droga no país. Neste livro, Stone diz que nunca pediu desculpas à Turquia e que nem tinha de o fazer, embora reconheça que se soubesse que Hayes já tinha transportado droga por três vezes (no filme, Hayes é apanhado à primeira) teria escrito um argumento diferente. Polémica à parte, Stone ganhou o Óscar e, a partir daí, tornou-se um dos argumentistas mais requisitados e correspondentemente pagos. Seguiram-se “Conan e os Bárbaros” (realizado por John Milius) e “Scarface” (de Brian De Palma, uma vez mais dois títulos envoltos em polémica). O crítico Roger Ebert, por exemplo, escreveu que algumas cenas de “Conan” poderiam ter sido realizadas por Leni Riefenstahl e certamente seriam aplaudidas por Goebbels.

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Neste livro, resultado de mais de cem horas de entrevista do autor a Oliver Stone e que conta com ensaios e testemunhos sobre a obra, o realizador revisita o seu percurso e fala abertamente sobre as dificuldades, os mal-entendidos, os passos errados, as acusações de racismo e misoginia que lhe foram feitas ao longo dos anos. A este propósito, quando choveram críticas a “Scarface” sobre a representação enviesada da comunidade cubana nos EUA e sobre a violência do filme, Stone defendeu-se argumentando que a história era baseada em factos conhecidos da chamada “guerra da droga em Miami”, no início dos anos 80. Quanto a “Conan”, Stone diz que a sua visão foi deturpada quer por elementos introduzidos pelo realizador, quer pelo produtor, Dino de Laurentiis, talvez a figura mais castigada pelo realizador nestas páginas: chama-lhe “cretino”, “imbecil”, de “vistas curtas”, e isto para nos ficarmos pelos termos mais elogiosos. Outra figura maltratada por Stone é Ray Manzarek, o teclista dos Doors e que foi um dos principais críticos do filme sobre a banda. Stone chama-lhe “an evil motherfucker”.

O “Ano do Dragão”, de Michael Cimino, também lhe valeu críticas, desta vez da comunidade chinesa. Se Oliver Stone tem elogios para Cimino não faltam críticas a Hal Ashby, para quem escreveu “8 Milhões de Maneiras para Morrer”. Depois de entregar o argumento ao realizador, Stone soube que Robert Towne (o argumentista de “Chinatown”) tinha trabalhado no mesmo, alterando substancialmente o original. Stone acha que o seu nome não devia aparecer nos créditos porque não considera que aquele seja o seu filme.

Contudo, em ambos os casos, é de salientar a colaboração com dois nomes fundamentais do cinema da década de 70. Com o fim da chamada Nova Hollywood com “As Portas do Céu”, o monumental fracasso de Cimino, Oliver Stone começava a ganhar ascendente sobre os que tinham sido os realizadores determinantes daquela vaga. Foi como um maratonista que se tivesse atrasado na partida e viesse a recuperar terreno. Cimino e Hashby tinham, aliás, feito dois dos filmes icónicos sobre o Vietname, o já referido “O Caçador” e “O Regresso dos Heróis”, sobre precisamente a vida dos veteranos de guerra depois de regressarem aos EUA. “Platoon” e “Nascido a 4 de Julho” podem ser considerados dois filmes de resposta, a resposta pessoal de Stone. E se, por um lado, o próprio Stone achava que tinha perdido a oportunidade de fazer aqueles filmes na altura certa, nos anos 70, por outro, o facto de os ter feito nos anos 80, quando Hollywood já ia noutro sentido, pode ter sido decisivo para o seu impacto. É que, no que diz respeito ao Vietname, Stone tinha uma grande vantagem sobre os outros realizadores: tinha estado lá e combatido.

O quase escritor

William Oliver Stone nasceu em Nova Iorque em 1946. O pai era um corretor da bolsa, judeu, e a mãe uma jovem francesa de temperamento artístico. Conheceram-se durante a II Guerra Mundial, em França. Oliver Stone era filho único e, como tal, beneficiou de uma educação relativamente privilegiada. Era um jovem com aspirações literárias e sonhava em ser um Bellow, um Updike, um Mailer. Em 1968, depois de ver um romance rejeitado pelas editoras, alistou-se para combater no Vietname. Teria sido fácil para ele escapar à guerra, mas tinha fome de vida real e, ao mesmo tempo, procurava libertar-se da culpa pelos privilégios da sua classe. Combater no Vietname foi, no entender de Zoller Seitz, o “desejo de trair a classe”, o desejo de se misturar com o homem comum, de anonimato (uma reacção à rejeição do romance) e um desejo inconsciente de morte. Na guerra aprendeu que “a morte real é muito mais feia do que a morte imaginária.” De lá, para além desse ensinamento trouxe condecorações, incluindo a Purple Heart, e estilhaços no corpo.

"Neste livro, resultado de mais de cem horas de entrevista do autor a Oliver Stone e que conta com ensaios e testemunhos sobre a obra, o realizador revisita o seu percurso e fala abertamente sobre as dificuldades, os mal-entendidos, os passos errados, as acusações de racismo e misoginia que lhe foram feitas ao longo dos anos."

Regressado aos EUA, sentiu-se, como tantos outros veteranos, deslocado. A entrada na Universidade de Nova Iorque, para estudar cinema, só agravou o sentimento. Ali estava ele, um antigo combatente, que herdara do pai o conservadorismo (em 1980, como diz no livro, votou em Reagan), mergulhado num ambiente liberal. Um dos seus professores foi Martin Scorsese, que na altura já tinha realizado “Who’s That Knocking at My Door”: “Um maluco. Um maluco de Nova Iorque. E muito divertido”.

Stone lembra-se que Scorsese aconselhava os alunos a fazerem filmes pessoais, uma lição que guardou porque os seus filmes, embora tenham um cariz político, são todos profundamente pessoais e, em muitos casos, estão cheios de referências autobiográficas mais ou menos directas, como se vê em “Wall Street”, o filme que criou no público a percepção de que Oliver Stone tinha um faro único para captar a sua época. O filme estreou dois meses depois do crash bolsista de 1987 o que, como é óbvio, Stone não podia ter previsto. O próprio esclarece que, acima de tudo, o filme é uma homenagem ao pai, a quem o filme é dedicado: “É importante que saiba isto: não tive nenhuma motivação política consciente para fazer Wall Street. Fi-lo sobretudo por curiosidade em relação ao meu pai. Era na verdade uma exploração do mundo do meu pai, que eu achava atmosfericamente fascinante, e eu queria voltar aonde tinha estado nos anos 50, quando o meu pai me levava a Wall Street, com aquelas luzes e os escritórios”. O realizador também afirma que o modelo para o filme foi o clássico de Alexander Mackendrick, Sweet Smell of Sucess, sendo que a relação entre Bud Fox e Gordon Gekko tem evidentes pontos de contacto com a relação entre as personagens de Tony Curtis e Burt Lancaster naquele filme.

[o trailer de Wall Street]

Porém, qualquer que fosse a intenção de Stone, o filme tocou um nervo colectivo ao retratar na perfeição o espírito yuppie dos anos 80, personificado por Gordon Gekko, a personagem que valeu a Michael Douglas o Óscar. O célebre discurso de “greed is good” tornou-se quase um lema do capitalismo selvagem, embora Stone já tivesse explorado a questão do dinheiro e do poder, nomeadamente no argumento de “Scarface”: “When you get the money, you get the power; then you get the power, then you get the women”. A frase podia ter sido igualmente proferida por Gordon Gekko. No entanto, apesar do Óscar de Michael Douglas, o filme foi ignorado pela academia, um facto de que Stone continua a lamentar-se: “Porque é que, à excepção de Michael Douglas, Wall Street foi ignorado? Nenhuma nomeação para nada, incluindo o argumento ou outra coisa qualquer? Dois anos depois, ‘Uma Mulher de Sucesso’ foi nomeado!”

A América como ele a vê

Nos filmes seguintes, Stone começou a explorar outras potencialidades visuais. Se “Wall Street” é filmado de forma convencional, já em “The Doors” (“uma das melhores experiências da minha vida”), “JFK” e sobretudo “Assassinos Natos”, Stone recorreu a técnicas inovadoras. Ao comentar “O Lobo de Wall Street”, Stone diz que Scorsese, nesse filme, decidiu usar as “cores mais impressionistas, tal como eu tinha feito em The Doors e ‘Assassinos Natos’: alcançar uma nova dimensão e tentar desfrutar com isso!” Só que em “JFK”, por exemplo, Stone diz que não havia à partida nenhuma intenção de inovar, que a equipa estava simplesmente a “responder às exigências da história”: “Foi a reacção ao facto de nos termos apercebido de que não podíamos fazer os flashbacks do modo tradicional caso contrário o filme […] teria umas seis horas. […] Foi uma abordagem neo-‘Rashomon’ [filme de Akira Kurosawa que conta a mesma história através de pontos de vista diferentes]. Ninguém sabe onde está a verdade. É tudo incerto”.

O seu período dourado chegou ao fim com “Nixon”. O filme foi um fracasso de bilheteira e, apesar de Stone ter continuado a trabalhar em Hollywood, o poder que tinha alcançado nos anos anteriores ficou bastante limitado. Ao contrário de “JFK”, que tem um ritmo frenético, conspirativo e uma notável galeria de secundários coloridos, “Nixon” é um estudo de personagem, uma viagem de reconhecimento da personalidade torturada de Richard Nixon e que surpreendeu os críticos e o público pelo grau de empatia do filme em relação ao protagonista.

Olhando para trás, Stone reconhece, com algum sarcasmo, que o filme estava condenado desde o início: “Um branco rodeado de outros brancos, penteados horríveis, fatos horríveis, a conversarem sentados em salas”. O filme tem uma das grandes frases da história do cinema que, ao contrário do que muita gente pensa, nunca foi proferida por Richard Nixon. Perto da estátua de Kennedy, Nixon (representado por Anthony Hopkins) diz-lhe: “Quando olham para ti, vêem o que gostariam de ser, e quando olham para mim vêem aquilo que são.” A empatia em relação a Nixon talvez seja explicada por esta frase que também resume os dez anos em que Stone esteve no topo da cadeia alimentar e pôde mostrar ao mundo a América tal como ele a vê e não a América que a maioria dos americanos gostaria de ver.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015

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