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© Miguel Soares

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Agora, pode começar de novo

Passou fome, dormiu na rua e a vida atirou-lhe muitos pontos de interrogação para os pés, mas agora pode começar de novo. A família de João Andrade é uma das 19 que foi realojada pela CM de Oeiras.

Os olhos de João Andrade não estavam na mesma página do sorriso nos lábios. A caminhada era desajeitada, tímida, como quem não sabia muito bem o que fazer. Estava a poucos segundos de entrar na sua nova casa. “Parece um sonho. Nem acredito.” Na rua estavam garotos a jogar à bola e a brincar à luta livre (ou então aquilo eram abraços muito calorosos), enquanto outros se aventuravam a descer a alta velocidade uma pequena colina num carro de plástico. Igualmente inseguro mas com o olhar de ferro estava o filho, também João. Nunca teve um quarto só para ele. “Tinha uma cama na sala”, contou a mãe, Catarina Andrade.

A infância de João Andrade foi complicada. Talvez por isso os olhos não saibam alegrar-se como se vê a sul do equador da sua face. “Éramos nove irmãos e muitas vezes dormíamos na rua. O meu pai chegava com uma borracheira [embriagado]… e batia na minha mãe e metia os filhos na rua porque íamos atrás dela para a proteger.” Não passou do quarto ano de escolaridade e começou cedo a trabalhar. “Ó! Com 14, 15 anos já era bate-chapas. Depois passei para a pintura e estive 25 anos em artes gráficas”, contou, num tom sereno, relaxado, no novo quarto do filho. Sim, aquele era já o quarto do João de 12 anos, mas já lá vamos.

"Éramos nove irmãos e muitas vezes dormíamos na rua. O meu pai chegava com uma borracheira... e batia na minha mãe e metia os filhos na rua porque íamos atrás dela para a proteger"
João Andrade, 47 anos

Catarina Andrade, a mãe, nem ousa comparar a sua infância com a do marido, mas admite dificuldades. O olhar brilhava ao percorrer todos os cantos e recantos da casa, mas as lágrimas que ameaçavam cair agarraram-se ao precipício que eram os seus olhos. Aos 39 anos, com o sétimo ano de escolaridade, está desempregada há três e adivinha dificuldades para mudar o rumo das coisas, pois contra ela joga uma deficiência no braço esquerdo. “Estávamos em Carnaxide, pagávamos uma renda de 350 euros, numa casa com muitos problemas de humidade. Muitas vezes deixávamos arrastar a renda, a luz…” Quem vai segurando as pontas daquela família é o marido, que recebe 600 euros pelo trabalho de talhante no Pingo Doce, onde está há três anos.

E não só. O pai de Catarina dá uma ajuda sempre que possível. Com 65 anos e uma reforma de 525 euros, Fernando Gaspar acompanhava a família nesta primeira visita à nova vida. Discreto, calmo, andava devagarinho, como um fantasma que só queria respirar aquele momento e guardá-lo para ele. Era só um pai e avô que queria gravar a felicidade dos seus, logo ele que trabalhou em fotografia durante “40 e tal anos”. As lágrimas começaram então a cair. Não se segurou e levou uma mão à cara, pedindo desculpa por isso. No mesmo quarto, o tal do neto, estava apenas o genro, que não hesitou em confortá-lo com um abraço que durou alguns segundos. E esta coisa de o neto ter um quarto só para ele? “Era o grande sonho dele”, disse o avô enquanto limpava o choro da face molhada. Esse e o de ser engenheiro mecânico, porque a paixão dele não é o futebol como costuma ser com os miúdos da sua idade, mas sim a potência e a fúria das motas e dos carros. “Vai ser uma vida feliz. Estou feliz”, soltaria o pequeno João, calado por natureza.

Catarina juntou-se pouco depois. Era de longe a que estava mais tranquila e transparente quanto àquele acontecimento. As gargalhadas denunciavam-na. E até deu um “jeitinho” no cabelo. O marido não resistiu em demonstrar aprovação, mas deixou claro: “Eu gosto sempre!” Foi amor à primeira vista, dizem, aquele que os juntou há mais de 20 anos, algures em Linda-a-Velha. Mas a vida é como um curto cobertor, que tapa e destapa em diferentes frentes, com uma miopia assinalável no que toca a compensações. “Perdi a minha mãe há um ano”, disse com um tom que pesava 500 quilos. Apesar da felicidade pela nova casa, “o natal não vai ser igual…”

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“MALANDRO DO PRESIDENTE, SÓ DÁ CASAS A QUEM QUER”

Esta família faz parte do programa de realojamento promovido pela Câmara Municipal de Oeiras. Durante 2014 foram 103 os agregados familiares que receberam um novo lar, vagas essas que resultam de despejos, incumprimentos, abandonos ou morte. Nesta leva de dezembro foram realojadas 19 famílias, entre elas 12 monoparentais, como o caso de Maria Helena Lobo, mas já lá vamos. Estas famílias são entrevistadas e depois enfiadas em categorias, de acordo com as condições em que vivem. Se preencherem os requisitos para a candidatura são considerados “ativos”, termo esse que se divide em três níveis — prioritário, urgente e grave — para criar uma espécie de lista de espera coerente.

E o que é necessário para estar apto? O candidato tem de residir no concelho ou trabalhar há três anos, ter rendimentos, ser cidadão português ou ter título de residência temporário ou permanente. Todas as famílias são entrevistadas por assistentes sociais. Atualmente existe um universo de 6500 candidaturas, no entanto existem apenas 2800 “ativos”, explicaram ao Observador Ana Alexandre Reis e Carla Carvalhal, do Departamento de Habitação e Reabilitação Urbana da CM de Oeiras.

O candidato ao programa de realojamento da CM de Oeiras tem de residir no concelho ou trabalhar há três anos, ter rendimentos, ser cidadão português ou ter título de residência temporário ou permanente. Todas as famílias são entrevistas por assistentes sociais. Atualmente existe um universo de 6500 candidaturas, no entanto existem apenas 2800 “ativos”

“Uma chave e quatro papéis parecem uma coisa simples, mas é um ato carregado de simbolismo. É um novo ciclo, com esperança. É o dar a volta”, começou por dizer Paulo Vistas, o presidente da CM de Oeiras, no Salão Nobre do Palácio do Marquês de Pombal, na cerimónia de entrega das chaves. O ambiente não parecia digno de quem estava prestes a viver uma revolução na sua vida. Havia desconforto, às vezes cheirava a indiferença, mas apenas à flor da pele, provavelmente. O autarca referiu ainda que há um lado negro nesta história, pois haverá sempre quem questione o processo. “Malandro do presidente, só dá casas a quem quer”, ironizou, incorporando a vez de alguém insatisfeito. Apelou à paciência. “Vocês têm uma responsabilidade: pagar a renda a tempo e horas. Não posso aceitar que um morador não pague a renda porque a renda foi calculada em função do vosso rendimento.” A renda média das famílias agora alojadas é de 37,63 euros, sendo o máximo 169,25€ e o mínimo 5,05€.

A radiografia das 19 famílias é uma prova das dificuldades em que muita gente vive: 12 recebem mais do que 601 euros de rendimento, mas há seis casos em que os candidatos sobrevivem com um salário entre 301 e 600. Uma das famílias tem um rendimento que estaciona entre os 150 e 300 euros. Quanto ao tempo que esperaram por esta oportunidade, após a candidatura, a categoria mais gorda é a que conta uma espera entre três e seis anos; três das famílias aguardaram mais de seis anos para um novo começo. João, Catarina e João esperaram menos de um ano. É caso único.

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O VENTO MUDOU, MAS NÃO COM A FORÇA QUE ESPERAVA…

No mesmo bairro, na Encosta da Portela, perto da SIC, também Maria Helena Lobo e os dois filhos receberam a chave da nova casa. Este é um dos 12 casos de famílias monoparentais realojadas. Maria Helena chegou com a mãe, que deixou de queixo caído quem a ouviu dizer que tem 75 anos, tal o ar jovial e despachado, o filho Diogo e a neta Carlota, de três anos — “é a luz dos meus olhos”. Durante um ano viveu na casa da mãe, com quem dormia, enquanto os filhos dormiam na sala e o irmão, de 43 anos, ficava na varanda. O vento mudou agora, mas não com a força que esperava…

“A vida de casada foi conturbada. Maria Helena foi vítima de violência doméstica e um dia disse basta. “Fiz queixa e o tribunal decidiu que ele teria de me pagar 11 mil euros, mas perdoei. Não dava nada aos filhos, ia lá pagar-me a mim aquele dinheiro…” Está divorciada há sete anos”

“É um bocado pequeno, não é? As divisões são pequenas. Como tenho um filho de nove anos e outro de 21 esperava três quartos”, desabafou, enquanto traçava já o próximo plano: “será que se pagar mais posso propor uma casa maior?” A resposta é sim, mas terá de estar na tal lista e esperar. Outra vez. Apesar de tudo, entre as dúvidas e cálculos motivados pelo beliche dos filhos, esta jovem avó admitiu: “[esta casa] é a melhor coisa que me podia acontecer.” Maria Helena, de 45 anos, é assistente de laboratório e recebe 580 euros, a que se junta o apoio por parte da Junta de Freguesia de Paço de Arcos. A renda rondará os 23 euros.

A vida de casada foi conturbada. Maria Helena foi vítima de violência doméstica e um dia disse basta. “Fiz queixa e o tribunal decidiu que ele teria de me pagar 11 mil euros, mas perdoei. Não dava nada aos filhos, ia lá pagar-me a mim aquele dinheiro…” Está divorciada há sete anos. A vida dos filhos está encaminhada: Fernando é formado em desenho gráfico, enquanto Diogo, no quarto ano, ainda tem as suas dúvidas. “Ele gosta de assustar a mim!”, acusou a pequena Carlota, que estava sempre atenta e em pose para a fotografia. Um vizinho daria depois à costa, com um pequeno cão. “Somos pessoas queridas”, avisou Maria Helena, em alto e bom som. O senhor Fernando disse que não duvidava e deu-lhes as boas vindas à nova casa. Ou à nova vida.

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