“O meu filho disse que me pagava uma viagem a Roma, para não ter de estar aqui nesta loucura, mas eu não quis”
Têm fatos impermeáveis, chapéus de chuva, sacos-cama bem quentes, vários cobertores e almofadas. E comida: rissóis, pão, paté de atum, queijo, salsichas, batatas fritas, bolachas, iogurtes, maçãs e ananás enlatado. Também trouxeram bebida: água e chá de tília para a noite, num termo que, garantem, mantém as bebidas a escaldar durante 24 horas. E terços, para rezarem e ocuparem os tempos sem celebrações, orações ou procissões.
Amigas há nove anos, desde que se cruzaram na cozinha de uma escola pública do Montijo, Fátima Cardoso, 58, e Fernanda Lavado, 55, chegaram na manhã desta quinta-feira ao Santuário de Fátima. Foi o filho mais velho de Fernanda, de 23 anos, quem as trouxe desde a margem sul do Tejo – e que também já as avisou que não lhes dá boleia de volta, que no sábado o Benfica pode ser campeão e, se assim for, o seu destino será a rotunda do Marquês de Pombal, em Lisboa.
Não vêm agradecer nada de especial, só ver o Papa: “Ele é uma pessoa que cativa, tem a bondade no coração. Está sempre a pedir pelos jovens e pela paz, que este mundo está perdido. Foi Nossa Senhora que pôs aquele homem no mundo”, elogia Fernanda, com ar embevecido. Tencionam passar as próximas duas noites ao relento, debaixo de chuva, vento e frio, só para garantir que conseguem olhar para ele diretamente, sem intermediação de ecrãs gigantes nem binóculos.
Mal saíram do carro, esta quinta-feira, antes das 10h, carregadas com os sacos de roupa e comida, Fátima e Fernanda atravessaram o santuário, ainda meio deserto, e sentaram-se, encostadas às baias que delimitam a zona de cadeiras reservadas para os padres, mesmo em frente à Basílica de Nossa Senhora do Rosário e ao púlpito de onde o papa Francisco vai presidir às cerimónias do centenário das aparições. “Conseguimos ver a capelinha e estamos mesmo em frente ao Papa, é o melhor lugar”, garante Fernanda, sentada no chão.
De um lado e de outro, presos às grades com cadeados, há cada vez mais bancos e cadeiras, alguns cuidadosamente envolvidos em plástico, para estarem bem secos esta sexta-feira de manhã, deixados por peregrinos com as mesmas intenções. As duas amigas — uma cozinheira, outra ajudante de cozinha — acreditam que os assentos vão estar no mesmo sítio quando o papa Francisco entrar no santuário, só acham pouco provável que os donos consigam atravessar o recinto a tempo de se acomodarem neles. “Esta gente que vai dormir nas tendas não vai ter lugar, amanhã às 6h da manhã vai começar a chegar gente e mais gente, às 10h de certeza que já está isto tudo cheio”, sentencia Fátima.
Combinaram vir juntas a Fátima mal a viagem do papa Francisco foi confirmada, no final de 2016. E agora, que o tão aguardado momento está quase a chegar, não tencionam arredar pé senão para irem, à vez, à casa de banho mais próxima. De terços nas mãos, vão conversar, rezar e cantar. Será uma experiência única, de que nunca vão esquecer-se, garante Fernanda: “O meu filho mais novo disse que me pagava uma viagem a Roma, para eu ver lá o Papa e não ter de estar aqui nesta loucura, mas não quis”.
“Ser guia de um grupo de peregrinos é uma missão que Nossa Senhora me deu”
No centro do Santuário, Estela Silva não tem mãos a medir para tantos abraços. Está a cumprimentar cada um dos mais de 100 peregrinos do grupo de Castro Daire, que acabou de chegar a Fátima. É assim que a identificamos como a organizadora da peregrinação, quando perguntamos a uma das peregrinas quem estava à frente do grupo: “É aquela senhora ali que está a abraçar toda a gente”, dizem-nos.
Natural de Castro Daire, no distrito de Viseu, Estela organiza um dos maiores grupos de peregrinos do norte do país desde 1994, ano em que veio pela primeira vez a Fátima a pé. “A causa que me trouxe aqui foi o meu filho, que esteve muito doente e eu vi-o quase a morrer. Pedi a Nossa Senhora que ele ficasse bem e ela concedeu-me essa milagre”, diz ao Observador.
A promessa que fez era dura: ir e vir a pé a Fátima desde Castro Daire. “Mas como não tinha ninguém que fosse comigo para cima, resolvi vir dois anos em vez de ir e vir. Fiz o primeiro ano, fiz o segundo e depois achei que o sacrifício não era o mesmo e vim um terceiro”, recorda. “Entretanto, como eu vinha ano após ano, as pessoas começaram a pedir-me para vir comigo. Eu disse que sim, e foi assim que o grupo foi surgindo.”
No primeiro ano, juntaram-se-lhe 11 pessoas. Como não tinha apoio logístico para a peregrinação, Estela pediu para integrar um outro grupo organizado. “Na altura, como era muito difícil vir porque não havia apoios, disseram-me que não era possível, porque era difícil arranjar comida e dormida para mais 11 pessoas”, lembra. Acabou por ser o pai de Estela a garantir ajuda para o pequeno grupo.
A nega que levou, fez com que se comprometesse com outra promessa. “Naquele momento disse para mim mesma que sempre que me pedissem para vir a Fátima eu não diria que não a ninguém. E é isso que acontece hoje: enquanto as pessoas me pedirem para vir, eu aceito-as”, explica a mulher. O grupo que começou com 11 pessoas conta hoje com mais de cem peregrinos todos os anos.
Para Estela Silva, “ser guia de um grupo de peregrinos é uma missão que Nossa Senhora me deu”. “Faz parte da minha vida organizar este grupo”, sublinha. Por isso mesmo, às vezes vem a Fátima no 13 de outubro, como peregrina normal. Em maio a prioridade é sempre o grupo de Castro Daire.
Apesar de ser a organizadora, não dispensa a caminhada a pé. E faz questão de ser sempre a última, “para que ninguém fique para trás”. Parte da sua missão é apoiar os outros peregrinos nas dificuldades, o que, admite, muitas vezes não lhe deixa tempo para o seu próprio sofrimento. “Se alguém não conseguir andar tão bem, eu apoio-o até chegar de novo até ao pé do grupo.”
A logística é assegurada por um grupo de voluntários — massagistas e enfermeiros incluídos –, sete carros e um autocarro para transportar os peregrinos entre o ponto de paragem da etapa e o local de dormida para aquela noite. Nas carrinhas, vêm tachos, panelas, fogões, colchões insufláveis e todo o tipo de material necessário para cozinhar e dormir durante o caminho.
O grupo faz todos os anos o mesmo percurso e pernoita sempre nos mesmos locais — associações e gimnodesportivos em Tondela, Penacova, Condeixa e Vermoil. Por isso, após 23 anos de experiência, preparar uma peregrinação já é tarefa fácil para Estela. Dois meses antes, telefona para os locais de acolhimento para confirmar as dormidas. O trabalho a sério começa uma semana antes da partida, com a preparação de todo o material. “Aí é que temos mais trabalho, porque temos de lavar louças e carregar os carros, deixar tudo pronto para vir”, explica.
Ao contrário do que seria de esperar, a visita do papa Francisco ao santuário não fez aumentar o número de peregrinos no grupo de Estela. “Há algumas pessoas que já tinham planeado vir este ano mesmo sem saber que vinha o Papa. Algumas pessoas até vão agora para casa, só vieram fazer a peregrinação, não ficam para o 13 de maio.”
“Combinei com os câmaras e este é o sítio em que me filmam melhor”
A dois dias da chegada do papa Francisco a Fátima, uma bandeira venezuelana pendurada num comprido tubo de alumínio destaca-se no centro do recinto, ainda longe de estar cheio. É José Ornelas, um peregrino luso-venezuelano de 52 anos, que tem passado ali os últimos dias a guardar lugar para ver o Papa Francisco.
Contudo, ao contrário dos peregrinos que já vão amarrando bancos de campismo aos gradeamentos da frente para garantirem um lugar na primeira fila, José não pretende ficar tão perto do Papa. “Há aqui um sítio, que estava marcado com uma faixa no asfalto antes de arranjarem o piso, que é onde a câmara me foca corretamente, a mim e à minha bandeira”, revela José ao Observador.
É exatamente naquele local, ali entre a Capelinha das Aparições e a rotunda central do santuário, que José pretende passar os dias até às celebrações de dia 12. E é também ali que irá dormir na noite de 12 para 13 — apesar de estar hospedado no Hotel Aleluia, que reservou já em setembro do ano passado. “Tenho de ficar aqui durante a noite, senão não consigo regressar ao mesmo sítio na missa de dia 13”, explica, garantindo que “há muita gente na Venezuela à espera de ver esta bandeira”.
Nada disto é espontâneo ou loucura, assegura o peregrino, que há três anos vem ao Santuário de Fátima com aquela bandeira. “É um projeto. Tenho tudo calculado. No ano passado falei com um dos operadores de câmara que fazem aqui a transmissão a pedir-lhe para me filmar, porque a minha família queria ver a bandeira, e ele explicou-me que este era o melhor sítio para eu ficar e aparecer”, conta. Este ano, ainda não teve oportunidade de falar com os operadores de câmara, mas conta fazê-lo no dia 12. “Se forem os mesmos, se calhar vão lembrar-se. É a mesma bandeira”, diz.
A saga de José Ornelas e da bandeira gigante começou em 2014, quando o luso-venezuelano foi operado a um pé. “Quando estive no hospital, ouvi um médico dizer a outro: ‘Bom, colega, se não funciona há que amputar o pé’. Quando ouvi aquilo, entreguei-me a Fátima. Sempre me lembrei do que o meu pai me dizia: ‘Quando estejas em apuros, entrega-te a Fátima. Crê que ela te vai ajudar, te vai fazer um milagre’. Dito e feito. Fiz então uma promessa: todos os anos, neste dia, tinha de estar aqui com uma bandeira, porque não tenho palavras para agradecer. A bandeira é o exemplo, que fala por mim”, recorda José.
Além do agradecimento pela saúde, José vem também a Fátima “para pedir a paz na Venezuela”, onde se vive “uma tragédia”. Dono de uma papelaria no país da América do Sul, diz que a crise política que se agravou a partir das últimas eleições legislativas, em dezembro de 2015, lhe afetou o negócio: “De dia para dia vende-se muito menos, mas de dia para dia temos de pagar muito mais por um produto”.
Nascido na ilha da Madeira, foi ainda em criança para a Venezuela e hoje tem dupla nacionalidade. Mas é venezuelano que se sente, mesmo reconhecendo que no país “há muitos problemas a solucionar, políticos, económicos e sociais”.
É em Nossa Senhora de Fátima que José Ornelas confia para ajudar a acabar com a crise no seu país. Ele e muitos venezuelanos. “Na Venezuela, tal como em toda a América Latina, há uma grande relação com Fátima”, explica o peregrino. “Aliás, da região de onde sou, San Antonio de los Altos, está uma nova basílica de Nossa Senhora de Fátima, que está para ser inaugurada por estes dias”, detalha. Ainda assim, diz que não há nada como o verdadeiro Santuário de Fátima. “Ao chegar aqui, sinto um grande alívio no coração e na mente. É um lugar que respira tranquilidade e paz, que é o que mundo está a pedir. Já basta de conflitos.”
Enquanto não chega o dia 12, José vai continuar a ir dormir ao hotel. “Mas amanhã às 8h já cá estou outra vez”, garante. Na sexta-feira, vai chegar cedo ao recinto do santuário e de lá já só conta sair no “sábado às duas ou três da tarde”. Apesar de o novo asfalto colocado no local ter apagado as antigas marcas, José sabe bem as coordenadas onde tem de ficar para que as câmaras o filmem.
“Sinto-me uma guerreira. No fim, ao vento, à chuva e ao frio, foi mesmo muito difícil. Mas consegui!”
Chega ao final da reta da Loureira, a principal via de acesso a Fátima para quem vem do norte do país, nitidamente em esforço, a coxear, de pernas afastadas e quase sem fletir os joelhos. Despenteada e exausta, Iara, 15 anos apenas, nascida no ano de 2002, está de chinelos e meias turcas pretas, contará pouco depois das apresentações iniciais, tem uma contratura muscular no pé esquerdo e teve de descalçar os ténis já há algumas dezenas de quilómetros, porque as dores eram insuportáveis.
Nem por isso se apoia na mãe ou na tia, que a acompanham, uma de cada lado. Muito menos no pai, que várias vezes ao longo das últimas horas a tentou meter no carro de apoio onde seguem a avó e o tio, com as tendas, as roupas e os mantimentos da família.
Ele quebrou e fez parte do caminho sobre rodas. A filha não quis nem ouvir falar nisso. Até porque foi exatamente para o substituir nos momentos mais duros que fez questão de faltar à escola (anda no 10.º ano) para fazer a peregrinação desde Matosinhos, onde moram e tencionam regressar apenas no próximo domingo.
“Sinto-me uma guerreira. Antes de começar, pensei que fosse mais fácil. Depois, achei que não ia aguentar. No fim, ao vento, à chuva e ao frio, foi mesmo muito difícil. Mas consegui”, diz ao Observador a miúda, talvez uma das mais novas peregrinas a pé (se não a mais nova) este ano em Fátima.
Foi Rui, o pai, de 59 anos, quem fez a promessa da peregrinação de mais de 200 quilómetros e em três atos – no primeiro fim de semana de Abril fizeram o caminho entre Matosinhos e São João da Madeira, no último percorreram a distância de São João da Madeira a Coimbra, nos últimos dois dias partiram de lá em direção a Fátima.
Diagnosticado com um linfoma em março de 2015, decidiu ir a pé a Fátima, agradecer a Nossa Senhora e ver o papa Francisco, mal completou os tratamentos de quimioterapia. A mulher, Tânia, 38 anos, católica, compreendeu. Mas não se ofereceu para o acompanhar: “Sempre disse que nunca na vida viria a Fátima a pé. Não porque ache que não faz sentido – faz -, mas porque são muitos quilómetros, é doloroso, é um sacrifício medonho”, desabafa a cerca de 600 metros do Santuário.
Tentou demover a filha durante dias: que era muito nova, que não fazia sentido, que não ia permitir que passasse por uma provação tão dura. Acabou por render-se e fazer quase todo o caminho ao lado – ou atrás – de Iara, conhecida por fazer tudo para escapar às aulas de ginástica e por adorar relaxar no sofá. “Sou muito preguiçosa. O meu desporto é dormir. Os meus amigos não acreditavam que eu seria capaz. Vim pelo meu pai”, assume enquanto continua a caminhar.
Está a menos de cinco minutos do santuário, mas nem por isso tenciona descansar, que só metade da promessa é que está cumprida. A seguir ainda têm de montar as tendas onde vão dormir nas próximas três noites. “Quando chegar lá abaixo vou agradecer a Nossa Senhora pelo meu pai. Depois, vou comprar um terço, rezar e esperar pelo Papa.”