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A polémica história do sexo e da Igreja. Como tudo começou e como chegámos aqui

Com o regresso à discussão sobre a abstinência sexual dos recasados no catolicismo, Carlos Maria Bobone escreve sobre o sexo e a Igreja: o que o primeiro reclama e o que a segunda obriga.

Qualquer discussão sobre a Igreja tem sempre dois problemas de fundo. O primeiro é, ao mesmo tempo, o mais cómico e o mais absurdo. As ambições de um lado e de outro da querela estão nitidamente trocadas. De um lado, uma multidão de não crentes, de apóstolos da livre decisão de cada um a respeito da moral, arenga mais sentenças a respeito do comportamento eclesial do que o Levítico; do outro, a Igreja, que se quer Universal, enxofrada por ver as suas instruções particulares escrutinadas em praça pública — — como, mais uma vez, se percebeu na polémica desta semana sobre a posição do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, em relação à “continência” sexual dos recasados.

Os que se querem preocupar apenas com os seus problemas, peroram sobre os dos outros; os que se preocupam com os males do mundo, querem passar de mansinho, a administrar os seus remédios sem ouvir os protestos dos doentes.

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Torna-se, assim, cómica uma discussão que, embora legítima – a pretensão Universal da Igreja pede que os seus problemas interessem a todos os Homens – acaba por se legitimar pelos que a condenam. Isso leva, habitualmente, a discussão para um nível absurdo. Uma série de profetas e biblistas de curso intensivo exigem a “modernização” da Igreja, que se “adapte” aos tempos modernos e abandone as posições “retrógradas”. O fundamento, claro está, nunca trata de purificar a Igreja, ou de a pôr mais de acordo com os ensinamentos de Cristo. Trata-se de uma opinião de conflito, de alguém que julga os valores modernos superiores aos antigos e que por isso qualquer pessoa ou instituição de bem os deve adoptar. Para a maioria destes apóstolos, a posição da Igreja é apenas sintoma de um reaccionarismo incompreensível. A Igreja devia apanhar o passo do mundo, como se fosse o mundo o fundamento dos seus valores.

Ora, o ponto fundamental da discussão está num segundo problema que é habitualmente descurado. As discussões sobre a Igreja tendem, incompreensivelmente, a esquecer Cristo. Isto é, numa discussão com um comunista, não passa pela cabeça de ninguém exigir que o partido abandone a ideia de luta de classes. Isto porque se compreende o fundamental: pedir que o partido abandone a luta de classes é pedir que abandone o comunismo. A discussão passa, assim, por isso mesmo: discutem-se os males ou as virtudes do comunismo, mas não a sua essência.

A Igreja não tem legitimidade para mudar as suas posições porque acredita que não pertence a si própria. A discussão tem assim de partir, antes de mais, daquilo que a modela, não daquilo que ela quer modelar.

Ora, o que acontece com a Igreja é precisamente o contrário. Os contendores nunca exigem que a Igreja abandone o cristianismo; no entanto, tratam-no como se a Igreja pudesse escolhê-lo. É assim em todos os assuntos: a Igreja deve repensar a sua posição sobre o casamento, sobre o aborto, sobre a eutanásia, como se fosse livre de criar a cada momento a sua doutrina. O ponto mais importante para qualquer discussão sobre a Igreja está, assim, em perceber os seus fundamentos: a Igreja acredita na moral de Cristo, e acredita que essa moral foi revelada pela Bíblia e pela tradição da própria Igreja. É possível, assim, discutir a posição da Igreja sobre o sexo, em qualquer das suas vertentes. É espúrio, no entanto, entrar na discussão com ideias de contemporaneidade. A Igreja não tem legitimidade para mudar as suas posições porque acredita que não pertence a si própria. A discussão tem assim de partir, antes de mais, daquilo que a modela, não daquilo que ela quer modelar. A Igreja tem, na Bíblia e na sua tradição, fundamentos para as suas normativas sobre o sexo? Só essa pode ser uma discussão sobre a Igreja que interesse de facto à Igreja.

Acontece que, em matéria sexual, a tradição se estende muito para lá da Igreja. Claro que há na Bíblia os exemplos da morte espetacular de Onan, fulminado por derramar o seu sémen no chão, ou da sempre citada Sodoma, que dá nome ao pecado em que caiu. Há, também, a frase de Cristo, que é provavelmente a única que aperta taxativamente a lei dos judeus: “não separe o Homem o que Deus uniu”, a ordem que funda a indissolubilidade do casamento, vinda daquele que, em tudo o mais, era tido por um relaxado.

A destruição das cidades de Sodoma e Gomorra, entre fogo e enxofre, numa pintura de John Martin

Os diferentes episódios podiam pedir diferentes discussões. Contudo, a discussão sobre o onanismo, a sodomia, ou o sexo no casamento têm subjacente a mesma ideia. E esta ideia, como dizíamos, estende-se muito para lá da Igreja. Curiosamente, a posição sexual da Igreja deve tanto à Bíblia quanto à filosofia Antiga. É muito antes de Cristo que se começam a ouvir os protestos sérios contra aquilo que será a base da posição da Igreja sobre o sexo: a desordem das paixões. Tanto estóicos como epicuristas, tanto académicos como pitagóricos, percebem as paixões como o estado em que o Homem não se controla a si próprio. Aquele que se deixa dominar pela gula, pela preguiça, ou pela atracção física é aquele que não tem domínio sobre si próprio, que não é livre. A virtude da continência começa, assim, a ser louvada como um dos grandes sinais de força e de Humanidade.

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É próprio dos animais seguirem os seus instintos, é próprio dos fracos sucumbir às suas paixões – tanto que, na literatura grega, o conquistador é sempre uma figura efeminada, fraca, incapaz de se dominar –, e as virtudes da continência, em qualquer aspecto, são incontáveis. Pode mudar o fundamento, mas não muda o método. O epicurista procura o prazer temperado e por isso repudia o excesso, o estóico enseja livrar-se das paixões e por isso também busca a temperança. A vida do Homem continente é a vida daquele que se consegue encontrar por baixo das condicionantes corporais, da multidão de paixões descontroladas que põem o Homem contra si próprio e dominam a sua vontade.

Ora, este tipo de filosofia foi largamente aproveitado pela Igreja. É também este o modo de pensar que se encontra no De Continentia, de Santo Agostinho, ou, sem menções sexuais, no tipo de vida idealizado pelos Padres do Deserto. A sexualidade é vivida de acordo com uma ideia maior de renúncia a todo o tipo de paixões, que escondem o verdadeiro Homem. Cristo, aquele que escolheu a dor da Cruz, que jejuou quarenta dias no deserto, seria o maior modelo deste tipo de vida.

O livro “De Continentia”

A continência, porém, não é a única ideia que a Igreja tem sobre o sexo. Há, na senda do pensamento grego e romano sobre o ordenamento das paixões, uma vontade de ordenar o mundo em relação a Cristo. O sexo, a grande potência criadora do Homem, deve também estar ordenado. Não apenas contido, mas em ordem a qualquer coisa. Desde o princípio, o cristianismo foi tomado como uma opção de vida que pode ser aplicada a todos os momentos da vida. Não se trata apenas de praticar boas acções; as acções vulgares também se podem transformar em acções cristãs. Isto porque, já desde S. Paulo, Cristo não é visto apenas como o melhor dos Homens; é visto como o próprio fundamento da Bondade.

A transformação da humilhante cruz num momento de glória demonstra bem, para os padres da Igreja, o seu poder transformador. O maior milagre de Cristo está precisamente na capacidade de transformar em Bem aquilo que não o era. Os exemplos bíblicos são muitos. Que faz, de facto, o bom ladrão? Não há acção nenhuma que o redima, apenas o poder de Cristo. Ora, isto leva os primeiros cristãos a acreditarem que cada acção pode ser vivida em ordem a Cristo. Não apenas o voluntarismo cívico dos nossos dias, mas mesmo o mais banal, como comer ou dormir. Tudo pode ser transformado em Bem pelo poder de Cristo. Também o sexo pode, assim, ser vivido como uma coisa sagrada, inserida no ideal de vida Cristão.

O que indigna, na maior parte das vezes, os não-crentes, é a discrepância entre o ideal de vida apregoado pela Igreja e a rigidez da sua doutrina. Teoricamente, o tal “ideal de vida cristão” tem o amor como premissa base. No entanto, parece haver uma indiferença fria por parte da Igreja em relação a esse mesmo amor nas mais variadas formas. O caso dos recasados, como um simples caso de dois namorados em paixão camiliana, visto com reservas pela Igreja, choca com a compreensão habitual que temos do amor.

A ideia dos impulsos sexuais reprimidos, que representariam um fundo verdadeiro e mais natural do Homem, parece o avesso da teoria antropológica greco-cristã. O sexo, transformado no momento decisivo da identidade humana, não tolera intromissões nem restrições e passa a ser visto como a forma mais íntima e profunda de liberdade.

Ora, isto acontece porque a compreensão que a Igreja tem do amor é completamente diferente daquela que nos é dada pelos sentidos. A diferença entre Eros, o amor romântico, e Agape, o amor como é referido nas cartas de S. Paulo, já foi sobejamente dissecada pelos filólogos. O essencial da discussão está, porém, na ideia eclesial do amor como mandamento. Isto é, para a Igreja, destinada a cumprir uma ordem muito clara – “ Amai-vos uns aos outros” – o amor é um mandamento. Ora, só se dá uma ordem em relação a algo que possa ou não ser obedecido. O amor é percebido como uma escolha, não como algo que acontece.

Há, no amor cristão, um sentido ético. Pode-se amar independentemente das paixões, e até mesmo ao arrepio delas. O amor, tomado em conjunto com a ideia de ser Cristo o fundamento do Bem, é que permite perceber a indissolubilidade do casamento, ou a aparente indiferença em relação a todo o tipo de paixões. A Igreja sabe que elas existem, mas não é em relação a elas que o sexo deve estar ordenado. O amor humano é acima de tudo ético e sagrado, o sacramento está acima das paixões e representa o verdadeiro espírito do amor cristão: um amor acima de tudo ético e livre, livre a ponto de dispensar as paixões.

A verdadeira mudança neste estado de espírito foi bastante tardia. Claro que já há uns pós sentimentais no romantismo que comoveram a sociedade; no entanto, a burguesia oitocentista, ajudada também por um certo pragmatismo económico, ainda percebe, embora de maneiras ínvias, o amor como escolha e até como abnegação. A revolução freudiana, porém, deu um fortíssimo golpe na compreensão social dos pontos de vista da Igreja. A ideia dos impulsos sexuais reprimidos, que representariam um fundo verdadeiro e mais natural do Homem, parece o avesso da teoria antropológica greco-cristã. O sexo, transformado no momento decisivo da identidade humana, não tolera intromissões nem restrições e passa a ser visto como a forma mais íntima e profunda de liberdade.

A sacralização do sexo torna-o, assim, o principal elemento de conflito entre duas visões opostas do mundo. A sexualidade torna-se de tal forma a obsessão moderna que, mesmo a Igreja, acantonada numa visão odiada pelo mundo contemporâneo, tem dificuldade em lidar com os estilhaços deste mundo. O romance de David Lodge Até onde é que se pode ir?, sobre um grupo de católicos interessados em saber, como o próprio título indica, até onde é que se pode ir no sexo antes do casamento – e que claramente não leram Santo Afonso Maria Ligório, ou teriam respostas pormenorizadas à pergunta – demonstra até que ponto o sexo se tornou matéria capital dentro da própria Igreja.

“Até onde se pode ir”, de David Lodge (Asa)

Para lá dos pontos específicos de doutrina e casuística, a posição da Igreja sobre o sexo assenta nestes pressupostos. O amor é ético e activo antes de passional, e é definido por Cristo, não pelos nossos sentimentos. A continência não é um castigo, mas sim uma virtude que permite ao Homem vencer aquilo que não controla. Que depois o barulho entorpeça a doutrina, que se confunda a História com a Filosofia, ou que o medo do mundo leve a umas tibiezas e a uns floreios dialéticos, ou que a misericórdia e a compaixão protejam as cabeças dos bicos mais agressivos, já é outra conversa.

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