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Maria Gralheiro

Maria Gralheiro

Annie Silva Pais. A filha do último diretor da PIDE que se apaixonou pela Cuba de Fidel

Filha do último director da PIDE, casada com um diplomata suíço, passou-se para o lado dos comunistas na Cuba de Fidel. A desconcertante história de Annie Silva Pais, que faria 81 anos esta semana.

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No Bilhete de Identidade está Ana, mas toda a gente a conhece por Annie, diminutivo afetuoso que lhe deu o marido, o diplomata suíço Raymond Quendoz. Annie Silva Pais, filha única do último diretor da PIDE, Fernando Silva Pais, partiu para Cuba em 1962 com o marido, que tinha acabado de receber ordem de mudança de Lisboa para Havana.

Foi logo evidente o entusiasmo com que recebeu a notícia. Cuba, país distante e tropical, era vista como a vanguarda política pelos intelectuais franceses que Annie tanto admirava. Começou aí o fascínio, que foi amadurecendo, já em Havana, à medida que começou a relacionar-se com gente próxima da revolução.

Annie era uma mulher “de grandes paixões”, para quem tudo “era um caso de amor”, relembra ao Observador José Paulo Fafe, especialista em marketing político e filho do primeiro embaixador português em Cuba depois do 25 de Abril, José Fernandes Fafe.

“Grandes paixões” por quem? “Por quem não sei, primeiro pelo marido, depois pelo médico do Fidel, depois por Pepe Abrantes [José Manuel Abrantes, Ministro do Interior de Fidel] e até talvez por Che ou pelo próprio Fidel Castro, era o que se dizia. Eu não posso confirmar, mas posso dizer que era uma mulher excessiva, no bom sentido, e que se entregou aos ideais da revolução com muita honestidade”.

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É uma história fantástica de paixão, rebeldia e dor, reconstituída com minúcia por José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz, ambos jornalistas do semanário Expresso, no livro A Filha Rebelde. Se fosse viva, Annie Silva Pais teria feito esta quinta-feira 81 anos.

Annie entregou-se à revolução como se tivesse encontrado aquilo por que tinha passado a vida à procura. E José Paulo Fafe entende-a bem, até porque foi em Cuba que ele passou parte da adolescência. “Em Cuba, no início, aquilo era mesmo sincero, era puro, os militares, o povo, aquilo foi feito por uma geração que realmente acreditava nas coisas pelas quais lutava”, relembra.

"Annie cresceu numa família de classe média-alta, escudada do resto do mundo, era uma rapariga relativamente ingénua, que chegou a Cuba e se encantou pela festa, pelas pessoas, muito mais abertas do que em Lisboa, pela música e pelo carisma dos militares"
Embaixador José Fernandes Fafe

As histórias sobre Annie são todas escritas a “verde oliva”, a cor da farda que usavam os militares cubanos: e ela sentia-se uma entre eles. Se fosse viva, talvez lhe tivéssemos escutado, nesta semana em que o regime está de luto por Fidel, a mesma frase que nos chega pelas televisões das ruas de Havana, a mesma que José Fernandes Fafe, enquanto foi embaixador, ouviu repetidamente, muito antes da morte de Fidel. “Quantas vezes ouvi pessoas dizerem ‘Eu não sou comunista, eu sou castrista e por Fidel dava a minha vida'”, relembra ao Observador, que recebeu no Restelo, num apartamento onde, além de uma estante cheia de livros antigos de lombada grossa e amarelada, encontramos também, ao lado da chaleira, uma caixa de charutos cubanos.

Até chegar a Cuba, Annie tinha uma vida confortável, numa família próxima do poder no Estado Novo, e não passou nunca pelas privações sentidas por uma grande parte dos portugueses durante o salazarismo. O que a levou a apaixonar-se pelos ideais revolucionários cubanos? José Fernandes Fafe, que escreveu Annie: Uma Portuguesa na Revolução Cubana, baseado em factos reais sobre a vida da jovem rebelde, avança uma hipótese: “Annie cresceu numa família de classe média-alta, escudada do resto do mundo, era uma rapariga relativamente ingénua, que chegou a Cuba e se encantou pela festa, pelas pessoas, muito mais abertas do que em Lisboa, pela música e pelo carisma dos militares, foi maioritariamente esse o fascínio”.

A Filha Rebelde - José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz

O livro de José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz

Che Guevara e o vestido

E havia, ainda, o Che. No testemunho que deu aos jornalistas do Expresso, Raymond Quendoz recordou o encanto que a sua ex-mulher desenvolveu por Che Guevara. “Recorda-se do primeiro domingo passado em Havana. Recorda-se de terem ido escutar o comandante Ernesto Che Guevara discursar numa das praças da cidade. Recorda-se do entusiasmo da esposa. Recorda-se da impressão provocada pelos batalhões femininos em volta do comandante. De todo o discurso, é isso que mais o fascina. Demora a perceber a dimensão da involuntária influência do Che sobre Annie. Desespera quando lhe parece estar a emergir o perfume do comandante em cada recanto da sua casa (…) Acha o comportamento da mulher ‘decrépito. Muito próximo da senilidade’ “, pode ler-se nas primeiras páginas de A Filha Rebelde.

Talvez confiando que Raymond não notaria, Annie deixou aos pés da cama, durante semanas, o vestido vermelho, justo e decotado, que tinha usado na noite em que conheceu Che. Ele tinha-lhe dirigido um elogio à roupa. “Jamais se conhecerá a dimensão do terramoto que naquele instante terá abalado os mais íntimos pensamentos de Annie”, escrevem José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz sobre o comentário de Che, que pode bem ter consolidado a decisão de Annie em acabar com o casamento. Não há, porém, relatos de qualquer ligação íntima entre a portuguesa e Che Guevara.

Quando se encontraram, Che elogiou o vestido de Annie. Nesta foto, Guevara está com Fidel Cstro

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Sabe-se sim, porque Annie não o escondia dos amigos, que a portuguesa tinha uma “fixação”, uma “paixão assolapada” pelo histórico guerrilheiro argentino. “O Guevara era um moralista, não era um político. Ele era um homem coerente, e os políticos não são coerentes. Levava aquilo a sério, estava concentrado, ele já tinha encarnado o papel de mito antes de morrer, por isso disse que só saia da Bolívia ´vitorioso ou morto´. Isto fascinava as pessoas, principalmente uma mulher como Annie, que sempre foi dada a paixões rápidas, talvez até de alguma forma superficiais”, diz José Fernandes Fafe.

É possível que Annie tenha passado os primeiros anos que esteve em Cuba nutrindo a ideia de um dia se juntar à revolução mas, até decidir fazê-lo, aproveitou todos os luxos que a vida de mulher de um diplomata lhe permitiu. Adorava as festas nas embaixadas, os jantares, a efervescente vida cultural de Havana, as noites no mítico hotel Tropicana.

“Era uma mulher lindíssima, até para mim, que a conheci quando era muito jovem e ela teria já perto de 40 anos”, diz João Paulo Fafe. Já o seu pai comenta que, tal como a mãe, “que aos 80 anos ainda era uma bela mulher”, Annie era “uma das mulheres mais bonitas de Lisboa”. Em Cuba continuou a cuidar-se, já que o pai e a mãe lhe enviavam, dentro de várias malas diplomáticas, cremes, maquilhagem e dinheiro.

Annie entra na revolução

Três anos depois de ter chegado a Havana, em 1965, Annie desapareceu durante mais de um mês, quando saiu do país para visitar uma amiga no México. Depois de regressar, passou-se para o outro lado da barricada. Aterrou em Cuba, o marido esperava-a, mas Annie permaneceu dentro do avião. Raymond foi-se embora, pensando que a mulher teria prolongado as férias.

Mas havia dois homens à espera da mesma mulher. Só um sabia o que se passava — e não era o marido de Annie. Raymond terá mesmo dito a Vallejo, segundo relata o livro, que “esta menina só faz o que lhe dá na gana”. Pouco depois, o carro do médico escapou-se do aeroporto, com Annie no lugar de passageiro, a toda a velocidade, revolução adentro. Com a ajuda do homem que na altura era médico de Fidel, René Vallejo, com quem se envolveu romanticamente, a portuguesa iniciou então uma nova vida ao serviço da revolução.

Na altura, temeu-se que tivesse sido raptada para ser utilizada como moeda de troca nas lutas anticoloniais. Ponderaram-se todos os cenários menos a deserção — até essa ser, finalmente, a única hipótese.

Os serviços secretos suíços passaram a tratar como um caso de segurança internacional o que ao início desprezaram como sendo um arrufo de casal. A CIA entrou em pânico. Raymond era responsável pela cifra, ou seja, pela descodificação das mensagens confidenciais que chegavam à embaixada. Annie poderia ter levado da embaixada suíça documentos confidenciais já que, para lá das portas da representação diplomática deste país neutro, se faziam as comunicações de outros países bem mais importantes, como, por exemplo, os Estados Unidos.

Nada disso. Até hoje não há prova de que Annie tenha transmitido aos cubanos qualquer informação sensível. A Suíça faz então regressar Raymond, que foi “interrogado por todas as polícias do mundo”, como diz José Fernandes Fafe, e, quando voltou à vida diplomática, foi enviado para o Senegal. “É dele a parte mais triste desta história. Nunca soube o que se estava a passar, só mais tarde. Foi envolvido num turbilhão, a carreira travada, o casamento destruído”, comenta Fafe.

Com a ajuda do homem que na altura era médico de Fidel, René Vallejo, com quem se envolveu romanticamente, a portuguesa iniciou então uma nova vida ao serviço da revolução. Aterrou em Cuba, o marido esperava-a, mas Annie permaneceu dentro do avião. Raymond foi-se embora, pensando que a mulher teria prolongado as férias.

Educada na Suíça antes de casar, Annie sabia alemão, francês, castelhano, inglês e português e rapidamente se tornou uma das mais requisitadas intérpretes do aparelho de Fidel. Sentia-se orgulhosa do seu papel. A vida modesta era para ela uma honra.

“Ninguém a obrigou. Ela vivia de uma forma muito austera sem ter razão nenhuma para isso. Queria viver como os cubanos, utilizava os livretes de senhas de racionamento como toda a gente, vivia num pequeno apartamento perto da Praça da Revolução”, relembra José Paulo Fafe, que esteve muitas vezes com Annie, “nos almoços de domingo que se faziam lá em casa”.

Tal era a devoção de Annie à revolução que até o que lhe era oferecido ela recusava. Ou aceitava a medo. “Lembro-me de ir com a minha mãe ao supermercado e ela dizer ‘Vou levar isto para a Annie, vou levar aquilo para a Annie’. Depois, chegávamos a casa da Annie e ela não queria aceitar. Dizia-nos que os vizinhos dela não tinham estes luxos, sendo que o “luxo” desta vez, lembro-me, era um ferro de engomar”, conta José Paulo Fafe.

Escândalo abafado em Lisboa

Em Lisboa, o escândalo da “fuga” da filha do major Silva Pais para se juntar aos ideais contra os quais a sua família se havia batido toda a vida terá provocado algum desconforto na família, mas nada terá passado das paredes da casa que habitavam, na Rua de Moçambique. As pessoas contactadas pelo Observador, que na altura estariam perto das orlas do poder, não se recordam de qualquer escândalo. Silva Pais decidiu, mesmo assim, ir falar com Salazar, mas este ter-se-á revelado frio e indiferente ao drama familiar e continuou a confiar a Silva Pais a gestão da polícia política.

Silva Pais

O cartão de Silva Pais, último diretor da PIDE

Quem viveu estes tempos perto do poder assegura que a decisão de “angariar” Annie para a revolução cubana terá partido de alguém muito próximo de Fidel ou mesmo do próprio, como disse a mulher de um dos seus ministros aos jornalistas do Expresso. Rui Ferreira, que foi jornalista em Cuba e se tornou amigo de Annie, confirma as suspeitas, até porque nada tão sério seria feito sem conhecimento dos mais altos responsáveis do regime. Annie teria que conseguir um emprego e um apartamento, ambos atribuídos pelo Estado.

Se o pai, num primeiro momento pelo menos, permaneceu impávido à frente da PIDE, a mãe não se conformou e partiu para Cuba à procura da filha. A relação entre as duas nunca foi totalmente livre de atritos e quando Armanda Silva Pais chegou e viu a filha de farda, como as milícias, entendeu que não a conseguiria demover.

Annie integrou os Comités de Defesa da Revolução (CDR), grupos de vigilância criados para combater as várias organizações classificadas pelo regime como “contra-revolucionárias”. As CDR asseguravam um controlo apertado dos residentes de uma determinada área, eram os olhos e os ouvidos do regime e por isso eram acusados de promover a delação e a desconfiança entre as pessoas.

Annie viu a sua integração nestas brigadas justiceiras como algo natural, explica Rui Ferreira: “A Annie tinha uma formação autodidata, nunca frequentou cursos de ideologia ou escolas para quadros do partido. Annie simplesmente apaixonou-se pela revolução, numa idade em que a sua geração também se apaixonou pelo processo político, e mais nada”. Lopes da Costa, ex-embaixador em Cuba, concorda: “Para a minha geração era muito fácil converter-se à revolução cubana. Naqueles anos, era o socialismo sem os aspetos negativos do socialismo soviético. Era o socialismo com música, latino, sem o ar cinzento, chato e pesado da URSS”.

Annie integrou os Comités de Defesa da Revolução (CDR), grupos de vigilância criados para combater as várias organizações classificadas pelo regime como “contra-revolucionárias”. As CDR asseguravam um controlo apertado dos residentes de uma determinada área, eram os olhos e os ouvidos do regime e por isso eram acusados de promover a delação e a desconfiança entre as pessoas.

A relação entre Annie e Armanda não melhorou. A mãe entrou em desespero à medida que, em conversas com diplomatas portugueses e estrangeiros, percebeu que toda a Havana já sabia que a filha era comunista. Pediu-lhe que não se metesse na política, que o pai não lhe perdoaria, mas Annie não a ouviu. Havia discussões na embaixada, aos berros.

A mãe regressou, transtornada, mas continuou a escrever-lhe, na tentativa que reconsiderasse. Não está totalmente excluída a hipótese de que o próprio Silva Pais se tenha deslocado a Cuba no maior dos segredos, mas Annie não cedeu. José Fernandes Fafe relembra, na conversa com o Observador, “que entre polícias há sempre entendimentos, independentemente das fações que defendem”, recordando também que Annie “tinha uma grande admiração pelo pai” e “que existia uma grande identificação intelectual, apesar das divergências ideológicas”. Mais: “A família nunca quebrou com Annie, nunca deixou de ter notícias dela”.

O dia em que entregou o passaporte

Quando Annie foi entregar o seu passaporte diplomático à embaixada suiça, faz-se acompanhar por Roberto Meléndez, chefe de protocolo do Ministério das Relações Exteriores e de quem se dizia ter acesso direto a Fidel Castro. Ao entregar o passaporte, Annie passou de um mundo que lhe estava totalmente aberto diretamente para debaixo da alçada do Ministério do Interior de Cuba. Se alguma coisa corresse mal, não havia volta a dar-lhe.

A vida de Annie estava completamente modificada. Trabalhava no Departamento de Guias e Congressos do Instituto Cubano de Amizade com os Povos (ICAP), um emprego apenas acessível a pessoas de confiança do regime. Passou depois pela OSPAAAL — Organização de Solidariedade com os Povos de África, Ásia e América Latina — e, ao mesmo tempo, dava aulas na Escola Abraham Lincoln. Foi preciso coragem para tal transformação. Isso mesmo reconhecem os seus amigos cubanos, bem como os principais representantes do regime.

Ao entregar o passaporte, Annie passa de um mundo que lhe estava totalmente aberto diretamente para debaixo da alçada do Ministério do Interior de Cuba. Se alguma coisa corresse mal não havia volta a dar-lhe.

Gonzaga Ferreira testemunhou essa rutura e também ele reconhece, em declarações a José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz, que não deve ter sido fácil escolher este caminho: “Foi precisa muita determinação para romper com toda a vida de bem-estar, mundanidade, elevado nível social, facilidades e mordomias, para embarcar numa vida que, à partida, seria de renúncia a tudo o que marcara a sua existência até então, de dificuldades e sacrifícios”. O mesmo diz ao Observador José Fernandes Fafe: “Visitei a mãe da Annie depois de Annie morrer e, não sendo um apartamento de luxo, era claramente uma casa de uma família que vivia bem, ao contrário do apartamento modesto de Annie em Cuba, com chão de pedra, onde vivia só com a sua cadelinha”.

Operada de urgência

Em Portugal, as vozes dissidentes têm cada vez menos meios de se fazerem ouvir. Annie, a partir de Cuba, envia longas cartas sobre a beleza dos ideais socialistas, numa tentativa de evangelização dos pais sem saber que, dali a pouco, dar-se-ia o 25 de Abril. O pai de Annie foi preso e a mãe, segundo revelam os seus diários, ficou revoltada com o novo regime — o 25 de Abril de 1974 é o “Holocausto” para Armanda Silva Pais. Perdeu tudo, estava sozinha e com medo. Raymond manteve-se um amigo entre pouquíssimos.

Annie voltou para visitar a família, mas a sua adesão à Lisboa revolucionária e a sua dificuldade em julgar os homens que prenderam o pai deixaram Armanda arrasada. Discutiam durante horas. Afinal, a sua própria filha sentia mais afinidades com os revolucionários do que com os seus próprios pais. E Annie regressou a Cuba por mais algum tempo.

Annie voltou para visitar a família, mas a sua adesão à Lisboa revolucionária e a sua dificuldade em julgar os homens que prenderam o pai deixaram Armanda arrasada. Discutiam horas a fio.

A 31 de maio de 1975, Annie voltou a Portugal. Está quase a abater-se sobre o país o verão mais quente de que há memória. Annie estava cá e colocou-se ao serviço da revolução, como intérprete e tradutora da 5ª Divisão, um organismo de dinamização cívica que tinha sido criado para promover os ideais da revolução através da produção cultural. O coronel Varela Gomes tornou-se um amigo próximo. Conheceu Otelo e Vasco Gonçalves e foi intérprete de ambos em Cuba e de Senén Casas, responsável máximo pelas Forças Armadas Revolucionárias de Cuba, em Portugal.

Voltou a Cuba depois de as diligências feitas junto dos dirigentes da revolução não terem surtido o efeito desejado por Annie: ao mesmo tempo que estabelecia ligações entre Portugal e Cuba, tentava mover influências para que o pai fosse libertado. Silva Pais começou a ser interrogado pelo alegado envolvimento no assassínio do general Humberto Delgado. Negará sempre qualquer culpa e morreu, em Janeiro de 1981, sem que tivesse havido sentença.

Annie chegou a ser tradutora de Otelo

LUIS VASCONCELOS /LUSA

Quando regressou a Cuba, Annie começou a viajar ao serviço do ESTI — Equipo de Servicios de Traductores e Intérpretes. Até da Coreia do Norte enviou postais à mãe. Em Agosto de 1988, foi operada de urgência a um nódulo na mama. Annie ficou desanimada, alimentava-se mal, perdeu o cabelo.

Voltou ao trabalho depois de uma segunda operação e viajou por Chipre, Rússia, África. A mãe quis ir vê-la a Cuba, mas houve demoras na embaixada em Lisboa. Neste momento de aperto, Armanda esqueceu o seu ódio ao país que lhe levou a filha e revoltou-se contra os portugueses: “Gente indecente, só os cubanos estão a fazer o que podem, por ela e por mim”, lê-se numa entrada do seu diário, transcrita no livro A Filha Rebelde.

Quando chegou a Cuba, Annie estava claramente para lá de qualquer salvação. Adorada por todos, recebia visitas e flores dos colegas do ESTI, que lhe vigiavam o sono e aliviavam os momentos de dor. Annie quis passar os últimos dias em casa. Continuou a receber visitas. Arranjava-se para elas e punha tangos de Gardel. Morreu a 13 de julho, com 54 anos.

“Era uma rapariga que se ria”

José Fernandes Fafe explica Annie citando o filósofo alemão Friedrich Hegel. “A contradição é fecunda”, diz com ar solene. “A contradição entre o amor ao pai e o amor à revolução criou uma mulher convicta mesmo nas suas contradições. Hegel dizia que só se progride por contradições e a contradição não é negativa. As contradições dentro de Annie fizeram dela a mulher ‘amorosa’ que foi. Tinha uma coisa muito bonita: um riso de rapariga. Já entradota e quando se ria, era uma rapariga que se ria”.

“Estou convencido que estará a descansar, indiferenciada dos seus colegas de revolução, numa espécie de vala comum”

Annie foi sepultada no belo cemitério Cristobal Cólon — Cristóvão Colombo para nós — mas, quando José Paulo Fafe lá foi à procura do seu nome, nada encontrou. “Estou convencido que estará a descansar, indiferenciada dos seus colegas de revolução, numa espécie de vala comum”, diz ao Observador.

Não estará longe da verdade. José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz também não encontraram a campa de Annie. Depois de dois anos, caso não exista um jazigo de família, os restos mortais de quem ali é sepultado passam para “o edifício da administração”. Annie é hoje um número numa caixa de cimento.

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