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Adrian Hillman / iStock

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A bulimia e a falsa perfeição: Manuel, o rapaz que queria mirrar

Da obsessão ao desespero, a história de Manuel faz parte do livro "Fome de Perfeição", sobre as causas e consequências das doenças de comportamento alimentar. O Observador publica um excerto.

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São várias e todas diferentes, apesar de traços em comum. As doenças de comportamento alimentar. Não são doenças de raparigas, não se concentram em determinadas idades, estratos sociais ou classes profissionais. Podem manifestar-se cedo mas também chegam na terceira idade. Estão relacionadas com problemas psiquiátricos e psicológicos, a abrangência é grande e as consequências podem ser fatais.

“Fome de Perfeição” é um novo livro que aborda estas doenças. A autora, Diana Mendes, procura explicar de onde vêm, o que provocam e como podem ser tratadas. Para isso, junta os aspetos médicos e científicos com casos reais que ilustram diferentes situações.

No excerto que o Observador publica, a autora conta a história de Manuel, um jovem com pouco mais de 20 anos a quem foi diagnosticado um caso de bulimia. O que levou Manuel a desenvolver uma relação problemática com a alimentação, como a viveu, que tratamento procurou e como isso influenciou a sua vida.

“Fome de Perfeição”, de Diana Mendes (Saída de Emergência)

Manuel, o rapaz que queria mirrar

“Uma prova cega. Tinha um nome de um doente, uma idade próxima, 20 e tal anos, e um diagnóstico. Bulimia. Depois de ouvidas tantas histórias, houve, afinal, expectativas defraudadas. Ou, analisando por outro prisma, o reconhecimento de um preconceito.

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A bulimia é uma doença mais associada a uma depressão, a pessoas com baixa autoestima, peso normal ou em excesso. Por vezes vão mesmo engordando substancialmente na sequência da doença. Perguntei a três pessoas diferentes se se chamavam Manuel: uma estava com um ar meio perdido, deprimido, descuidado; a outra tinha algum peso em excesso; o terceiro estava decididamente a entrar na obesidade. “Não. Não sou o Manuel.”

Ligo o telefone e vejo uma outra pessoa a encaminhar-se para mim. O Manuel é muito alto, musculado, o corpo bem trabalhado como se fosse esculpido. Um jovem muito, mas mesmo muito bonito. Quando chega, quando fala, não parece nada ter uma perturbação de comportamento alimentar. Fala de dois fenómenos centrais na sua vida: o da vida pessoal — é assumidamente homossexual; e o da vida pessoal — é modelo. Para muitos estaria tudo decididamente explicado. Não explica nada. Nem um nem o outro.

Estes são dois aspetos comummente ligados a essas doenças pelos profissionais. Mas a verdade é que não é necessariamente assim. Não é.

Pelo menos, Manuel explica desde o início que um dos motivos para estar em frente a um gravador, a falar na primeira pessoa, é exatamente esse: o de a doença ser frequentemente relacionada com a homossexualidade, quando na verdade já se deparou com inúmeros casos em que a orientação sexual nada tem a ver com a equação.

O mesmo se passa com a profissão de modelo, preconceito que desmonta de imediato quando explica que, quando teve a primeira abordagem a uma agência de modelos, foi logo recusado. “Tens um corpo perfeito, mas a cara está demasiado magra. Volta quando estiveres bem”, disseram-lhe.

Os problemas começaram desde cedo: em criança já revelava ter uma relação pouco natural com a comida. “Já era obsessivo-compulsivo. Durante 15 dias só comia uma coisa, depois enjoava e fazia isso com outra coisa. Quando começava a ficar nervoso e algo não corria bem, só pensava em comprar mais animais. Era um acumulador de animais. Cheguei a ter cento e tal pássaros na cozinha.” Manuel cresceu, muito, mas continuou a olhar para a comida sem um olhar descomplexado, mas sim medindo cada alimento em paralelo com as suas consequências. Os animais também continuaram à sua volta. Em número muito inferior ao que desejaria.

Sonhos

A parte genética tem e teve importância para moldar Manuel, para além do efeito imprimido pela própria sociedade. Mas de uma coisa tem a certeza: “Se não fosse um problema alimentar, seria outro, como aconteceu com os pássaros. Ainda agora tenho cinco animais.”

Onde colocava os pássaros quando eram mais de uma centena? “Em gaiolas. Eram milhões de gaiolas na cozinha. Um barulho de loucos e um cheiro de loucos.” Quando começou a andar e a ver as montras das lojas de animais, ganhou esse gosto. “Sempre que tinha um euro, era para gastar em animais.”

“Tive uma dermatologista que me aconselhou a fazer uma dieta, porque há certos produtos que, retirados, podem ajudar a controlar a acne sem ser preciso recorrer a medicamentos. A partir daí, comecei a investigar cada vez mais a alimentação e isso constitui um perigo"

Mesmo em termos de amizades, as suas conversas obsessivas chegavam a afastar potenciais amigos. “Eu conseguia estar um dia inteiro a falar da mesma coisa, de um assunto que me interessasse. Ficava horas a olhar para eles, para os animais, conseguia distingui-los a todos.”

Isso acabou quando se apaixonou e começou a dar os seus animais. Nesta altura mantém o papagaio que tem desde miúdo. “Tive pássaros, quatro chinchilas no quarto, um cão, uma coelha, sempre tive montes de animais em casa, num apartamento. Se pudesse, continuava a tê-los, mas agora sei que isso não é bom.”

Criança obsessiva-compulsiva

Tinha já traços que mostravam uma predisposição para a doença. A isso juntou-se um outro traço, mais arredondado, involuntário e indesejado. Típico da juventude: a acne. “Tive uma dermatologista que me aconselhou a fazer uma dieta, porque há certos produtos que, retirados, podem ajudar a controlar a acne sem ser preciso recorrer a medicamentos. A partir daí, comecei a investigar cada vez mais a alimentação e isso constitui um perigo, porque comecei a ver a comida como um laboratório e não como um prazer. Em vez de ver um alimento, via proteína e gordura.”

Uma visão de um Keanu Reeves fora da Matrix, um scanner que analisa em profundidade toda a rotulagem dos alimentos e faz a sua triagem. A juntar a isso, autodiagnostica-se com a síndrome de Peter Pan. “Sempre quis ser pequenino; como nunca brinquei muito e era introvertido, cheguei a uma idade em que queria fazer tudo aquilo que não tinha feito. Depois, era muito magrinho e grande e achava que o meu corpo não condizia com a minha cabeça. Portanto, eu não me achava gordo. Só queria mirrar o meu corpo.”

Marco do desgosto de amor

Aos 17 ou 18 anos não queria ser adulto. A esse fenómeno da ausência de vontade de crescer juntou-se um desgosto amoroso aos 20. O controlo da alimentação era imperativo. O momento do clique, no entanto, foi o momento de vários cliques que ocorreram na vida de Manuel.

Primeiro, a morte da avó, que aconteceu no mesmo dia em que terminou a relação; depois, o momento em que assume a sua homossexualidade; o pai ir viver para África; a morte do cão ou uma zanga de família que envolveu todos os elementos e causou mais um afastamento doloroso. “Tudo aconteceu ao mesmo tempo, no espaço de poucos meses. Terrível para alguém que queria controlar alguma coisa. A única coisa que controlava era o que punha na boca.”

A homossexualidade foi revelada sem querer, porque chegou pelo telemóvel, o que veio acarretar ainda mais carga dramática a estas componentes da sua vida emocional. Não foi fácil, mas a família rapidamente encaixou mais esta mudança, que sempre fora reconhecida e aceite com a presença diária de casais homossexuais: “o amigo”, a “Rute”, eram associados a pessoas do seu convívio diário, mesmo que com estes quase nomes de código aplicados em alternativa a “namorado” e “namorada”.

No caso pessoal, nunca houve dúvidas em relação ao que sentia. Sabia que de nada valia fazer de conta, que era essa a sua natureza. Mas durante algum tempo ignorou o que era uma evidência, lutou contra isso. Aos 14 anos, quando teve as primeiras experiências, achou que aquilo seria algo que podia passar. Que talvez não fosse permanente.

A evolução da privação

Primeiro, queria apenas fazer uma refeição saudável: comer sacos e sacos de vegetais, controlar o índice glicémico. Mas o corte foi cada vez maior. De uma alimentação hipercontrolada, passou a uma vida social interrompida, porque essa dieta era impossível de cumprir no meio do seu círculo de amigos e das suas rotinas. Só assim conseguia atingir “aquele corpo franzino”.

Também Manuel não passou incólume ao efeito do cinema, das revistas, da imagem. E foram essas imagens de magreza, das estreias de cinema, que também o inspiraram. Talvez elas, não a moda. “Achava aquilo bonito e comecei a ir atrás disso e a tentar emagrecer. Cheguei a treinar durante cinco horas seguidas, sem comer durante todo esse tempo. Ingeria mais e mais estimulantes: café, chá verde, chá pu-ehr, e quase fiquei viciado em emagrecimento.”

E depois de emagrecer?

“Oh, Manuel, tu estás sempre com um corpo espetacular. Estás com uma barriga perfeita. Quando tu já tiveres emagrecido tudo, o que é que vais fazer?”

Nessa altura, a tia deixou-o sem resposta. E de facto, ao bater nos 64 quilos, tinha já muito pouco peso do alto dos seus 1,86 metros. Já toda a gente lhe dizia que era muito magro, mas ele tinha sempre algo a corrigir — tivera ele martelo e cinzel e fá-lo-ia — e ainda interpretava qualquer comentário como uma afronta.

Aos 20, 21 anos tentou uma agência de modelos, mas foi rejeitado. “Disseram-me que se notava a fome na minha cara. Até foi uma agência que me alertou para o problema que tinha. ‘Podes estar com esse corpo, mas parece que tens 30 e tal anos, estás com a cara completamente acabada’.”

Traduzindo: o verdadeiro receio era perder o que tinha conseguido, estragar todo o esforço que desenvolvera. Estava viciado em perder peso e em exercício físico.

A partir daí começou a ter medo de comer. “Cheguei a um ponto em que bastava uma faca tocar num hidrato de carbono para eu não comer. Chegava a ver se os comprimidos que tomava tinham hidratos de carbono.” Nessa altura já tinha frio durante o verão, a pele era baça, estava com um ar estranho, olheiras gigantes.

Aos 20, 21 anos tentou uma agência de modelos, mas foi rejeitado. “Disseram-me que se notava a fome na minha cara. Até foi uma agência que me alertou para o problema que tinha. ‘Podes estar com esse corpo, mas parece que tens 30 e tal anos, estás com a cara completamente acabada’.”

Assumia que tinha o corpo perfeito, mas a cara incomodava mesmo e até lhe perguntaram se era toxicodependente. “Eu não bebia álcool, mas cocaína aceitava porque perdia calorias. Bebia cinco ou seis redbulls para me aguentar, porque não comia. Usava 34 ou 36, o que, para um homem, é invulgar.”

Mas dizer isso ou ver isso nunca o fez sentir-se mal. Era um prazer sentir que as calças caíam e estavam largas. Uma satisfação. Comparável ao que tantas pessoas sentem quando conseguem perder peso, mesmo não tendo o mesmo nível de sucesso. “Só estava feliz se estivesse com a barriga para dentro.”

António Neves dirige o internamento do Hospital de Santa Maria, mas viu Manuel a título privado e reconhece que “a determinada altura, Manuel sentia-se um rapaz feio, começando a preocupar-se muito com o corpo. Achava que devia ser mais magro e desde cedo pôs essa hipótese de ser modelo e interessou-se por trabalhar o corpo. Não sei quanto tempo demorou entre essa fase e a ida à agência.”

Da anorexia à bulimia

E durante todo esse tempo, não sentiu fome? “Eu não sentia fome porque era como se estivesse sempre a comer relva. Estava sempre a comer salada e depois comia tofu. E o tofu digere-se muito mal. E então se estiver cru… Comia dois quilos de seguida para ficar saciado. Ao almoço também chegava a comer dois quilos de carne. Mais nada. Comia proteína e verduras só com uma colher de azeite.”

Quando comia muito, compensava com ginásio ou comia menos para equilibrar os excessos, mas o início deste fenómeno não deixava de estar mais próximo da anorexia.

A certa altura, o médico começou a introduzir certas quantidades de alimentos. “Lembro-me, por exemplo, de ser uma vitória quando consegui comer cinco goji berries, porque nessa fase eu não comia hidratos de carbono. Para mim foi mesmo uma vitória enorme, mas eu sentia aqueles hidratos de carbono todos a entrar pelo corpo. De repente tinha uma sensação semelhante à associada à heroína. Começava a comer, comer, comer, comer, até que tinha de ir ao hospital porque nem vomitar conseguia, tinha a barriga completamente distendida, sentia que o estômago ia rasgar. E isso era cada vez mais recorrente. Acontecia uma, duas, três vezes por semana e depois não comia mais.”

António Neves confirma este padrão. “Como comia tanto e não vomitava, o estômago ficava demasiado dilatado e tinha dificuldades em fazer a digestão, mas houve alturas em que chegou a ser dia sim, dia não. Foi a fase mais grave. Sobretudo com doces crocantes.” Treinar e beber café eram as alternativas aos episódios de binge eating.

O peso continuava muito em baixo, mas agora tinha variações semanais de dois quilos, consoante comia ou deixava de comer para compensar. “O corpo estava quase liofilizado, parecia um camarão. E fazia muitas horas de ginásio. Quando recuperava, já podia comer.” Mas em vez de comer uma bolachinha, quando achava que tinha esse direito, perdia novamente o controlo.

Quando tentava moderar-se, sentia fome. Muita fome. Dava voltas na cama sem dormir, porque a fome desperta todos os sentidos. O excesso de estimulantes a que se sujeitava, em especial cafés, também não contribuía para apaziguar a mente. “Estava completamente elétrico. E treinava até às dez da noite todos os dias, sem descanso. Depois só me dava com os maluquinhos do ginásio e das dietas. As pessoas perguntavam como é que eu percebia tanto de dietas e, quanto mais me diziam isso, mais autoestima tinha. Sentia-me o mais entendido em nutrição.”

Mesmo para estudar, reconhece, não era possível sem comer e sem uns doces, no caso dele sobretudo bolachas. Viver agarrado a dietas, como sempre tem vivido, é uma prisão. “Antes estar agarrado às drogas. Pelo menos não as temos diariamente connosco".

Sabia o valor nutricional dos alimentos de cor. Sabia da forma como tem sabido sempre aprender as matérias que lhe interessam particularmente. Viveu sempre ajudado pela atenção seletiva. Ou pela total desatenção e desinteresse quando os assuntos não o motivam.

“Tudo o que é da área das ciências, basta olhar uma vez e fixo logo, se for do meu interesse. Mas se não me interessar… já me tentaram explicar 50 vezes coisas das finanças e eu não consigo.” O exemplo mais caricato, para não dizer bizarro, foi o da matemática. “Estive quase cinco anos a tentar acabar a porcaria da matemática de 12.º ano. Ia todos os dias à explicação, estudava… E se me perguntar alguma coisa, eu não sei. Devo ter sido o aluno que mais vezes em Portugal foi ao exame de matemática e nunca conseguiu ter mais do que cinco. Que vergonha! Fui sete vezes ao exame, claro, de primeira e segunda fase.”

Não conseguiu e isso impediu-o de levar ainda mais a fundo os seus conhecimentos de nutrição ou tirar outro curso semelhante. A alternativa de sonho seria a medicina veterinária, um curso para o qual parece ter nascido, mas que exigia notas ainda mais elevadas.

“A minha explicadora, que era conhecida por conseguir ajudar mesmo os casos mais difíceis, e que andava sempre de volta de mim, dizia: Manuel, desiste, não vale a pena.”

Mesmo para estudar, reconhece, não era possível sem comer e sem uns doces, no caso dele sobretudo bolachas. Viver agarrado a dietas, como sempre tem vivido, é uma prisão. “Antes estar agarrado às drogas. Pelo menos não as temos diariamente connosco. Ainda agora tenho de me controlar, porque se não, volto rapidamente ao mesmo. Oscilo muito de peso. Mesmo depois de acabar com a moda, senti isso.”

Longe da moda

As dietas nada tiveram a ver com imposições da moda. “E quando vejo casos de pessoas que querem entrar neste mundo, recordo-lhes que não conseguem trabalhar assim. O IMC é uma treta, porque pode não ser o ideal para aquela pessoa. Um manequim tem 1,80 metros. Mas os 60 quilos podem ser muito para um e pouco para outro. Em moda pedem medidas e não peso.”

O desporto é, na sua opinião, mais perigoso para os miúdos que têm maior risco de desenvolver distúrbios alimentares. “O ballet é terrível. Aí perdem peso, um quilo pode fazer diferença, e os atletas têm de treinar em jejum em muitos casos.” Quando entrou na agência, David Simões disse-lhe logo que com aquela cabeça não ia conseguir trabalhar nunca. E foi isso que o levou a pedir ajuda. Queria trabalhar.

A essa vontade juntou-se mais um ingrediente para a sua recuperação. A mãe comprou-lhe um cão. “Quando estava a caminhar para a doença, morreu o meu cão, a quem era muito ligado. Mas dois ou três anos depois, puseram-me um cão nas mãos, porque consideravam ser uma mais-valia, tanto a minha mãe como o meu psicólogo. A verdade é que o Boris me trouxe a melhoria, como se fosse da noite para o dia. Deixei de olhar tanto para mim e comecei a cuidar dele, a responsabilizar-me…”

A escolha do cão fá-lo brincar um pouco com a sua autoimagem. “O cão que me deram é completamente gordinho, é um basset hound. E eu que fiquei com fobia a pessoas gordas. Faz-me confusão pessoas que se deixam desleixar… Eu quase consigo adivinhar as medidas das pessoas.” A fase pior foi entre os 20 e os 22 anos. Com os 64 quilos. A viragem foi aos 22 anos, em que atravessou uma fase de 24 meses de loucura. “A minha mãe até envelheceu não sei quantos anos.”

Nesta fase começou a ser seguido por António Neves. Logo na primeira consulta diagnosticou-lhe uma bulimia. Nessa altura, a nutricionista tinha muito trabalho para o convencer a comer. “Ia aumentando goji por goji. Pesava tudo o que comia. Depois do tofu, passei para as crackers. Só comia as cinco e mais nenhuma. Controlava os hidratos de carbono comendo só uma lata de feijões”, exemplifica. “Controlava tudo para manter o peso.”

Do lado dos médicos, apenas havia um objetivo central, que era controlar as compulsões. Só assim sabiam que podiam controlar as compensações. “A minha nutricionista prometeu-me que me ia pôr a comer hidratos de carbono, mas que não ia sair do peso da altura. E assim ganhei a confiança dela.” A dieta era ao milímetro, um desafio que a obrigava a passar uma manhã, e não uma consulta de menos de uma hora, só com o Manuel. Discutiam pormenores de água, de calorias, de índices glicémicos, vitaminas, betacarotenos, macro e micronutrientes. Palavrões a que poucos ligariam se não fossem obsessivos com a alimentação como Manuel. Comprava saladas lavadas e comia quatro sacos de cada vez. A erva “enche”. Os frutos secos eram outra opção. Mas se até uma pessoa sem perturbações do comportamento alimentar tem compulsões com este tipo de alimentos, um doente como Manuel tem ainda menos capacidade para se controlar.

“As bolachas magoavam-me a garganta, o esófago, porque eu não as mastigava. Ficava com dores. Eu até me assustava. Houve um dia em que eu estava a ver aqueles programas da Oprah, do Dr. Oz, e no intervalo eu comi uma séria de caixas de belgas das grandes. Foi em menos de uma hora. Era do género de meter três ou quatro bolachas na boca e depois ter uma garrafa de água ou leite para beber e ajudar a empurrar.”

E no meio da conversa, tergiversa. Diz que ninguém come cinco nozes, como ninguém come apenas um quadradinho de chocolate. Que a melhor hora para cometer estes pequenos pecados doces é à noite, na cama, hora proibida. “Dá muito prazer.”

As compulsões de Manuel, que contava as calorias e sabia de cor a composição nutritiva de todos os alimentos, pareciam não ter freio e envolviam muitos desses alimentos que sabia estarem-lhe vedados. “Comia muitas bolachas. Cheguei a comer oito caixas de bolachas de seguida. Hoje faço-o com menos frequência, mas estes episódios ainda acontecem. Agora, como um pacote de bolachas e no dia seguinte tenho uma ressaca. Comia belgas, tudo o que fosse estaladiço e fizesse barulho. A nutricionista até me explicou que isso tinha a ver com a necessidade de abafar as nossas vozes. E se calhar isso faz sentido.”

A forma como comia estas bolachas, nomeadamente as belgas, era completamente descontrolada, em enormes quantidades e em tempo recorde. A rapidez aliava-se a uma ingestão de várias ao mesmo tempo. Quem pagava era o corpo.

As bolachas magoavam-me a garganta, o esófago, porque eu não as mastigava. Ficava com dores. Eu até me assustava. Houve um dia em que eu estava a ver aqueles programas da Oprah, do Dr. Oz, e no intervalo eu comi uma séria de caixas de belgas das grandes. Foi em menos de uma hora. Era do género de meter três ou quatro bolachas na boca e depois ter uma garrafa de água ou leite para beber e ajudar a empurrar.”

O sentimento de culpa não existia nessa altura, como aliás acontece com todas as vítimas desta doença. No seu caso, era quase uma obsessão. Não conseguia parar de comer. “Parecia que o mundo ia acabar. Eu lembro-me de olhar para a luz para me aquecer, eu via as minhas veias a dilatar. Eu apertava-me, tentava segurar-me. Era uma situação de impotência.” Olhando para Manuel, não se veem consequências físicas. “Felizmente nunca teve nada de muito grave”, diz António Neves. Apesar de tudo, não, porque usava poucas manobras purgativas. “Mas ele chegou a descrever-me situações em que estava a comer durante duas horas e tal ininterruptamente. Depois, quando terminava, deitava-se e não se conseguia mexer. Por uma ou duas vezes teve de ir às urgências, porque tinha dores. Deram-lhe soro e algo para a dor e para as cólicas.”

As consequências da doença também se iam revelando. “Os dentes começaram a ficar um pouco mais estragados, porque vomitava, embora usasse sobretudo laxantes. Eu comia tanto, que já nem conseguia vomitar. Cheguei a ter desmaios, ficava completamente tonto.” A mãe não podia ficar indiferente ao estado a que o filho chegara.

Comer ainda a sós

Enquanto a bulimia controlou a vida de Manuel e era ocultada de todos os familiares e amigos, essa solidão e recato eram expectáveis. Mas ainda hoje teimam em não desaparecer. Tal como no caso da doença, não é possível uma passagem de um mundo de controlo (ou descontrolo, dependendo do ponto de vista) para um mundo novo; de uma vida com episódios de compulsão e compensação para um equilíbrio nas refeições e na forma como cada alimento é visualizado e integrado nas rotinas alimentares.

Graves foram sobretudo os momentos em que tinha de ir para o hospital porque estava cheio, dando-lhe coisas para o estômago relaxar. Ainda dormiu noites no hospital por causa disso. De resto, recorda-se de poucos sintomas e mal-estar físico.

Ainda hoje lhe é difícil socializar através da comida, partilhar alimentos, falar sobre este tema de forma natural. “Não consigo comer um doce ou o que quer que seja à frente de uma pessoa. Não gosto de comer ao pé das pessoas, que olhem para o que eu como ou que me façam perguntas. Odeio que me tirem comida do prato, nem que seja um bocadinho. Se tenho aquela dose, é aquela que quero comer. Por isso odeio se me tirarem comida do prato. Tiraram-me uma vez três batatas e o que pensava é que já não ia comer o pacote todo. São coisas estúpidas, mas são um facto.” No exercício físico é semelhante, mesmo não praticando as cinco horas de outros tempos. Continua a ser um marco do seu dia. “No outro dia magoei as costas e tinha dores horríveis, mas continuei a treinar. Estive assim três ou quatro semanas, mas continuei a treinar. Devia ter parado, porque agora tenho mesmo de o fazer.”

Apesar de já ter 75 quilos, continua a ir ao ginásio todos os dias. Seja como for, nada disso é de estranhar, porque são estes treinos que lhe permitem comer alimentos que antes vedava da sua ementa. “Ir ao ginásio permite-me comer. Vou nem que sejam só 45 minutos.”

Sem treino, dificilmente consegue manter a ingestão de hidratos de carbono, que vai reduzindo progressivamente. Já se conhece bem de mais. “Hoje não fui treinar e só comi duas fatias de pão sem glúten e um pouco mais de manhã. Mais nada. Sei que não vou conseguir. Vou ter de estar assim 15 dias por conselho do médico. E vou perder peso. Mas para não entrar em paranoia, mais vale comer poucos hidratos de carbono, do que estar daqui por uma semana sem comer. Já me conheço, se começar a recuar…”

Atualmente está a trabalhar e tem dificuldade em entrar em contacto com a nutricionista, caso tivesse necessidade. Por exemplo, quando passa por uma provação ou um desafio destes, que pode pôr em risco a sua evolução favorável.

Manuel está bem, muito bem, mesmo, mas reconhece a sua condição frágil, os pensamentos que desenvolve e onde o podem levar, com recaídas e cortes radicais de alimentos, se não forem bem geridos. “Neste momento não tenho tempo. Costumava ir de 15 em 15 dias e passei a ir de mês a mês. Agora, sei que tenho de voltar lá. Quando começo a ter muitas compulsões, está na altura de lá ir. Tenho de lá ir.”

A vida enquanto modelo e assistente na agência mantém-se. Mas já se apercebe de quando surgem miúdos com estes problemas — em especial homens — porque há um grande estigma ligado ao sexo masculino. “Parece que assumir isso implica logo que somos homossexuais. Há de facto casos em homossexuais, mas também em heterossexuais, até em homens que fazem cursos de halterofilismo e desporto. E, ainda por cima, não se apercebem desta doença, porque as pessoas não estão magras.”

Chegou a estar inscrito naqueles sites do proana nation, tal como os referidos logo no início deste livro. “Adorava, achava aquilo hilariante. Via como ponto de informação. Sabia que era um exagero, mas percebia aquilo. Tinha truques como os de comer gomas coloridas, porque quando elas apareciam, sabíamos que tinham saído ao vomitar. Outra coisa que eu fazia era comer coisas por ordem: depois, como tomava muito chá pu-ehr, vinham por digerir e eu já sabia que tinham saído. Basicamente, a minha vida era ver cocó. Quase pesava o que comia e via o que saía.”

Saber o tempo a esperar até vomitar é difícil. “O que fazia era beber Coca-Cola com leite, porque ajuda. Há truques muito parvos. Eu sempre tive dificuldade em vomitar e tinha de me encher com líquidos. Os dentes é que sofriam e os olhos estavam sempre muito vermelhos. Andava com a garganta inchada porque comia as coisas inteiras.”

Graves foram sobretudo os momentos em que tinha de ir para o hospital porque estava cheio, dando-lhe coisas para o estômago relaxar. Ainda dormiu noites no hospital por causa disso. De resto, recorda-se de poucos sintomas e mal-estar físico. “Como é que eu com 64 quilos a comer só tofu nunca tive uma tensão baixa? Nunca tive hipoglicemia; só quando recomecei a comer. É impressionante como o nosso organismo vai buscar as coisas de que necessita. Eu não tinha nada, conseguia treinar horas, estava sempre bem.”

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