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A guerra secreta de Pio XII contra Hitler

Foi visto por muitos como um aliado do regime nazi. Agora, com base em documentos do Vaticano, o historiador Mark Riebling contra o outro lado de um dos mais importantes dilemas do século XX.

O livro “Os Espiões do Papa” segue Josef Müller como principal protagonista. O espião, político e advogado alemão fez parte da resistência católica anti-nazi durante a II Guerra Mundial. Entre os resistentes e o governo britânico, Müller passava informação que tinha em Pio XII um intermediário valioso. É escrito seguindo um formato que o aproxima do modelo “policial histórico” mas “Os Espiões do Papa”, diz o autor, segue factos históricos e documentos secretos que foram há pouco tempo revelados pelos arquivos do Vaticano.

Neste livro, que chega às livrarias esta quarta-feira e do qual o Observador faz a pré-publicação de um excerto, Mark Riebling procura mostrar como Pio XII teve uma importância decisiva na derrota dos nazis. Editado originalmente em 2015, este é o segundo livro do historiador, ensaísta e analista político americano, depois de “Wedge: The Secret War between the FBI and CIA”, de 1994.

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“Os Espiões do Papa”, de Mark Riebling (Editorial Presença)

“Seis meses antes do início da II Guerra Mundial, os cardeais da Igreja Católica reuniram­‑se em Roma. As portas da Capela Sistina fecharam­‑se atrás deles e os guardas suíços arvoraram as suas achas a barrar o caminho a quem tentasse entrar no conclave, ou abandoná­‑lo, antes de a maior religião do mundo ter escolhido o seu novo líder. No dia seguinte, 2 de março de 1939, milhares de pessoas enchiam a praça de São Pedro, de olhos cravados na chaminé que encimava o telhado da capela. Por duas vezes dela se ergueu fumo negro, a assinalar uma votação inconclusiva. Como sempre, a ausência de fumo branco fazia crescer a expectativa; mas, pela primeira vez desde que havia memória, o espetáculo atraiu uma multidão de correspondentes da imprensa estrangeira, cujas teleobjetivas, no dizer de uma testemunha, faziam lembrar «canhões antitanque». Com a Europa a caminho da guerra, as afirmações públicas do novo papa podiam influenciar as opiniões, a sua diplomacia discreta mudar o rumo dos acontecimentos. «Nunca desde a Reforma», escreveu um observador, «tinha a eleição de um novo papa sido aguardada com tanta ansiedade pelo mundo inteiro.»

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Às 17h29, um penacho de fumo branco ergueu­‑se da chaminé. Voaram chapéus, ribombaram canhões, repicaram sinos. Na varanda do Palácio Apostólico, o cardeal protodiácono debruçou­‑se sobre um microfone. «Anuncio­‑vos uma grande alegria. Temos papa! O eminentíssimo e reverendíssimo cardeal Eugenio Pacelli, que se impôs o nome de Pio XII.»

Com passos hesitantes, o novo papa acercou­‑se da balaustrada. Era majestaticamente alto e de uma palidez cadavérica, com olhos como diamantes negros. Ergueu a mão. A praça aquietou­‑se e a multidão pôs­‑se de joelhos. Por três vezes o novo papa fez o sinal da cruz. A multidão levantou­‑se num enorme fragor: gritos de Evviva il Papa! fundiram­‑se com o clamor cadenciado de Pacelli, Pacelli, Pacelli! Este manteve­‑se de pé na varanda, distribuindo bênçãos pelos presentes, com as mangas das vestes abertas como asas brancas. Depois, bruscamente, virou­‑se e desapareceu no interior de São Pedro.

No palácio, Pacelli entrou no quarto de um amigo moribundo. O cardeal Marchetti­‑Selvaggiani tentou soerguer­‑se. «Santo Padre», sussurrou ele, ao que Pacelli lhe terá pegado na mão e dito: «Esta noite, deixa­‑me que continue a ser Eugenio.» Mas o manto de Pontifex Maximus, envergado por 257 santos e vilões antes dele, já se tinha apossado de Pacelli. Desde o momento da sua eleição, escreveu mais tarde, sentiu «todo o peso das graves responsabilidades».

De volta aos seus aposentos, encontrou um bolo de aniversário com sessenta e três velas. Agradeceu à governanta, mas deixou­‑o intacto. Depois de rezar um terço, mandou chamar o seu companheiro de longa data, monsenhor Ludwig Kaas. Deixaram os aposentos papais e só regressaram às duas da manhã.

Enquanto Pacelli rezava na cripta do Vaticano, as luzes mantinham­‑se acesas até tarde na morada mais temida da Alemanha. No último andar trabalhava Heinrich Himmler. Num gabinete contíguo, o especialista de Himmler em questões do Vaticano afadigava­‑se diante de uma máquina de escrever, a preparar um dossiê sobre o papa recém­‑eleito.

Um dos primeiros biógrafos autorizados do papa descreve o que se seguiu. Pacelli e Kaas atravessaram as passagens traseiras do palácio e entraram por um nicho na parede sul da basílica de São Pedro. Detiveram­‑se diante de uma porta existente entre as estátuas de Santo André e de Santa Verónica. Dava para um túnel que conduzia a outra porta, pesada e de bronze, com três fechaduras. Kaas abriu­‑a com as chaves do seu breviário, fechou­‑a de novo atrás deles e desceu com Pacelli por umas escadas de metal, até à cripta do Vaticano.

O ar era quente e húmido, de uma humidade pesada, consequência da proximidade do Tibre. Uma passagem curva dava acesso ao jazigo, com as suas paredes repletas de falecidos papas e reis. Pacelli apanhou a bainha da sotaina e ajoelhou­‑se diante de uma pequena estrutura em forma de caixa que protegia um buraco aberto na terra. Aí se quedou a refletir e, pouco depois, tomou a sua primeira decisão enquanto papa. O seu subsecretário de Estado haveria mais tarde de considerá­‑la uma das «estrelas que iluminaram o seu árduo caminho (…), da qual retirou força e perseverança, e que, de certa forma, deu origem (…) ao programa do seu pontificado». Com esta decisão, Pacelli procurava resolver um dos mais perturbantes mistérios do Vaticano — e os fantasmas com que se deparou nessa demanda iriam tornar­‑se nos seus guias.

O enigma que Pacelli decidiu deslindar era tão antigo como a própria Igreja. Em dado momento do século I, São Pedro partiu para Roma, liderou uma igreja que abalou o Estado e morreu numa cruz no Vaticanum, um pântano conhecido pelas grandes cobras e o mau vinho. A Igreja nascente tinha­‑se refugiado no subsolo, literalmente nas catacumbas, e os sucessores do primeiro papa mantiveram prudentemente em segredo o local da sua sepultura. Contudo, há muito que os romanos segredavam que Pedro estava sepultado sob o altar­‑mor da basílica que ostentava o seu nome. Os rumores centravam­‑se num monte de alvenaria e outros materiais desconhecidos, com seis metros de largura e doze de profundidade. Ninguém fazia ideia do que existiria por baixo ou no interior desta misteriosa estrutura. Havia quem dissesse que encerrava ouro e prata, para ali deitados através de uma conduta pelos peregrinos medievais. Outros afirmavam que ocultava uma urna de bronze contendo as ossadas de Pedro. Nunca ninguém organizara uma expedição para pôr essas lendas à prova. De acordo com registos do próprio Vaticano, uma maldição de mil anos, pormenorizada em documentos secretos e apocalípticos, ameaçava com os piores infortúnios imagináveis quem perturbasse o alegado lugar da sepultura de Pedro.

Todavia, em 1935, Pacelli tinha quebrado o tabu. Pio XI pediu para ser sepultado sob o altar­‑mor, e arranjar espaço para o seu caixão implicava ampliar a cripta. Pacelli, que entre outras funções era presidente da Pontifícia Academia Romana de Arqueologia, decidiu aumentar a altura da cripta rebaixando o chão cerca de um metro. Mas, aos setenta e cinco centímetros de profundidade, os engenheiros ao serviço do papa puseram a descoberto algo completamente inesperado: a fachada de um mausoléu, decorada com frisos de crânios e pigmeus — uma alegoria pagã alusiva ao duelo entre a vida e a morte. A cripta do Vaticano assentava sobre uma necrópole perdida, uma cidade dos mortos, intocada desde os tempos imperiais.

Pacelli, convencido de que no interior deviam estar as ossadas de Pedro, pediu para aprofundar as escavações. Pio XI recusou. Os seus cardeais consideraram o projeto um sacrilégio; os seus arquitetos acharam­‑no perigoso. Se as escavações danificassem os pilares que sustentavam a maciça cúpula concebida por Miguel Ângelo, a maior igreja do mundo desmoronar­‑se­‑ia.

Pope Pius XII pictured working at his typewriter as he replies to peoples personal letters, January 31st 1955. (Photo by Fred Ramage/Keystone/Getty Images)

O papa Pio XII

Mas Pacelli, mais do que qualquer papa anterior, tinha fé na ciência. Enquanto católico que frequentara um liceu liberal, sujeito a provocações por causa da injustiça feita a Galileu, interiorizou uma reverência compensatória para com as aventuras da razão. «Ó perscrutadores dos céus!», proclamou com entusiasmo. «Gigantes que contais as estrelas e dais nome às nebulosas.» Elogiou não apenas a ciência pura mas também as suas utilizações. Os panegíricos que teceu a caminhos de ferro e a fábricas podiam ser excertos do Atlas Shrugged. Nenhum problema de engenharia seria bastante para o desencorajar, nenhuma maldição religiosa capaz de impedir a sua demanda. «Os heróis da investigação», afirmou Pacelli, não temeriam «as dificuldades e os riscos». Agora, na sua primeira noite como papa, ajoelhado diante da abertura opaca da escavação interrompida, Pacelli decidia levar a cabo uma exploração aprofundada.

A demanda prefigurava, em menor escala, o épico empreendimento secreto do seu pontificado. Seria ali, no local desse arrojado projeto, que, com a sua bênção, os seus coadjutores se reuniriam para urdir um outro ainda mais ousado. O segundo empreendimento, tal como o primeiro, evidenciava a assinatura da governação de Pacelli. Ambos os projetos deixavam perceber um fetiche pelo secretismo. Ambos dependiam de exilados alemães, operacionais leigos alemães e jesuítas alemães. Ambos implicavam ruturas entre palavras ditas às claras e atos dissimulados. Ambos colocavam a maior Igreja do mundo em perigo. E ambos iriam culminar em controvérsia, fazendo o pontificado de Pacelli parecer tão aziago que houve quem pensasse que este fora realmente atingido pela maldição dos profanadores do túmulo.

Enquanto Pacelli rezava na cripta do Vaticano, as luzes mantinham­‑se acesas até tarde na morada mais temida da Alemanha. A mansão de cinco andares do n.º 8 da Prinz­‑Albrecht­‑Strasse, em Berlim, fora outrora uma escola de arte, mas os nazis tinham transformado os ateliês de escultura em celas. Dois guardas armados de pistola e cassetete vigiavam a imponente escadaria principal. No último andar trabalhava Heinrich Himmler, Reichsführer da Schutzstaffel (SS), a unidade de terror de Hitler. Num gabinete contíguo, o especialista de Himmler em questões do Vaticano afadigava­‑se diante de uma máquina de escrever, a preparar um dossiê sobre o papa recém­‑eleito.

O Sturmführer Albert Hartl era um padre laicizado. Tinha cara redonda, óculos redondos e um tufo de cabelo que fazia lembrar um penacho índio. A mulher descreveu­‑o como «taciturno, austero, evasivo (…), muito temperamental». Tornara­‑se padre depois da morte do pai, um livre­‑pensador, para agradar a uma mãe devota. Os problemas surgiram quando os superiores o consideraram «inadequado para lidar com raparigas». Abandonou a Igreja em circunstâncias misteriosas, depois de denunciar o seu melhor amigo, também ele padre, aos nazis.

«Afirma que acordou no quartel­‑general da Gestapo em Munique numa manhã de janeiro de 1934», escreveu um interrogador do pós­‑guerra, «coberto de nódoas negras e cheio de dores. Um dos pés exibia uma enorme ferida e tinha a cabeça entumecida e a supurar. Os lábios estavam azuis e inchados e havia perdido dois dentes. Tinha sido espancando sem dó nem piedade mas não se lembrava de nada, diz.» De pé junto de Hartl estava um homem alto com o rosto oval de um «anjo caído». O chefe da espionagem da SS, Reinhard Heydrich, explicou que Hartl fora «agredido e envenenado por fanáticos da Igreja».

Heydrich convidou­‑o para se juntar aos serviços secretos nazis. Na qualidade de chefe da Unidade II/B, Hartl lideraria uma equipa de antigos padres que espiava católicos antinazis — «para os assediar e reprimir e, por fim, destruir». Como o próprio Hitler afirmara: «Não queremos nenhum outro Deus senão a Alemanha.» Hartl alistou­‑se de imediato. Como recordaria mais tarde um colega, serviu desde então «com todo o ódio de um renegado». «A luta contra o mundo que eu tão bem conhecia é agora o trabalho da minha vida», escreveu Hartl no seu CV atualizado.

O conflito tinha começado com um acordo. Quando os nazis tomaram o poder, em 1933, Pio XI elogiou o anticomunismo de Hitler e aceitou a proposta deste para formalizar os direitos dos católicos. Pacelli negociou uma concordata garantindo o financiamento da Igreja com 500 milhões de marcos de receitas fiscais anuais.

A eleição do novo papa deu­‑lhe uma oportunidade de brilhar. Esperava que as altas esferas, até mesmo Hitler, lessem o seu dossiê sobre Pio XII. Coligiu fontes públicas e secretas, socorreu­‑se da sua própria experiência para depurar os factos e utilizou o estilo conciso tão do agrado dos atarefados decisores políticos.

O conflito tinha começado com um acordo. Quando os nazis tomaram o poder, em 1933, Pio XI elogiou o anticomunismo de Hitler e aceitou a proposta deste para formalizar os direitos dos católicos. Pacelli negociou uma concordata garantindo o financiamento da Igreja com 500 milhões de marcos de receitas fiscais anuais. «Ao assinar esta concordata, o papa apontou o caminho para Hitler a milhões de católicos até agora distantes», escreveu Hartl. Mas, em meados da década, a concordata tornara­‑se um estorvo para Hitler. Pacelli bombardeou Berlim com cinquenta e cinco notas de protesto por violações do acordo. Tornou­‑se claro, conforme afirmou um oficial da SS, que «seria absurdo acusar Pacelli de ser pró­‑nazi».

As declarações públicas de Pacelli incomodavam Berlim. A encí­clica de 1937 Mit brennender Sorge (Com Viva Ansiedade) acusava o Estado alemão de planear a aniquilação da Igreja. Mas as palavras mais cortantes, observaram os analistas nazis, provinham dos protestos de Pacelli: «ódio», «maquinações», «lutas até à morte». Com essas palavras, entendia Hartl, Pacelli «intimava o mundo inteiro a lutar contra o Reich».

Pior que tudo, Pacelli pregava a igualdade racial. «A cristandade terá supostamente reunido todas as raças, negros e brancos, numa grande e única família de Deus», desdenhava Hartl. «Daí que a Igreja Católica também rejeite o antissemitismo.» Numa alocução em França, Pacelli condenara a «superstição da raça e do sangue». Como consequência, cartunistas nazis desenharam um Pacelli de nariz adunco a conviver alegremente com Jesse Owens e alguns rabinos, ao mesmo tempo que, afirmava Hartl, «era elogiado por toda a imprensa judaizada dos EUA».

Estas doutrinas eram perigosas porque não se ficavam apenas pela retórica. A polícia secreta encontrou católicos «ideologicamente ineducáveis» nas suas continuadas transações com comerciantes judeus. Conforme constatou a SS, «nas regiões onde o catolicismo político ainda detém influência, os camponeses estão tão infetados pelas doutrinas católicas que se mostram surdos a qualquer discussão do problema racial». Camponeses católicos chegaram mesmo a alterar uma tabuleta que dizia «Não queremos aqui judeus» para passar a dizer «Queremos aqui judeus».

Hartl atribuía a dureza desta atitude a uma causa obscura. Um amigo ordenado na mesma altura que ele, o padre Joachim Birkner, trabalhava então nos Arquivos Secretos do Vaticano, supostamente na investigação da diplomacia da Igreja no século xvi. Mas, na realidade, Birkner era um espião da SS, e o seu interesse centrava­‑se no assessor jesuíta de Pacelli, Robert Leiber, a quem alguns chamavam «o espírito maléfico do papa».

«O padre Leiber disse ao informador que a maior esperança da Igreja é que o sistema nacional­‑socialista seja destruído num futuro próximo por uma guerra», relatou a SS. «Se não houver guerra, a diplomacia do Vaticano conta com uma mudança da situação na Alemanha, o mais tardar depois da morte do Führer.» O relatório de Birkner coincidiu com um apelo de Pacelli a heróis católicos que «salvem o mundo» de «falsos profetas» pagãos, o que Hartl considerou um apelo para resistir a Hitler.

Pacelli dir­‑se­‑ia, por essa altura, no epicentro de uma guerra contra o Reich. Uma guerra que não iria terminar tão cedo. «Enquanto existir uma Igreja Católica», alertou Hartl, «as suas eternas pretensões políticas hão de pô­‑la em conflito com um Estado etnicamente consciente». A questão não era se o novo papa se oporia a Hitler, mas como o faria.

Hitler partilhava da mesma opinião. Como recordou o ministro da Propaganda Josef Goebbels: «4 de março (domingo). Meio­‑dia com o Führer. Está a ponderar se deve abolir a Concordata com Roma à luz da eleição de Pacelli como papa. É decerto o que acontecerá quando Pacelli intentar o primeiro ato hostil.»

No domingo, 5 de março, Pio XII pegou no telefone pousado em cima da sua secretária para informar o seu mais fiel ajudante de que estava à espera. O padre Robert Leiber entrou nos aposentos papais. Conhecido na Roma pontifícia como «o pequeno asmático», o jesuíta bávaro de cinquenta e um anos tinha a aparência de um duende melancólico. Embora falasse com Pio XII duas vezes por dia e lesse tudo o que passava pela secretária deste, ninguém sabia qual o seu título. Era descrito das mais diversas formas, desde «agente para as questões alemãs» a bibliotecário papal, professor de História da Igreja ou mesmo uma «espécie de secretário científico».

A verdade é que não possuía qualquer título. «O padre Leiber nunca foi funcionário do Vaticano», afirmou um colega jesuíta. «Era um colaborador próximo do papa, mas nunca foi oficialmente admitido como membro do Vaticano.» Tinha aí um gabinete, mas não constava da respetiva lista telefónica. Era um funcionário não oficial.

Obrigados a escolher entre Hitler e a Igreja, muitos católicos alemães escolheriam Hitler. «Os bispos», alertava Faulhaber, «devem prestar particular atenção aos esforços para criar uma igreja nacional.» A menos que o Vaticano promovesse uma conciliação, Hitler poderia nacionalizar a Igreja, à semelhança do que o rei Henrique VIII tinha feito em tempos em Inglaterra.

Essa falta de título tornava­‑o ideal para o trabalho secreto. Tal como explicou um padre que trabalhou nos serviços de informação americanos durante o nazismo: «É óbvio que as autoridades oficiais não podiam ser corresponsabilizadas se cometêssemos erros ou fracassássemos. Precisavam de estar em condições de declarar que não tinham conhecimento do que se dizia ou fazia.» Uma vez que Leiber não trabalhava para o Vaticano, este podia negar qualquer envolvimento nas suas atividades.

Para mais, Leiber sabia guardar silêncio, conforme fizeram notar outros jesuítas. Sobretudo em questões de política da Igreja, disse um que o conhecia bem, «o padre Leiber assume uma atitude de segredo absoluto». Nesse aspeto, dir­‑se­‑ia o arquétipo perfeito de assessor papal, tal como descrito no século xiv pelo Papa Sisto V: deve saber tudo, ler tudo e perceber tudo, mas não pode dizer nada.

Quando falava, Leiber era direto: «O seu verbo é aguçado como aço», afirmou um diplomata. Na década de 1920, quando Pacelli era núncio apostólico em Munique, Leiber chegara mesmo a censurar o futuro papa por ter em casa uma freira bávara, Pascalina Lehnert. Quando um cardeal veio inspecionar a nunciatura, Leiber descreveu a situação como imprópria; Lehnert, segundo relato da própria, gostava de ver Pacelli «em traje de montar, que lhe assentava muitíssimo bem». Ao saber que o cardeal tinha transmitido a queixa a Pacelli, Leiber ofereceu a sua demissão, mas Pacelli respondeu: «Não, não, não. Sois livre de pensar e dizer o que achardes. Não vou demitir­‑vos.»

Contudo, a mesma franqueza que atraía Pacelli afastava muitos outros. Um padre colega de Leiber descreveu os seus modos como cortantes, até agressivos, acrescentando: «Sabe, tornou­‑se um pouco estranho.» A asma levou­‑o a experimentar a «terapia com células vivas», injeções de tecidos finamente moídos de cordeiros acabados de abater. Havia quem o descrevesse com um dito em latim: Timeo non Petrum sed secretarium eius — «Não temo Pedro [o papa], mas o seu secretário assusta­‑me.»

Nesse domingo de manhã, Leiber levava um memorando urgente para Pio XII. Michael von Faulhaber, o cardeal de Munique, há muito que instava o Vaticano a opor­‑se publicamente ao nazismo, que violava princípios que deviam manter­‑se, como as estrelas perpétuas, acima de quaisquer compromissos. Mas agora, numa carta intitulada «Muito Respeitosas Sugestões», Faulhaber recomendava uma trégua.

Preocupava­‑o que Hitler afastasse a Igreja alemã de Roma. Muitos católicos alemães «acreditavam» no Führer — não enquanto católicos, mas enquanto alemães. «Há católicos que admiram Herr Hitler como a um herói, apesar do seu ódio à Igreja», observara o próprio Pacelli. Faulhaber via o perigo de um cisma no «país que nos deu a Reforma». Obrigados a escolher entre Hitler e a Igreja, muitos católicos alemães escolheriam Hitler. «Os bispos», alertava Faulhaber, «devem prestar particular atenção aos esforços para criar uma igreja nacional.» A menos que o Vaticano promovesse uma conciliação, Hitler poderia nacionalizar a Igreja, à semelhança do que o rei Henrique VIII tinha feito em tempos em Inglaterra.

Entretanto, os nazis tinham­‑se transformado eles próprios numa igreja. «A sua filosofia é uma religião de facto», afirmava Faulhaber. Possuíam os seus próprios ritos sacramentais para o batismo e a confirmação, o casamento e os funerais. Tinham feito da Quarta­‑Feira de Cinzas o Dia de Wotan e do Dia da Ascensão o Dia do Martelo de Thor. Coroavam a árvore de Natal não com uma estrela, mas com uma suástica. Chegavam mesmo a proferir «a blasfema afirmação de que, no fundo, Adolf Hitler é tão grande como Cristo».

Faulhaber pretendia discutir estes maus augúrios com o papa. Dado que tanto ele como os três outros cardeais do Reich tinham vindo a Roma para o conclave, Pio XII convidou­‑os para «aflorar algumas ideias» numa audiência a ter lugar no dia seguinte. A reunião, contudo, colocava um problema a Pio XII, que desconfiava de um dos cardeais que convidara para estarem presentes.

O primaz de Viena tinha provocado um escândalo no ano anterior. Quando Hitler anexara a Áustria, o cardeal Theodor Innitzer afirmara que a Igreja apoiava os nazis. Pacelli, então secretário de Estado do Vaticano, mandou chamar Innitzer a Roma e obrigou­‑o a assinar uma retratação. Agora, como papa, o mesmo Pacelli continuava inseguro relativamente a Innitzer. Bem­‑humorado e complacente, o austríaco afigurava­‑se vulnerável a pressões. Com a guerra cada vez mais próxima, todos quantos entravam na biblioteca papal gostavam de sair declarando que Deus estava do lado do seu país. Mesmo que Innitzer não distorcesse publicamente as palavras ditas em privado pelo papa, os propagandistas nazis poderiam fazê­‑lo por ele.

Pio XII decidiu pois fazer uma transcrição privada da audiência com os cardeais. Uma fonte verbatim permitir­‑lhe­‑ia refutar qualquer distorção das suas opiniões. Para tal, logo no início do pontificado, Pio XII mandara dotar a sua biblioteca de um sistema de espionagem áudio.

O sistema de audiovigilância do papa manter­‑se­‑ia um dos segredos mais bem guardados do Vaticano, só confirmado sete décadas mais tarde pelo último sobrevivente da rede clandestina da Igreja durante o período nazi, o padre jesuíta Peter Gumpel. Por essa altura, Gumpel havia já passado quarenta anos a dirigir o processo da canonização de Pacelli.”

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