Pela tardinha, rua sim, rua sim, no bairro lisboeta da Musgueira há sempre uma bola a rolar. E o futebol dura até que a mãe, da janela de casa, apite para o fim do jogo aos berros e diga aos futebolistas que é hora de recolher aos balneários — perdão, à mesa de jantar. À falta de relvado melhor, é o alcatrão da estrada que servirá de campo, as balizas são duas pedras surripiadas à calçada e separadas por precisos cinco passos, as bancadas são os prédios altíssimos de um e do outro lado da rua, com a vizinhança que vem à janela estender a roupa ou fumar um cigarro a servir de plateia. Está lá tudo.

Estamos em julho e o calor é sufocante àquela hora da tarde, não há brisa que o refresque e o alcatrão fervilha. Mas Kevin, como um xamã a caminhar sobre o fogo, teima em correr sobre ele descalço, fintando um, dois defesas, um bairro todo de defesas, miúdos que esfolam os joelhos para lhe tirar a bola e não conseguem mais do que isso, esfolar-se, e lá continua Kevin a calcorrear chão até à baliza, sozinho. O guarda-redes atira-se aos seus pés calejados e sujos, mas Kevin contorna-o e encosta para golo. Na verdade, não “encosta”; o que lhe saiu do pé direito foi uma bujarda, potentíssima, que só parou nos estores do vizinho do rés-do-chão. Kevin festejou o golo como se estivesse no Stade de France e na final do Euro. Cantou-o: Gooooolo! Mas ninguém o ouviu na Musgueira inteira. Teve a voz abafada pelo ruído do avião que lhe sobrevoava a cabeça. O aeroporto da Portela é do outro lado da estrada. Apesar de tudo, teve sorte. Por causa do avião, o vizinho com os estores amolgados não se apercebeu da travessura de Kevin.

— Ó dread, atira-me aí os ténis! — Gritou ele para o último andar do prédio.
— E atira-me também as meias, ó dread! Eishhh, népia, essas não, que estão rotas, ó dread! — Acrescentaria Kevin, enquanto o irmão lhe fazia chegar à estrada os ténis, atirados diretamente do sexto piso.

Musgueira, Renato Sanchez, bola, campo de futebol,

Qualquer semelhança entre Kevin e Renato Sanches não é apenas coincidência; são primos (Créditos: Patrícia Amaral/Observador)

Ele tem pinta. E sabe-o. Traz a carapinha cortada à escovinha, mais curta dos lados do que em cima, pintou-a de louro — mas só em cima, “para o estilo” –, ainda só tem 12 anos e é um matulão, de pernas fortes e peito largo. Muito mais matulão do que os restantes. E é por isso — pelo corpanzil, pela passada larga a correr e por chutar com toda aquela força –, que, com a bola nos pés, faz dos outros jogadores o que quer.

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Kevin também é irreverente. E é por causa de tanta irreverência que não é futebolista. Chegou a sê-lo, no Tunelense, clube da Musgueira; os outros dois clubes do bairro são o Águias e o Alta de Lisboa. “Porque é que saí? O mister falava demais. Ele tinha que falar para todos, mas quando as coisas não corriam bem à equipa, era só para mim que ele falava. Cansei-me disso e saí. Talvez este ano vá para o Águias. O treinador de lá conhece-me e quer que eu vá. Não sei. Talvez vá…”, responde Kevin, encolhendo os ombros e com os olhos sempre na bola que vai correndo, sem ele, na estrada.

Mas, afinal, este médio defensivo com talento de dez quer ser futebolista à séria ou ficar-se só pelas futeboladas de rua? “Não, não, eu quero ser, à séria. E sei que se me esforçar, se treinar todos os dias, posso ser tão bom como o meu primo.” Primo? “Sim, o Renato Sanches. É meu primo. Não me viste a meter o corpo? Foi ele que me ensinou a ‘dar massa’”, confidencia, para em seguida gracejar.

Mas haverá mais “Renatos” prontinhos a sair da Musgueira, quem sabe o próprio Kevin? “Há aí um ou dois. Há o Pimpolho, por exemplo. Ele chama-se Carlos, mas toda a gente o trata por Pimpolho. E o Pimpolho jogou no Chaves no ano passado ou lá o que foi. Também há o Ricardo, que joga futsal no Sporting e é bom. Mas ‘Renatos’, não há. Ele é o melhor. E depois sou eu…”

— Está visto que és o melhor a seguir a ele. E quem é o melhor a seguir a ti?

Kevin põe-se a olhar em volta, “este não”, vai mirando de alto a baixo os futebolistas que com ele partilham a rua, “aquele não”, e aponta prontamente para Sandro, pouco mais velho do que ele, com 14 anos, e um rosto de rabino que os óculos, à “rato de biblioteca”, não disfarçam por mais massa que exibam. Tal como Kevin, também ele não é muito de acatar regras. Não as do futebol. “Eu jogava no [Águias da] Musgueira. Mas deixei o clube por causa do treinador, que passava a vida a reclamar comigo e eu não gosto que reclamem comigo por tudo e por nada.” Preferes a rua ao clube, é isso? “Claro. Tu aprendes mais em cinco minutos na rua do que num treino de uma hora. O treino é sempre a mesma coisa: corres, fazes uma peladinha, alongas. Aqui, não. Aqui não há regras. Estás a jogar a tarde toda se for preciso. E é aqui, na rua, que aprendes tudo: a fintar, a rematar, a ter raça. Sobretudo a ter raça. O Renato tem a raça que tem porque começou na rua.”

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Sandro é arisco a treinadores e a clubes. Tudo o que sabe, aprendeu na rua. Sozinho (Créditos: Patrícia Amaral/Observador)

Acabada a conversa com Sandro, este saltou para a estrada, recuperou a bola com a tal “raça” que diz ter, mas foi-se-lhe a raça rapidamente. Intervalo. Não, a mãe não o chamou. Mas, de cada vez que passa um autocarro da Carris, é altura de recolher as balizas e interromper o jogo.

Fred anda a jogar às escondidas porque reprovou e Anderson vai treinar ao Benfica “um destes dias”

Saídos da rua onde Renato Sanches cresceu e ainda vive, o Complexo Desportivo do Alto do Lumiar é logo em frente, com vista privilegiada para o aeroporto. É naquele estádio, novo, de relvado sintético e campo de treinos ao lado, que o Águias da Musgueira e o Alta de Lisboa jogam. A porta está sempre aberta, de dia e de noite, mesmo no verão e quando não há treinos. Assim que o sol começa a baixar e o calor se vai, escuta-se o bater da bola sobre a relva. Os primeiros a chegar, com calções, meias, camisolas e botas, tudo a rigor, são Anderson e Fred. Outros chegarão mais tarde, aos poucos. Na rua, são vizinhos de prédio. No estádio são rivais: Anderson joga no Alta de Lisboa e Fred no Águias da Musgueira.

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Fred (à esquerda) e Anderson (à direita) foram os primeiros a chegar ao relvado secundário do Alto do Lumiar. Nem nas férias conseguem separar-se da “menina” (Créditos: Patrícia Amaral/Observador)

Vieram por causa da bola. Mas a mãe de Fred não sabe. Se soubesse, Fred ficaria com as orelhas a arder do raspanete — afinal, reprovou de ano. Mas a escola pouco importa para ele. Quer ser futebolista. Tem 16 anos, mas treina para isso desde os oito. “Sou ponta-de-lança. Mas às vezes também sou dez. Sou o que o treinador quiser. Mas o que sei fazer melhor é marcar golos – e até dizem que sou bom”, vai atirando, enquanto atira também remates à baliza. Ou melhor, tenta. A direção não é a melhor e a pergunta impõe-se: então, se é “bom”, porque é que ainda está no Águias da Musgueira? “Eu no ano passado fui treinar ao Atlético, que é um clube melhor do que o Águias. E eles gostaram de mim e queriam que assinasse logo. O problema é que os meus pais não deixaram, porque a Tapadinha é muito longe da Musgueira”, garante.

Apesar de terem posições diferentes no relvado, o ídolo de Fred é Renato Sanches. O amigo Renato. “Ele mora mesmo aqui”, aponta Fred, na direção do último prédio da rua. E continua: “Agora está no Euro e não se vê por cá, mas ele está sempre aí connosco. Ainda fiz uns torneios com ele, quando se organizavam torneios no bairro, torneios de rua. E ele já era o melhor de nós todos. Talvez até consiga ser profissional, mas como ele nunca vou ser. Como ele não há ninguém aqui.”

— E ele, é bom?
— Muito!

Fred respondeu de pronto à pergunta sobre as qualidades de Anderson, que se encontrava do outro lado do relvado, a ziguezaguear, veloz, a própria sombra. Fred é baixinho, de crista e gingão. Em Anderson, pelo contrário, tudo é timidez. Mas tudo é, ao mesmo tempo, talento. É franzino, altíssimo, com pernas de “canivete”. A conversar, desvia o olhar para o relvado. Mas quando a bola rola, é de frente, olhos nos olhos, que dribla. Posição? “Extremo.” Claro.

O percurso de Anderson no futebol não é tão precoce quanto o de Fred. Apesar de os dois terem hoje 16 anos, Anderson só começou a jogar na época passada. “Eu queria ter começado a jogar antes, mas, como sou cabo-verdiano, não tinha Cartão de Cidadão e nenhum clube me podia inscrever. Eu podia treinar com o Alta [de Lisboa], mas não podia jogar”, conta. Quando, por fim, isso foi possível, despertou a atenção de um clube maior que o Alta de Lisboa. Bem maior. “De vez em quando há uns miúdos do clube que vão treinar ao Benfica. E eu também vou tentar a minha sorte. Eu trabalho todos os dias para ser profissional de futebol. Mas sei que nem todos conseguem e é preciso ter sorte. Se não conseguir, vou continuar a estudar – eu tenho boas notas –, quem sabe para ser professor de educação física ou treinador. Eu sei que quero continuar ligado ao futebol. É a minha vida”.

O “guarda-redes” a quem a mãe não confiaria uma baliza, mas que tirou a bola a Renato

Anderson e Fred continuaram no Alto do Lumiar a rematar à baliza. Mas não foi preciso dar muitas voltas ao quarteirão para encontrar quem rematasse também àquela hora. A bola era diferente, mais pequena, gasta e de plástico, quase indetetável sobre a relva do jardim — que era mais alta do que ela. Quem a chutava também era mais criança que futebolista.

“Eu sou guarda-redes. Sempre fui guarda-redes. O meu primo, que é mais velho do que eu, é que me treina no quintal da casa da minha avó para ser guarda-redes um dia”, conta repetidamente André, de oito anos. A mãe, sentada à sombra, atira de chofre: “Ele? Ele não joga nada…” Mas André não ouve (ou, se ouve, não se importa) e continua: “O que é que eu quero ser se não for futebolista? Hmmm… quero ser avançado.”

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André esfola-se — literalmente — todo para ser guarda-redes. E até já tirou a bola a Renato Sanches. Mas ninguém o leva muito a sério… (Créditos: Patrícia Amaral/Observador)

André é um tagarela de ideias fixas. “Eu tenho uma fotografia com o Renato [Sanches], sabias? É aquele que é pretinho, do Benfica, com as trancinhas. Ele é o meu ídolo. E houve uma vez que aqui na rua, a jogar com ele, até lhe tirei a bola e tudo”.

– És tão aldrabão, André. Tu nem à minha irmã Iara consegues tirar a bola. – Repreende-o Ricardo, de 14 anos, o mais velho do grupo que joga no jardim.

“Eu daqui a pouco vou inscrever-me no Alta [de Lisboa], para poder começar a jogar lá esta época”, avança depois Ricardo. Mais um futebolista na Musgueira? “Não sei. Eu quero ser futebolista. É o que qualquer miúdo da minha idade quer ser. Mas acho que sou só mais ou menos. Se não der, vou estudar para ser mecânico de motas.”

– Eu gosto mais de bicicletas que de motas… – Intromete-se André, enquanto coloca a o capacete na cabeça.

Entretanto, chega-se Fábio à conversa. “Profissão? Nunca pensei numa profissão. Hoje todos queremos ser como o Renato”, atira, com 10 anos e calções à Benfica. É o ídolo dele, portanto. “O Renato? Não, não, o meu ídolo é o Patrício. Eu também quero ser guarda-redes e até vou para o Águias esta época. E sou do Sporting. Só uso os calções do Benfica porque a minha mãe não me deixa usar os do Sporting. Diz que encolheram na máquina de lavar e que já não me servem”, conta, lamurioso.