A absolvição de João Rendeiro no caso da Privado Financeira revela a dificuldade de prova que costuma existir em casos de criminalidade económica complexa quando a mesma envolve os responsáveis máximos das instituições financeiras. E antecipa de certo modo os obstáculos que se colocarão nos processos do caso GES/BES – com a agravante dos casos relativos ao “Universo Espírito Santo”, de acordo com a classificação dada ao caso pela Procuradoria-Geral da República, suplantarem largamente em número e complexidade as investigações do caso BPP.
Tomando apenas como exemplo o caso do papel comercial das empresas do GES que foram vendidos aos balcões do BES no último ano antes da derrocada do grupo financeiro da família Espírito Santo, conseguimos fazer um paralelismo com o caso da Privado Financeira e perceber as dificuldades que existirão para eventuais condenações.
Em ambos casos o Ministério Público (MP) entende que existem suspeitas do crime de burla qualificada por parte das respetivas administrações. Isto é, o titular da ação penal entende que foi montado um ardil para enganar os investidores.
Em ambos casos o Ministério Público (MP) entende que existem suspeitas do crime de burla qualificada por parte das respetivas administrações
No caso da Privado Financeira, o MP acusou a administração de João Rendeiro de ter criado uma operação de aumento de capital social do veículo Privado Financeira para pagar dívidas da mesma sociedade – em vez de comprar exclusivamente ações do BCP, como foi assegurado aos investidores.
Já no caso do papel comercial das empresas do GES, existem diferentes indícios:
- Os investidores terão sido convencidos a investir nesses produtos quando sociedades como a RioForte ou Espirito Santo International já não eram solventes – ou seja, já não tinham capacidade para devolver o capital e a respetiva remuneração contratualizada;
- Clientes que pensavam que estavam a investir em papel comercial do próprio BES e não em empresas do GES;
- Desvio do capital angariado com a venda do papel comercial para outros fins que não aqueles que foram contratualizados com os clientes.
A primeira dificuldade está relacionada com o próprio crime de burla qualificada. Este crime exige prova do dolo. Isto é, tem de ser provado que os administradores tiveram conhecimento das irregularidades e que tiveram a intenção de enganar e prejudicar os clientes/investidores.
Tem de ser provado que os administradores tiveram conhecimento das irregularidades e que tiveram a intenção de enganar e prejudicar os clientes/investidores
Basta recordar a defesa que Joaquim Goes, ex-administrador executivo do BES, entregou no Banco de Portugal no âmbito de um processo de contra-ordenação do caso BES para percebermos como será difícil a prova. “Quando, ao mais alto nível, a intenção de ocultar informação e se, para mais, houver articulação entre mais do que um elemento da administração (in casu CEO e CFO), é muito difícil que os restantes membros da comissão executiva se possam aperceber do sucedido ou que qualquer sistema de controlo interno o detete”, afirma Joaquim Goes na sua defesa revelada pela revista Visão e que está relacionada com os riscos da emissão de papel comercial da Espírito Santo International. O CEO e o CFO referidos por Goes são, respetivamente, Ricardo Salgado e Amílcar Morais Pires.
No caso da Privado Financeira, por exemplo, o tribunal entendeu que os arguidos João Rendeiro, Paulo Guichard e Fezas Vital não tinham cometido dolo porque a perda do capital investido na Privado Financeira deveu-se essencialmente à crise financeira mundial iniciada com a falência do Lehman Brothers (e que os arguidos não conseguiram prever) – e não à ação da administração do BPP. Independentemente do aumento do capital social da Privado Financeira ter ocorrido antes da derrocada daquele banco de investimento norte-americano.
Em todos os processos do caso GES/BES certamente que os arguidos jogarão mão do papel que a crise financeira mundial iniciada em 2008 teve na brutal desvalorização dos ativos mobiliários e imobiliários. Basta recordar as entrevistas que Ricardo Salgado deu desde 2013 ou as conversas do Conselho Superior do GES reveladas pelo jornal i, Sábado e TVI para percebermos que esse será um argumento forte da defesa dos arguidos do Universo Espírito Santo.
Juízes não especializados
O segundo grande obstáculo prende-se com a ausência de especialização dos tribunais comuns. Ao contrário do Tribunal Central de Instrução Criminal (que trata dos processos do Departamento Central de Investigação e Ação Penal e de alguns mais complexos do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa), do Tribunal de Supervisão (que analisa, por exemplo, dos recursos que os arguidos entendam interpor das condenações de processos contra-ordenacionais do Banco de Portugal ou da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários) ou do Tribunal do Comércio (onde o caso BPP foi concluído em 2014 com uma condenação por insolvência dolosa), os tribunais comuns não apostam na especialização dos juízes.
Ao contrário do Tribunal Central de Instrução Criminal, os tribunais comuns não apostam na especialização dos juízes.
Isto é, os coletivos que julgaram casos como o BPN, BCP ou BPP analisaram antes ou depois processos de delitos comuns como homicídios, assaltos ou burlas simples.
No caso específico da burla, é muito diferente julgar um caso de um burlão comum em vez de um caso que envolve uma administração de uma sociedade cotada em bolsa e engenharias financeiras complexas assentes em sociedades internacionais ou sedeadas em paraísos fiscais e conhecimentos muito técnicos sobre instrumentos financeiros altamente complexos.
A ausência de especialização faz com que o know-how sobre matérias financeiras complexas seja limitado, quando a “experiência comum”(sobre os temas em causa no processo) é um conceito jurídico fundamental para apreciação da prova durante um julgamento.
Os tribunais portugueses, ao contrário de outros sistemas judiciais europeus, também não têm capacidade orgânica (e financeira) para acolher assessores especializados no tema em julgamento que possam ajudar os juízes.
Os tribunais portugueses, ao contrário de outros sistemas judiciais europeus, também não têm capacidade orgânica (e financeira) para acolher assessores especializados
Já o Ministério Público, por seu lado, tem feito uma aposta forte desde o final dos anos 90 na especialização dos seus magistrados Começou com a criação do Departamento Central de Investigação e Ação Penal para, entre outros objectivos, combater a criminalidade económico-financeira mais complexa e trans-distrital. E desenvolveu-se com a 9.ª Secção do DIAP de Lisboa que tem o mesmo objetivo que o DCIAP mas circunscrito ao distrito da capital do país onde estão as sedes das instituições públicas e das principais empresas nacionais.
Maior dificuldade de prova
A maior dificuldade de prova nasce precisamente dessa ausência de especialização dos tribunais e está relacionada com a análise de prova documental que este tipo de processos acarreta. No caso da Privado Financeira, por exemplo, existia abundante e diversa prova documental (como actas, emails, pareceres, relatórios, etc.) e testemunhal que, no entender do MP, fundamentava a acusação. Verificou-se, contudo, que a documentação foi desvalorizada, assim como os testemunhos das vítimas, de acionistas ou de funcionários do BPP ou de técnicos da CMVM não foram tidos em conta pelo tribunal – ao contrário dos testemunhos da defesa. E a prova testemunhal, de acordo com processo penal português, acaba por ser aquela que é encarada como a prova rainha durante o julgamento.
O problema é o processo penal português também não favorecer a confissão dos crimes por parte dos arguidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, é possível um mecanismo de negociação que permite uma diminuição da pena em troca da confissão. Foi assim que Bernardo Maddof, entre muitos outros casos, foi condenado em 2009 a 120 anos de cadeia por onze crimes, entre os quais, fraude, lavagem de dinheiro e perjúrio por ser o autor de uma fraude que envolveu uma soma total de 65 mil milhões de euros.