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Alerta Vermelho: Corrupção, crime e violência na Rússia do século XXI

O caso relatado no livro Alerta Vermelho é um paradigma do que se passa na Rússia moderna: um estado poderoso mas apodrecido por dentro, permeável a esquemas de corrupção que enriquecem criminosos.

Alerta Vermelho, acabado de publicar pela 2020, conta na primeira pessoa a história de Bill Browder. Fundador do maior fundo de investimento da Rússia, foi perseguido pelos poderes judiciais e criminais russos até ser condenado a uma pena de prisão que não cumpriu. Durante o processo, os seus advogados foram perseguidos e um deles acabou por morrer na prisão, num dos casos mais reveladores do peso dos poderes paralelos na Rússia. Este é o primeiro capítulo da obra de Browder.

13 de novembro de 2005

Sou um homem de números, por isso vou começar com alguns importantes: 260; 1; e 4500000000.

Eis o significado deles: fim de semana sim, fim de semana não, eu viajava de Moscovo, a cidade onde trabalhava, para Londres, a cidade que era a minha casa. Ao longo dos dez anos anteriores fizera essa viagem 260 vezes. Havia 1 propósito para aquelas viagens: visitar o meu filho, David, então com oito anos, que vivia com a minha ex-mulher em Hampstead. Quando nos divorciámos, comprometi-me a vê-lo em fins de semana alternados, acontecesse o que acontecesse. Não falhara uma única vez.

Havia 4500000000 razões para voltar a Moscovo com tanta regularidade: esse era o valor total em dólares dos ativos geridos pela Hermitage Capital, a minha empresa. Eu era o seu fundador e CEO, e ao longo da década anterior a firma dera muito dinheiro a ganhar a muita gente. Em 2000, o Hermitage Fund fora classificado como o fundo de mercados emergentes com o melhor desempenho a nível mundial. Havíamos gerado retornos de 1500 por cento para os investidores que estavam connosco desde que o criámos, em 1996. O sucesso do meu negócio ultrapassou até as minhas expetativas mais otimistas. A Rússia pós-Soviética assistira a algumas das mais espetaculares oportunidades de investimento do mercado financeiro, e trabalhar lá era uma aventura tão grande — e ocasionalmente perigosa — quanto lucrativa. Porém, nunca aborrecida.

Fizera a viagem de Londres para Moscovo tantas vezes, que a sabia de trás para a frente: quanto tempo demorava a atravessar a segurança em Heathrow; a embarcar no avião da Aeroflot; a descolar e a voar para leste, rumo ao país que, a meio de novembro, avançava a passos largos para a escuridão de mais um inverno frio. O voo durava 270 minutos. O suficiente para ler o Financial Times, o Sunday Telegraph, a Forbes e o Wall Street Journal, bem como e-mails e documentos importantes.

Enquanto o avião subia, abri a minha pasta que continha as leituras do dia. Além dos arquivos, dos jornais e das revistas vistosas, havia uma pequena pasta em couro, na qual se encontravam 7500 dólares em notas de 100, dinheiro que aumentava as minhas hipóteses de conseguir apanhar o último e proverbial voo que saía de Moscovo (como se eu fosse uma daquelas pessoas que escaparam à justa de Phnom Penh ou Saigão antes de os seus países desabarem em caos e ruína).

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Só que eu não estava a fugir de Moscovo, estava a regressar. A voltar ao trabalho. Por isso, queria pôr-me a par das notícias do fim de semana.

Um artigo da Forbes, que li já no final do voo, chamou-me a atenção. Era acerca de um homem chamado Jude Shao, um sino-americano que, tal como eu, fizera um MBA em Stanford. Frequentara aquela universidade com alguns anos de desfasamento em relação a mim. Não o conhecia, mas ele também era um homem de negócios bem-sucedido num país estrangeiro. No caso dele, a China.

No que tocava a negócios, a China era dez vezes mais segura do que a Rússia.

Shao entrara em conflito com funcionários públicos chineses e corruptos. Foi preso em abril de 1998, depois de se recusar a pagar um suborno de 60 mil dólares a um fiscal das Finanças em Xangai. Acabou por ser julgado à conta de várias acusações forjadas e por fim foi condenado a 16 anos de prisão. Alguns ex-alunos de Stanford haviam organizado uma campanha de lobbying para o libertar, o que não deu em nada. Enquanto eu lia, Shao estava a definhar numa qualquer sórdida prisão chinesa.

O artigo deixou-me arrepiado. No que tocava a negócios, a China era dez vezes mais segura do que a Rússia. Durante alguns minutos, enquanto o avião desceu 10 mil pés na direção do Aeroporto Sheremetyevo, em Moscovo, perguntei-me se não estaria a ser estúpido. Ao longo de muitos anos, a minha principal abordagem aos investimentos fora o ativismo dos acionistas. Aquilo que, na Rússia, significava desafiar a corrupção dos oligarcas, cerca de 20 homens que eram suspeitos de, após a queda do comunismo, terem roubado 40 por cento do país, tornando-se multimilionários quase da noite para o dia. Os oligarcas detinham a maioria das empresas cotadas no mercado bolsista russo e andavam a burlá-las reiteradamente. Na maior parte dos casos, tivera êxito nas minhas batalhas com eles, mas se esta estratégia trouxe sucesso ao meu fundo, também me trouxe muitos inimigos.

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“Talvez devesse refrear-me. Ainda tenho muitas razões para viver”, pensei ao acabar de ler a história sobre Shao. Além do David, eu também tinha uma nova esposa em Londres. A Elena era russa, bela, inacreditavelmente inteligente — e estava já numa fase bastante avançada da gravidez do nosso primeiro filho. “Talvez devesse parar”.

Porém, nessa altura as rodas do avião tocaram o chão, e eu guardei as revistas, liguei o meu BlackBerry, fechei a pasta e comecei a verificar e-mails. A minha atenção desviou-se de Shao e dos oligarcas para o que eu perdera enquanto estivera no ar. Teria de passar pela alfândega, pegar no carro e voltar para o meu apartamento.

O Aeroporto de Sheremetyevo é um lugar estranho. O terminal que conhecia melhor, o Sheremetyevo–2, fora construído para os Jogos Olímpicos de 1980. Na altura seria impressionante, mas em 2005 já estava nas lonas. Tresandava a suor e a tabaco barato. A decoração do teto resumia-se a fileiras consecutivas de cilindros de metal que se assemelhavam a latas enferrujadas. No controlo de passaportes não havia filas organizadas, pelo que era necessário arranjar lugar por entre a multidão e ficar de atalaia de modo que ninguém passasse à nossa frente. E azar de quem despachasse malas: mesmo depois de nos carimbarem o passaporte, ainda ficávamos pelo menos uma hora à espera da bagagem. Após quatro horas e tal de voo, não era uma forma propriamente divertida de entrar na Rússia, especialmente para quem, como eu, fazia esta viagem fim de semana sim, fim de semana não.

Desde 1996 que eu operava assim, mas por volta de 2000 um amigo falou-me de um suposto serviço VIP que, por uma módica quantia, me pouparia uma hora, por vezes duas. Não era de todo luxuoso, mas valeu cada cêntimo.

Fui diretamente do avião para a sala VIP. As paredes e o teto estavam pintados de um verde que fazia lembrar um creme de ervilhas. O chão era de linóleo castanho-claro. As cadeiras, de couro vermelho-acastanhado, eram tão confortáveis quanto bastava. Ofereciam habitualmente café fraco ou chá requentado a quem lá estivesse à espera. Optei pelo chá (com uma rodela de limão) e entreguei o meu passaporte ao funcionário da imigração. Segundos depois, deixei-me absorver pela pilha de e-mails no meu BlackBerry.

Mal reparei quando o Alexei, o meu motorista, que fora autoriza-do a entrar na sala VIP, apareceu e se pôs a falar com o funcionário da imigração. O Alexei tinha a minha idade, 41 anos, mas, ao contrário de mim, media 1,95 m, pesava 107 quilos e era loiro, e o rosto dele metia medo. Fora coronel na Divisão de Trânsito e Segurança Rodoviária de Moscovo, e não dizia uma única palavra em inglês. Era muito pontual e, graças à sua lábia, conseguia sempre evitar pequenos sarilhos com polícias de trânsito.

Ignorei a conversa deles e continuei a responder a e-mails enquanto bebia o meu chá tépido. Pouco depois, os altifalantes anunciaram que a bagagem do meu voo estava pronta para ser levantada. Foi então que ergui a cabeça e dei por mim, incrédulo, a pensar: “Já estou aqui há uma hora?”

Olhei para o relógio. De facto estava ali há uma hora. O meu voo aterrou cerca das 19h30, e agora eram 20h32. Os outros dois passageiros que chegaram comigo à sala VIP, vindos do mesmo voo, há muito que tinham partido. Olhei de imediato para o Alexei, que retorquiu com um olhar que dizia: “Deixe-me verificar o que se passa.”

Enquanto ele falava com o agente, liguei à Elena. Em Londres eram ainda 17h32, pelo que sabia que ela estava em casa. Enquanto conversávamos, mantive o Alexei e o funcionário da imigração de-baixo de olho. O diálogo deles tornou-se rapidamente numa discussão. O Alexei bateu na secretária do funcionário, que ficou a olhar para ele.

— Passa-se algo de errado — disse à Elena.

Mais irritado do que preocupado, levantei-me e dirigi-me à secretária para perguntar o que se passava.

Ao aproximar-me dei-me conta de que o problema era muito grave. Pus a Elena em alta voz de modo que ela pudesse traduzir. Não tenho jeito com línguas: depois de dez anos na Rússia, ainda não sei mais do que o suficiente para dar indicações a um taxista.

A conversa não terminava. Limitei-me a observar, de cabeça ora para um lado ora para o outro, como um espetador de um jogo de ténis.

— Acho que é um problema com o visto, mas ele não está a explicar nada — disse a Elena, a dado momento.

Nesse exato instante, dois funcionários à paisana dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras entraram na sala. Um deles apontou para o meu telemóvel, e o outro para as minhas malas.

— Estão aqui dois funcionários a dizer-me para desligar e segui-los. Ligo-te assim que puder — expliquei à Elena.

Desliguei. Um dos funcionários pegou nas minhas malas, o outro recolheu os meus papéis da imigração. Antes de sair com eles, olhei para o Alexei. Ficou de ombros e olhos caídos, a boca ligeiramente entreaberta. Parecia perdido. Ele sabia que na Rússia, quando as coisas correm mal, por norma correm mesmo muito mal.

Segui os funcionários, serpenteando pelos corredores dos fundos do Sheremetyevo–2 em direção ao átrio amplo dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras propriamente ditos. Enquanto me encaminhavam para uma sala de detenção, no meu russo insuficiente ia fazendo perguntas, para as quais não obtive resposta. As luzes da sala eram abrasivas. As cadeiras de plástico, idênticas entre si e alinhadas em filas, estavam aparafusadas ao chão. Nas paredes via-se a tinta beje estalada, aqui e ali. Havia mais alguns detidos, estendidos nas cadeiras, de rostos zangados. Em silêncio. A fumar.

Os funcionários saíram. No lado oposto da sala estava um grupo de agentes fardados, resguardados atrás de um balcão de vidro. Escolhi um lugar perto deles e procurei compreender o que estaria a acontecer.

Por alguma razão, permitiram-me manter os haveres, incluindo o telemóvel, que tinha rede. Tomei isto como um bom sinal. Tentei conformar-me, mas a história de Jude Shao invadiu-me outra vez o pensamento.

Olhei para o relógio: 20h45.

Telefonei de novo à Elena. Disse-me que não estava preocupada, que estava a escrever um fax a explicar a situação aos funcionários da embaixada britânica em Moscovo, que o enviaria mal estivesse pronto.

Liguei ao Ariel, um israelita, ex-agente da Mossad, que trabalhava em Moscovo como consultor de segurança da minha empresa. Era considerado por muitos um dos melhores do país, e eu acreditava que ele seria capaz de resolver este problema.

Dirigi-me ao guiché e tentei, no meu russo incipiente, entabular conversa com os polícias. Fui ignorado. Para eles, eu não existia. Pior ainda: era como se já fosse um prisioneiro.

Ao saber o que estava a acontecer, o Ariel ficou surpreendido. Disse-me que iria fazer uns telefonemas e que me ligaria a seguir.

Por volta das 22h30, telefonei para a embaixada britânica e falei com um funcionário consular chamado Chris Bowers. Ele recebera o fax da Elena, e estava a par da situação — pelo menos sabia tanto quanto eu. Confirmou os meus dados: data de nascimento, número de passaporte, data de emissão do visto, tudo. Sendo domingo à noite, explicou, provavelmente não poderia fazer muito, mas iria tentar.

Antes de desligar, perguntou-me:

— Sr. Browder, deram-lhe de comer?

— Não — respondi.

Ele soltou uma exclamação indecifrável, e eu agradeci-lhe, antes de lhe dizer um adeus.
Tentei arranjar uma posição confortável na cadeira de plástico, mas era impossível. O tempo arrastava-se. Levantei-me. Caminhei através de uma cortina de fumo de tabaco, tentando evitar o olhar vazio dos outros homens que também tinham sido detidos. Li os e-mails. Liguei ao Ariel, mas não obtive resposta. Dirigi-me ao guiché e tentei, no meu russo incipiente, entabular conversa com os polícias. Fui ignorado. Para eles, eu não existia. Pior ainda: era como se já fosse um prisioneiro.

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Vale a pena referir que na Rússia não existe qualquer respeito pelo indivíduo ou respetivos direitos. As pessoas podem ser sacrificadas em prol do Estado, utilizadas como escudos humanos, moeda de troca ou até ração para animais. Em necessidade, toda a gente é descartável. Há uma expressão famosa de Estaline que resume bem a questão: “Se não existissem homens, não existiriam problemas.”

Foi então que Jude Shao, o autor do artigo da Forbes, me veio à cabeça. Deveria eu ter sido mais cauteloso no passado? Habituara-me de tal maneira a combater os oligarcas e os corruptos funcionários russos, que já assumia calmamente a possibilidade de, caso alguém o desejasse de facto, também eu poder levar sumiço.

Abanei a cabeça, como se isso afastasse a imagem de Shao. Fui mais uma vez ter com os guardas para tentar arrancar-lhes alguma coisa, fosse o que fosse, mas de nada serviu. Regressei ao meu lugar e tentei de novo ligar ao Ariel. Desta vez, respondeu.

O que é que se passa, Ariel?

— Falei com várias pessoas, mas ninguém me diz nada.

— Como é que ninguém te diz nada?

— Só isso, que ainda ninguém me disse nada. Lamento, Bill, mas preciso de mais tempo. É domingo à noite, ninguém está disponível.

— OK. Avisa-me mal saibas alguma coisa.

— Combinado.

Desligámos. Liguei de novo para a embaixada, mas também não havia novidades. Ou toda a gente se estava a fechar em copas, ou eu ainda nem estava no sistema. Ou ambos. Antes de desligar, o cônsul voltou a perguntar se me tinham dado alguma coisa para comer ou beber.

— Não — repeti.

Parecia-me uma questão insignificante, mas obviamente Chris Bower não era dessa opinião. Decerto já passara por situações semelhantes. Ocorreu-me que não disponibilizar água nem comida era uma tática muito típica dos russos.

Assim que o relógio passou da meia-noite, mais detidos encheram a sala. Todos homens, com ar de serem oriundos das antigas repúblicas soviéticas — Geórgia, Azerbaijão, Cazaquistão, Arménia. A sua bagagem, caso trouxessem alguma, resumia-se a malas de desporto ou uns estranhos sacos de compras de nylon, enormes, fechados com fita adesiva. Todos fumavam sem parar. Alguns falavam, mas muito baixinho. Ninguém mostrava sinais de emoção ou sequer preocupação. Empenharam-se tanto em dar pela minha presença como os guardas, embora eu fosse nitidamente um peixe fora de água: nervoso, de fato azul, BlackBerry na mão, com um trolley preto.

Telefonei de novo à Elena:

— Tens novidades?

Ela suspirou:— Não. E tu?

— Nada.

Deve ter-se apercebido da preocupação na minha voz.

— Vai correr tudo bem, Bill. Se for mesmo um problema com o visto, amanhã já cá estarás para resolver tudo. Tenho a certeza.

A calma dela ajudou-me.

— Eu sei.

Olhei mais uma vez para o relógio. Em Inglaterra, seriam 22h30.

— Vai dormir, querida. Tu e o bebé precisam de descansar.

— OK. Ligo-te mal tenha alguma informação.

— Eu também.

— Boa noite.

— Boa noite. Amo-te — acrescentei, mas ela já tinha desligado.

Fui assolado por uma sombra de dúvida: e se isto não fosse um mero problema com o visto? Voltaria a ver a Elena? Chegaria a conhecer o nosso bebé? Voltaria a ver o David?

Enquanto tentava combater estes pensamentos sombrios, recostei-me nas cadeiras duras, adaptando o casaco como almofada, mas aquelas pareciam feitas de propósito para impedir o sono. Isto além de estar rodeado de gente com ar de poucos amigos. Como conseguiria passar pelas brasas em tal companhia?

Não conseguiria.

Sentei-me e comecei a escrever no BlackBerry. Fiz listas das pessoas com quem me cruzara ao longo dos anos na Rússia, na Grã-Bretanha e na América que talvez pudessem ajudar-me: políticos, empresários, repórteres.

O Chris Bowers telefonou-me uma última vez antes de acabar o turno na embaixada. Garantiu-me que a pessoa que o vinha substituir receberia toda a informação necessária. Continuava a querer saber se já me tinham dado comida ou água. Não. Pediu desculpa, embora nada pudesse fazer. Estava nitidamente a registar todas as ocorrências de possíveis maus-tratos, para o caso de virem a ser úteis. Quando desligámos, pensei: Merda!

Por essa altura, já eram umas 2 ou 3 da manhã. Desliguei o BlackBerry para poupar a bateria e fiz mais um esforço para adormecer. Tirei uma camisa da mala e tapei os olhos. Engoli dois Nurofen a seco para afastar a dor de cabeça que estava a caminho. Tentei esquecer-me de tudo e convencer-me de que no dia seguinte já estaria longe daquilo tudo. Era só um problema com o visto. De uma forma ou de outra, iria sair da Rússia.

Ao fim de algum tempo, adormeci.

Acordei por volta das 6h30, quando chegou uma nova leva de detidos. Mais do mesmo. Ninguém como eu. Mais cigarros, mais sussurros. O cheiro a suor intensificou-se. Tinha um sabor amargo na boca, e pela primeira vez apercebi-me de que estava a morrer de sede. Razão tinha Chris Bowers, insistindo em saber se me haviam dado comida ou bebida. Tínhamos acesso a uma casa de banho imunda, mas aquelas bestas deviam ter-nos dado, a todos, alguma coisa para comer e beber.

Mesmo assim, acordei otimista quanto a tudo isto não passar de um mal-entendido burocrático. Telefonei ao Ariel. Ainda não conseguira descobrir o que se passava, mas disse que o voo seguinte para Londes saíria às 11h15. Das duas uma: ou seria preso, ou deportado, pelo que tentei convencer-me de que embarcaria naquele voo.

Fiz de tudo para ocupar o tempo. Respondi a e-mails, como se fosse um dia normal de trabalho. Contactei a embaixada, e o novo cônsul de serviço garantiu-me que, mal os serviços abrissem, se encarregariam do meu caso. Juntei as minhas coisas e tentei mais uma vez meter conversa com os guardas. Pedi-lhes o passaporte. Continuaram a ignorar-me. Era como se aquele trabalho se resumisse a isso mesmo: estarem ali sentados do outro lado do vidro, ignorando todos os detidos.

Andei de um lado para o outro. 9h00. 9h15. 9h37. Ia ficando cada vez mais nervoso. Queria falar com a Elena, mas ainda era muito cedo em Londres. Voltei a ligar ao Ariel, que continuava sem ter coisa alguma. Desisti de fazer telefonemas.

Às 10h30, já eu batia no vidro do guiché. Porém, os guardas continuaram a ignorar-me com extremo profissionalismo. A Elena ligou-me. No entanto, desta vez nem ela conseguiu acalmar-me. Prometeu que iríamos resolver tudo, mas eu começava a achar que já não valia a pena. A imagem de Jude Shao crescia a olhos vistos na minha mente.

10h45. Comecei a entrar mesmo em pânico.

10h51. Como é que fui tão estúpido? Por que carga de água passaria pela cabeça de um tipo normal do sul de Chicago que seria capaz de derrubar oligarca russo atrás de oligarca russo… e de se safar?

10h58. Estúpido, estúpido, estúpido! ArrogAnteeestúpido, Bill! ArrogAnteeestúpidoquenemumAportA!

11h02. Vou para uma prisão russa. Vou para uma prisão russa. Vou para uma prisão russa.

11h05. Dois oficiais com pinta de facínoras entraram pela sala e vieram direitinhos a mim. Agarraram-me pelo braço, pegaram nas minhas coisas e arrastaram-me para fora da sala de detenção. Levaram-me pelo corredor e pelas escadas acima. Pronto. Já está. Seria atirado para uma carrinha da polícia e levado para sabe-se lá onde.

No entanto, de seguida abriram uma porta ao pontapé, e estávamos no terminal das partidas a andar sem vagares. O meu coração ia ganhando nova vida, enquanto deixávamos para trás portões e passageiros curiosos. Chegámos ao portão de embarque para o voo das 11h15 para Londres, e fui empurrado pela passadeira para dentro do avião, arrastado através da classe executiva e depositado num lugar na económica. Os meus guardas não abriram a boca. Enfiaram a minha mala no cacifo das bagagens. Não me devolveram o passaporte. Foram-se embora.

Os outros passageiros bem tentavam não olhar para mim, mas era impossível. Ignorei-os. Afinal, não iria para uma prisão russa.

Mandei uma mensagem à Elena, a informar que estava caminho de casa e que a veria em breve. Disse que a amava.

Levantámos voo. Quando as rodas encaixaram na fuselagem, senti o maior alívio de sempre. Ganhar e perder centenas de milhões de dólares não tinha sequer comparação. Atingimos a altitude de cruzeiro, e começaram a servir as refeições. Não comia há 24 horas. Nesse dia o almoço era uma mistela horrível, uma espécie de strogonoff de vaca, mas nunca algo me soubera tão bem. Comi três pães. Bebi quatro garrafas de água. E adormeci imediatamente.

Só acordei quando o avião tocou na pista de aterragem em Londres. Enquanto circulávamos pela pista, fiz uma lista mental de tudo o que tinha pela frente. Antes de mais, passar pela alfândega britânica sem passaporte; porém, talvez isso nem fosse assim tão complicado, uma vez que Inglaterra era a minha casa, o meu país de adoção desde que no final dos anos 90 optara pela cidadania britânica. O problema era de facto a Rússia. Como iria sair desta imensa confusão? Quem estaria por trás de tudo isto? A quem de-veria ligar na Rússia? E no Ocidente?

O avião parou, soou um apito, os cintos de segurança soltaram-se. Esperei pela minha vez e caminhei pela coxia até à saída. Fui andando sem reparar sequer no piloto, que estava mais à frente a observar os passageiros que desembarcavam. Quando me aproximei, os meus pensamentos foram interrompidos por uma mão estendida. Olhei. Vi que era o piloto a devolver-me o passaporte britânico. Peguei neste em silêncio.

Demorei cinco minutos a passar pela alfândega. Apanhei um táxi e fui para o meu apartamento em Londres. Quando cheguei, a Elena abraçou-me durante muito tempo. Nunca me sentira tão grato por um abraço.

Disse-lhe quanto a amava. Ela respondeu-me com um sorriso rasgado e doce. Falámos sobre o meu percalço enquanto nos dirigíamos de mãos dadas para o escritório de casa. Ocupámos as secretárias, ligámos os computadores, pegámos nos telefones e começámos imediatamente a trabalhar.

Tinha de arranjar maneira de regressar à Rússia.

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