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A ficção de Mário-Henrique Leiria tem muito gin-tonic

A E-Primatur editou a ficção completa de Mário-Henrique Leiria. Nuno Costa Santos já a leu e falou com Tania Martuscelli, responsável pela organização e pelas notas do volume.

Já conhecíamos e celebrávamos os clássicos de Mário-Henrique Leiria. Agora podemos visitar com facilidade a sua ficção inédita e dispersa, dos anos 1940 aos anos 1970, num volume que também traz os Contos do Gin-Tonic e os Novos Contos do Gin. Motivo para celebrar, sim, com um copo na mão, um lápis na outra e, para quem tenha talento e coragem, um microfone à frente. Uma volumosa e colorida edição está aí nas livrarias, pronta para ser lida em silêncio ou em voz alta, como pedem os textos de Leiria e Mário Viegas bem topou. Tania Martuscelli, crítica de literatura e de arte e Professora Auxiliar no Departamento de Espanhol e Português na Universidade do Colorado, em Boulder, nos Estados Unidos da América, é a responsável pela introdução, organização e notas.

“Obras completas de Mário-Henrique Leiria — Ficção”, edição da E-Primatur

A especialista nas áreas de literatura e cultura do século XIX ao século XXI em língua portuguesa, com foco nas vanguardas portuguesas e os estudos transatlânticos, sobretudo entre Portugal e o Brasil, trabalhou com a obra de Mário-Henrique Leiria durante o seu doutoramento e foi bolseira da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Biblioteca Nacional de Portugal, o que facilitou não somente as vindas a Portugal como o processo de transcrição, organização e digitalização do material. A organização durou entre dois e três anos. “A partir daí iniciei as análises com a intenção de acompanhar o percurso da poética leiriana, bem como sua arte antes e depois de sua participação do movimento surrealista”, conta. Defendeu, em 2006, a sua dissertação sobre as fases da sua poética com base em parte da poesia inédita. Entretanto, seguiu o seu trabalho com o autor com vista à publicação do livro, de 2013, Mário-Henrique Leiria Inédito e a Linhagem do Surrealismo em Portugal (Colibri). Portanto, a edição da obra completa, que começa com este volume, é resultado de um trabalho de mais de dez anos.

Inéditos e dispersos

De entre toda a ficção reunida, Tania Martuscelli imagina que o leitor, antes de mais, possa ir à procura dos textos desconhecidos que se referem ao Portugal político dos anos 1970, na linha dos “Contos” e dos Novos Contos do Gin Tonic. Mas também diz que há outros que julga merecerem uma nova curiosidade, abrangendo um universo para além do contexto português. “São os contos que retratam um quotidiano de personagens judeus, ou israelitas, como Leiria se refere nos textos. Esses contos são surpreendentes, ainda que Leiria seja de família judia, porque permitem uma via de estudo na literatura portuguesa que ainda está por ser desenvolvida. Sabemos todos da presença da cultura judaica em Portugal, mas pouco se busca essa cultura nos estudos literários”. Apresenta como alguns exemplos desse tópico contos como “Preconceitos da memória”, “Apenas uma morte” e “Solidão Total”. Igualmente surpreendentes, na óptica da organizadora do volume, são os guiões e as peças de teatro, jamais visitadas ou comentadas no contexto da obra do autor.

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Pergunta-se: nos “contos inéditos e dispersos” encontra-se alguma característica nova na sua escrita — ou esta põe em prática, com variantes, o seu programa de experiência consagrado nos Contos do Gin-Tonic? Todos os contos — assim como sua poesia — foram escritos entre fins de 1930 até fins de 1970 e por isso há uma natural variação temática e de estilo. Ainda assim, para usar as palavras de Martuscelli, o humor que é tão reconhecido nesta obra, a crítica social e o convite à reflexão depois da experiência da leitura são uma prática constante na escrita leiriana. Um riso com algumas pitadas de melancolia.

Primeiros-ministros que perdem o pé perante manifestações de apoio, vindo a estatelar-se, com “um som murcho e abafado”, no empedrado. Namorados que, no instante do beijo, são atravessados por rajadas de napalm. Figuras de nome Etelvino, que trabalham para a Nação, “qual delas, não estava bem certo”.

A inclusão, neste volume, de um ou outro texto que remete para o género poesia (como “Explicação Rigorosa” e “Esclarecimento”) justificam-se por ter sido o próprio escritor a incluí-lo nos Novos Contos do Gin. Tania não quis interferir na edição que ele havia feito aquando da publicação do livro, nos anos 70, pela Estampa. “Não modifiquei nenhum dos livros que passaram pelo crivo de Leiria. Retirei de ‘Depoimentos Escritos’ os contos que se publicaram lá para este primeiro volume simplesmente porque foi um livro póstumo das cartas de Leiria a Isabel Alves da Silva”.

Falando de novas abordagens à obra de Mário-Henrique Leiria, valoriza as leituras, como as que fez Miguel Santos a partir de uma selecção de textos do autor feita por Rosa Azevedo para a apresentação deste volume que teve lugar, em Maio deste ano, na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, durante o Reverso – Encontro de autores, artistas e editores independentes. “Foi uma experiência ímpar ouvir um actor a interpretar os contos, uma vez que hoje são muito poucos os que podem recordar – e gabarem-se de ter ouvido ao vivo – as leituras do Mário Viegas”. José Moreira é outro actor que tem dito a palavra de Mário-Henrique Leiria quer em teatro quer no formato audiovisual. Assistente de Mário Viegas em diversas peças, ainda nos anos 90, criou e interpretou um espectáculo, “Tributo a Mário…”, com textos do autor de Contos do Gin Tonic, representado, entre outros lugares, em Porto, em Lisboa, em Estarreja e no Seixal. Moreira também levou Mário-Henrique Leiria para o Brasil, país onde, lembre-se, o autor chegou a viver, numa performance, com ensaios abertos, dirigida por Tanah Corrêa. No cinema, protagonizou “Aguenta-te Rapaz”, curta-metragem realizada por Manuel Vilarinho e baseada na história de um resistente político encurralado numa sociedade sem a janela da democracia, que circulou em vários festivais, e “Chamada Geral”, do projecto “poetry must be on tv”, do mesmo realizador.

Uma Bebida Prudente

Se já conhecíamos e celebrávamos os Contos do Gin-Tonic e os Novos Contos do Gin, agora passamos a poder saborear o mesmo delírio e o mesmo nervo verbal noutras ficções do autor, agora reunidas neste volume de mais de 700 páginas. Passando por cima das brilhantes miniaturas dos primeiros volumes, como “Gin Sem Tónica”, “Carreirismo”, “Noivado” e “Casamento”, “Última Tentação” e “Rifão Quotidiano”, aterremos na primeira história de “Fábulas do Próximo Futuro”, “Liberdade em Segurança”, que apresenta Mário-Henrique Leiria na sua melhor forma, na sua capacidade de resolver uma narrativa em frases enxutas, sem gordura, no uso do absurdo como estratégia de sátira, na capacidade de rematar o texto com uma surpresa mordaz, feita com um condimento, forte, de humor negro. Depois da absolvição de três réus, um queixoso que nunca se levanta – por causa do ínfimo pormenor biográfico de estar morto – acaba sozinho numa sala de audiências, acusado de ser provocador, silencioso e revolucionário.

A seguir vêm outras, do mesmo calibre e com o mesmo feitio. Primeiros-ministros que perdem o pé perante manifestações de apoio, vindo a estatelar-se, com “um som murcho e abafado”, no empedrado. Namorados que, no instante do beijo, são atravessados por rajadas de napalm. Figuras de nome Etelvino, que trabalham para a Nação, “qual delas, não estava bem certo”, e que se deparam com a notícia televisiva que informa os cidadãos de uma circunstância a considerar: a pátria encerrara para obras. Também há textos sem fio narrativo, digressões em verso, de pendor crítico, sobre Portugal, como “Que Bom” e “A Minha Querida Pátria”, e exercícios lúdicos, de palavras, como “Jogo do Botão”. E há o já referido “Chamada Geral”, clássico aviso da fuga de um homem livre que gosta de tremoços e sorri com “extrema virulência”. Tudo banhado em ambiente anárquico e permanente crítica às autoridades, políticas e policiais.

“Às Vezes… à Quarta-Feira” é narrativa com basto surrealismo partindo do mais prosaico dos quotidianos. E um nome pitoresco, no contexto, como muitas vezes acontece com Leiria. Arranca nestes modos: “Valdomiro era uma excelente pessoa. Morigerado, sorridente, cumpridor do horário profissional, não fazia greves que não estivessem autorizadas, enfim, um patriota. Mas tinha uma obsessão: as quartas-feiras”

“Partida para Férias”, conto extraído de “Depoimentos Escritos”, é assim uma espécie de “Um Adeus Português” à Mário-Henrique Leiria, com o comboio a partir e a posterior visita a uma cervejaria – há várias por aqui – sórdida, onde um lorpa despeja sobre o narrador-protagonista uns restos de vinho no casaco. “E ela. Paris. Depois Hanôver. Férias… Bem… E eu que me lixasse aqui”. “Aguenta, Rapaz…”, dos mesmos depoimentos, faz-se de uma sequência de agressões, resolvidas linha a linha, com a figura que nos fala com amável estoicismo na expressão e algumas caretas pelo meio. De resto, a pincelada da ambiência: “Lá ia uma nuvem, toda lampeira, a brincar ao bucolismo. E nós aqui em baixo, a levar porrada…”.

O capítulo mais extenso do volume, “Contos Inéditos e Dispersos”, inaugura-se com um texto gozão para com o intelectualismo de literato suplemento, escrito a partir de um tópico apetecível para a glosa zombeteira: a recensão pretensiosa a um livro de Roland Barthes. Após a falta de interesse na leitura da artigalhada demonstrada por um tal de Amílcar, faz-se um sarcástico desabafo: “Que chatice! Este país está numa desgraça. Já nem sequer há intelectuais decentes!” Logo a seguir, “Revolução”, apresenta-se como uma paródia a uma revolução à portuguesa. “ – Está tudo preparado – acalmou-o o Rogério. – A Tucha traz-nos as metralhadoras na quinta-feira à noite, depois do jantar”. Tudo termina, com a ajuda do estado do tempo, em resultados mais hedonistas do que propriamente revolucionários. “Atentado” é a continuação da empresa de desconstruir os lusitanos costumes, trazendo consigo um Espião Principal, um Espião Secundário e um Espião Estagiário. “Às Vezes… à Quarta-Feira” é narrativa com basto surrealismo partindo do mais prosaico dos quotidianos. E um nome pitoresco, no contexto, como muitas vezes acontece com Leiria. Arranca nestes modos: “Valdomiro era uma excelente pessoa. Morigerado, sorridente, cumpridor do horário profissional, não fazia greves que não estivessem autorizadas, enfim, um patriota. Mas tinha uma obsessão: as quartas-feiras”. Até ao final prossegue o desfilar de encontros com, entre outras criaturas, unicórnios, uma jovem morcego, uma jovem hiena e um rinoceronte com boné de pala.

Afinal quem era Mário-Henrique Leiria, o poeta que bebia Gin-Tonic?

Enquanto se caminha por estes contos inéditos e dispersos, vai-se percebendo que a festa raramente afrouxa. O leitor encontra sem demora excelentes prosas. Como o “Passatempo – no Cais do Sodré, Como se Vê”, retrato de uma zaragata da altura em que por lá paravam, em vez de turistas e noctívagos trendy, putas e marinheiros. Ou o pequeno “A Economia”, em que um Bacalhau mastiga um afonso por assim sair mais barato às exigências do bolso. Ou “Um Caso Sentimental”, sobre uma tentativa de golpe de baú que acaba numa conta para pagar.

Monólogos, guiões e copos

Tratando-se de um autor vocacionado para a experiência, despontam vários géneros e exercícios. Um cadáver esquisito (“(Cadáveres exquis com Carlos Calvet)”). Duas parábolas bíblicas (“História Conhecida” e “História Habitual”). Uma fábula que remata com a inversão de um provérbio (“Anti-Provérbio”). Uma crónica sobre a “artéria chique da cidade”. Uma – mui própria, pois — crónica tauromáquica. Uma anedota-sketch sobre o Sr. Prudêncio. Uma redacção – muito divertida — sobre as férias que “nunca esquecem”, com convidados a quem tudo de mau acontece. Uma bela evocação de uma “noite africana, noite de sangue e morte, mas noite de mistério e beleza”. Um micro-conto sobre o amor filial de um escritor que é filho de uma “mãezinha paralítica”. Um monólogo genial intitulado “Fui Ao Meu Enterro”, no qual um morto vai fazendo considerações sobre aqueles que comparecem e percebendo quem foi seu vero amigo.

Entre diversos exercícios-esboços de novelo mais especificamente surrealista, a revelar que Leiria ganha mais força e novidade quando faz unir a subversão criativa à sátira da realidade política, social quotidiana portuguesa, moram alguns textos-piada como “Coisas do Entusiasmo”, em que um cego se lembra de que o é após o entusiasmo de receber foto-novelas pornográficas, ou “O Zaneta e o Marolho”, com o “povo grandolês” a pular às pampas. E ficções improváveis que juntam escritores (Aquilino Ribeiro, Ferreiro de Castro) e o COPCON num episódio passado no Elevador da Glória. E contos infantis sem moral alguma, na voz de um avô Gazoza, que acabam com interpelações provocatórias aos pequenos leitores.

O gin, claro, vai sempre aparecendo, bebida a acompanhar as diversões e as manobras. Até porque, como se diz em “A Invenção da Água”, “parece-nos mais prudente beber gin. Sempre”.

Também se arrumam aqui os “Casos de Direito Galático” (publicados, no ano passado, pela E-Primatur), paródia, com ficção científica dentro, dos casos práticos que muitos estudantes de Direito tiveram e têm de resolver em carteira de anfiteatro. Fica a mensagem para os interessados: “As respostas (concisas e concretas) deverão ser enviadas para o Foro da Comarca Legal mais próxima do Sector em que residir o estudante”. Depois dos assuntos jurídicos, chega “O Mundo Inquietante de Josela”, que inclui uma fuga de mamutes (há muitos mamutes e elefantes na imaginação de Mário-Henrique Leiria). Também eles, refira-se, acabam a beber gin tónico. Em “Mário e Isabel”, com desenhos de Isabel Lobinho, o leitor pode encontrar uma “última tentação” num Paraíso austero — em vez de maçãs, há apenas uma pequenina e pálida pera. “Diapasão”, mais para o fim, é um exercício novelesco que apresenta o ficcionista motivado em discorrer sobre temas como o amor e o desejo, em ambiente artístico-intelectual, ajudado pelo pensamento e pelos diálogos de personagens antagónicas – de um pintor ao director de uma revista literária, passando por duas mulheres, uma representando, em traços gerais, o sentimento e outra a emancipação. Sempre com um estilo seco, rápido, vivo, mas preferindo não recorrer aqui à verve humorística.

O “Teatro” e os “Guiões” – tal como “Script” e “Projecto para um ‘Film’” – tanto funcionam como pontos de partida para a performance como se realizam em pleno na página, não necessitando de palco ou plateau. Impossível não elogiar o divertidíssimo “Eflúvios Roxos ou Roxos Eflúvios” que, tal como “Noites Abstémias”, foi catalogado pelo autor como “Teatro de Boilevar”, aquele que terá sido apresentado com “êxito e abominação geral” na década de 40 do século passado. No meio, sem disfarce, uns tropeços de ternura, como dizia outro. Se Ruy Belo escreveu “Na Morte de Marilyn”, Mário-Henrique Leiria dedicou-se a “Desagravo para um Sorriso Esmagado”, uma carta, terna, para Marilyn Monroe: “Depois de seres inventada no depósito de sobras-e-metais-recuperáveis, atiraram contigo por cima das redes do cálculo para a alegria”. O gin, claro, vai sempre aparecendo, bebida a acompanhar as diversões e as manobras. Até porque, como se diz em “A Invenção da Água”, “parece-nos mais prudente beber gin. Sempre”.

Nuno Costa Santos, 42 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.

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