Georg Friedrich Handel nasceu na Alemanha, mas passou aí uma pequena parte da sua vida adulta, o que dá alguma razão aos britânicos, que o celebram como um dos seus maiores compositores. Aos 21 anos, em 1706, Handel trocou Hamburgo pela Itália, de onde regressou em Junho de 1710 para ocupar o posto de Kappelmeister do Eleitor de Hannover, mas em Novembro partiu para Londres, com permissão do Eleitor, para apresentar a sua ópera Rinaldo. O bom acolhimento que encontrou em Londres fê-lo demorar-se por lá, só regressando a Hannover em Junho de 1711. Em Novembro desse ano já estava de regresso a Londres, cidade onde decidiu estabelecer-se definitivamente em 1712, sem dar contas ao Eleitor – que, por ironia do destino, subiria ao trono britânico em 1714, como Jorge I.

A recepção vibrante dispensada a Rinaldo poucas vezes se repetiria: o entusiasmo inicial pela opera seria foi esmorecendo, o público londrino opunha resistência aos longos recitativos em italiano e a sustentabilidade financeira dos espectáculos de ópera foi sempre periclitante – e agravou-se quando a companhia de ópera dirigida por Handel, a Royal Academy of Music, teve de enfrentar a competição da Opera of the Nobility, numa rivalidade mutuamente destrutiva, para a qual até a família real britânica foi arrastada.

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Handel, em 1726-28, por Balthasar Denner

No Verão de 1736, a Opera of the Nobility estava a passar por um mau bocado, devido à saída das suas maiores estrelas, o castrato Senesino e a soprano Cuzzoni – dois antigos “desertores” da companhia de Handel –, e do compositor Porpora. Para a temporada de 1736-37, Handel, cuja companhia estava instalada desde 1734 no Teatro de Covent Garden, preparou um programa ambicioso, com oito óperas, três das quais novas: Giustino, Arminio e Berenice. Mesmo recorrendo a alguma pilhagem de obras alheias e à reciclagem de trechos de obras suas, como era usual em Handel, a quantidade de trabalho sobre os seus ombros era colossal – é preciso lembrar que além de compor, tinha de gerir a companhia, ensaiar cantores e músicos e dirigir as récitas.

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O Teatro de Covent Garden em 1808; o teatro seria destruído pelo fogo nesse mesmo ano e seria substituído por um novo edifício, que também arderia em 1856

A tremenda pressão imposta pela temporada de 1736-37 – Arminio foi composta em apenas um mês – acabou por repercutir-se na saúde do compositor: em Abril de 1737 teve um “ataque de paralisia” (um esgotamento nervoso?) que lhe retirou o uso de quatro dedos da mão direita (do braço direito, segundo outra fonte) e que lhe afectou mesmo “o discernimento”. Handel viu-se forçado a interromper a sua rotina infernal e a passar seis semanas nas termas de Aachen, de onde regressou curado dos achaques.

Arminio teve uma carreira inglória: estreou a 12 de Janeiro de 1737 em Covent Garden e só teve mais cinco récitas, a derradeira a 12 de Fevereiro. Nos anos seguintes, Handel não repôs Arminio, embora tenha reutilizado cinco das suas árias nos pasticcios Alessandro Severo (1738) e Giove in Argo (1739). Seguiu-se um olvido de dois séculos, até a ópera ser ressuscitada, numa versão alemã, em 1935; só voltaria a ser ouvida na Grã-Bretanha em 1972.

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Handel, em 1741, por Thomas Hudson

O libreto

Entre as razões para o esquecimento a que Arminio foi condenado poderá estar o libreto. Se os libretos das óperas barrocas não costumam primar pela coerência e pela clareza, o de Arminio é mais inepto e confuso do que é usual. O texto original do florentino Antonio Salvi, datado de 1703, baseia-se nos Anais do historiador romano Tácito e foi influenciado pela tragédia Arminius (1684), por Jean Galbert de Campistron, um protegido de Racine. O libreto de Salvi foi musicado nesse mesmo ano de 1703 por Alessandro Scarlatti e subsequentemente utilizado por Antonio Caldara (1705), Carlo Francesco Pollarolo (1722), Johann Adolph Hasse (1730) e, mais tarde, em 1747, por Baldassare Galuppi – existe também um Arminio por Heinrich Biber, composto para Salzburgo em 1690-92, mas com libreto diverso (possivelmente de Francesco Maria Raffaelini).

A mão anónima que adaptou o libreto de Salvi para Handel, consciente da pouca receptividade dos londrinos a longos recitativos em italiano, cortou 1000 das 1300 linhas de recitativo originais, com sacrifício da compreensibilidade do já de si emaranhado enredo. O adaptador transpôs também algumas falas de umas personagens para outras, sem ter o cuidado de verificar se o texto se adequava às características da personagem, e introduziu acrescentos desajeitados, que levam, por exemplo, a que a personagem Sigismondo solte este lamento: “O padre! O amore! O sangue! O Arminio! O sorte! O Ramise! O sorella! O affetti! O morte!” (percebe-se que a vida não lhe corre a contento).

Só o génio dramático de Handel permitiu criar música que quase faz esquecer as muitas debilidades do libreto.

Um herói do nacionalismo germânico?

Na carreira do cosmopolita Handel, Arminio é a única ópera cujo tema diz respeito ao seu país natal. O libreto de Salvi decorre na Germânia, na época de César Augusto, e tem por personagem central Arminio – a forma italianizada de Arminius, que por sua vez será, provavelmente, a versão latina de Hermann – um líder da tribo germânica dos Queruscos que aniquilou três legiões romanas no ano 9 d.C.

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A batalha da Floresta de Teutoburg ou A batalha de Arminio, desenho do príncipe herdeiro Frederico Guilherme (futuro Frederico Guilherme IV da Prússia), datado de 1813 (tinha o príncipe 18 anos)

Arminio começaria a ser associado ao incipiente nacionalismo germânico no século XV – o erudito Ulrich von Hutten (1488-1523) quis fazer dele “o pai original dos alemães” –, sendo visto como o herói que travou a expansão do Império Romano para Norte, mas só com as Guerras Napoleónicas, que acicataram o sentimento de identidade nacional alemã, é que ganharia proeminência. Arminio inspiraria Heinrich von Kleist a escrever, em 1808, a peça Die Hermannsschlacht (A batalha de Hermann), e seria objecto de um monumento colossal – Hermannsdenkmal – na Floresta de Teutoburg, onde foi travada a batalha entre tribos germânicas e legiões romanas, perto da actual cidade de Detmold, na Renânia-Vestefália.

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Hermann/Arminio quebra as correntes que aprisionam a Alemanha, por Karl Russ, 1818

A primeira pedra foi colocada em 1838, mas a obra, que prefigura o neo-classicismo heróico e abrutalhado do nazismo e do stalinismo e foi erguida graças a donativos provenientes de toda a Alemanha, foi sofrendo vários atrasos e mudanças de planos, de forma que só o entusiasmo nacionalista suscitado pela vitória na Guerra Franco-Prussiana (1870-71) deu um empurrão decisivo ao projecto, que ficou concluído em 1875.

As consequências trágicas da exaltação nacionalista germânica no século XX levaram a que no pós-II Guerra Mundial a Alemanha pareça pouco interessada em lembrar Arminio.

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Monumento evocativo de Arminio na Floresta de Teutoburg. Foto c. 1900

Mas Arminio continua a ser uma inesgotável fonte de inspiração para a ficção, como atesta a edição recente em Portugal, pela TopSeller, de Águias em guerra, de Ben Kane, um romancista histórico cuja especialidade é Roma Antiga. Águias em guerra, publicado em inglês em 2015, é o primeiro romance da série As águias de Roma, cujo assunto é o confronto entre Arminio e as legiões romanas. É o primeiro livro do autor a ser publicado em Portugal, embora Kane seja um autor prolífico e muito popular no mundo anglo-saxónico.

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“Quintílio Varão, devolve-me as minhas legiões!”

Nem o Arminio dos nacionalistas alemães nem o Arminio do libreto de Salvi têm muito a ver com o Arminio histórico dos Anais de Tácito (para simplificar, usa-se neste texto a grafia italiana em vez do alemão Hermann, do latim Arminius ou do português Armínio). Arminio, nascido em 18 ou 17 a.C., era filho de Segimero, um chefe dos Queruscos, e passou a juventude em Roma, na qualidade de refém – uma prática romana que visava assegurar a subserviência dos líderes e reis sob a sua alçada. Arminio e o irmão Flávio não só foram romanizados como serviram no exército romano, tendo Arminio ascendido à ordem equestre (que requeria que se possuísse um património de 400.000 sestércios). Regressou à terra natal em 7 d.C. e parecia ter boas relações com o governador (legatus) romano Públio Quintílio Varão.

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A Floresta de Teutoburg no Outono

Varão não parece ter tido significativa experiência de combate antes de ser nomeado para a Germânia, para lá da repressão decidida e brutal de um revolta na Judeia. Era na altura governador da Síria, cargo que desempenhou entre 7 e 4 a.C da forma assim resumida pelo historiador Veleio, seu contemporâneo: fora “como homem pobre para uma província rica e partira como um homem rico de uma província pobre”. Tentou aplicar a mesma estratégia no novo posto, impondo um tributo regular às tribos germânicas. Foi um dos seus dois graves erros de avaliação: o outro foi considerar os germânicos como um povo inferior – “humanos só na forma e na fala”.

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A batalha de Varão, por Otto Albert Koch, 1909

No Outono de 9 d.C., Arminio, que começara por ter um papel apaziguador nas relações entre romanos e germânicos, terá começado a alimentar ambições mais vastas e tentou tirar partido do descontentamento com a política tributária de Varão. Convenceu este a marchar com as suas legiões – a XVII, XVIII e XIX, apoiadas por três destacamentos de cavalaria e seis coortes de infantaria auxiliar – para reprimir uma revolta sem importância, mas o objectivo foi atrair os romanos para longe das suas bases.

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A vitoriosa investida de Hermann, por Peter Janssen, 1870-73

Arminio escolheu cuidadosamente o local para emboscar os romanos no regresso da sua missão de pacificação e fez com que o terreno fosse preparado de acordo com as suas instruções – pouco antes de chegar ao local previsto, separou-se da coluna de Varão, a pretexto de ir procurar guias. A armadilha, montada perto do que é hoje a colina de Kalkriese (longe do local onde foi erguido o Hermannsdenkmal), revelou-se fatal para os romanos, não só devido à astúcia e cuidado com que fora planeada, mas por Varão se ter revelado um comandante inepto, optando por suicidar-se assim que perdeu o controlo da situação. Todos os soldados e auxiliares das três legiões – num total de 15.000 a 20.000 efectivos – foram mortos ou feitos prisioneiros.

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Kalkriese, Floresta de Teutoburg: Reconstituição, a partir de vestígios arqueológicos, das fortificações improvisadas construídas pelos germânicos no local onde emboscaram as legiões de Varão

As três legiões representavam 1/10 de todo o exército romano e a notícia da sua perda causou estupor e receio em Roma – era a primeira vez que “bárbaros” infligiam uma derrota desta escala a Roma. O trauma foi tal que os números das legiões perdidas nunca mais foram atribuídos e César Augusto passou algum tempo a bater (literalmente) com a cabeça nas portas enquanto gritava “Quintílio Varão, devolve-me as minhas legiões!”.

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A batalha de Teutoburg: Furor Teutonicus, pelo pintor sérvio Paja Jovanović, 1889: reprodução heliográfica do original, cujo paradeiro é desconhecido

Embora Roma tenha concluído, com o desastre da Floresta de Teutoburg, que era demasiado arriscado expandir as fronteiras do império para lá do Reno, Germânico, sobrinho de Tibério, sucessor de Augusto, foi enviado à Germânia em missão punitiva e infligiu duas derrotas a Armínio, o que terá sido facilitado por este ter começado a enfrentar a oposição do sogro, Segeste, e de outros ex-aliados.

Arminio acabaria por envolver-se em conflitos abertos com outros líderes tribais, nomeadamente com Marobóduo, rei dos Marcomanos (a quem tinha enviado a cabeça de Varão, para aliciá-lo a juntar-se-lhe no combate contra os romanos), que acabou por procurar refúgio junto dos romanos. Após várias batalhas e movimentações que redundaram quase sempre em impasses, Arminio acabou por ser assassinado em 21 d.C. por homens da sua tribo que viam com desagrado o seu poder crescente. Embora alguns exaltados patriotas alemães tenham visto nele um mártir da luta pela liberdade e auto-determinação, não há elementos factuais que permitam ver nele mais do que um ambicioso senhor da guerra.

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Túmulos dos que caíram na luta pela liberdade: Túmulo de Arminio, por Caspar David Friedrich, 1812

O Arminio de Salvi

Como era obrigatório na opera seria, a intriga amorosa – e de preferência a intriga amorosa cruzada – sobrepõe-se aos elementos históricos que Salvi reteve de Tácito. Resumidamente, é esta a teia de relações exposta no libreto: Arminio, esposo de Tusnelda, é um príncipe alemão que não aceita render-se ao invasor romano, que conta com o apoio do sogro de Arminio, Segeste. Varo (Varão), o general romano, nutre por Tusnelda uma paixão, imprópria da sua condição de romano e militar, como lhe faz ver Tullio, o seu braço direito.

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Arminio despede-se de Tusnelda, por Johannes Gerts, 1884

Tusnelda está dividida entre o amor pelo marido e o dever filial para com o pai, Segeste, e Sigismondo, irmão de Tusnelda e filho de Segeste, enfrenta dilema análogo, pois está apaixonado por Ramise, irmã de Arminio. Varo, embora represente o invasor e o opressor, até revela nobreza de carácter e poupa Arminio quando o tem à sua mercê e Arminio reconhece as virtudes do adversário quando, estando iminente a sua execução, confia Tusnelda à protecção de Varo, pois sabe que este a ama. O vilão acaba por ser Segeste, que nutre um ódio obsessivo contra o corajoso e indómito Arminio. Sigismondo passa a ópera indeciso, para exaspero de Ramise, que quer que ele a ajude a matar Segeste. Por razões diversas e em ocasiões diferentes, Tusnelda, Sigismondo e Ramise tentam suicidar-se mas são dissuadidos no último instante, o atentado de Ramise contra Segeste também falha e a execução de Arminio é sucessivamente adiada, pelo que a única baixa (fora de cena, como era habitual na opera seria) acaba por ser Varo, que, no final, tomba em batalha contra Arminio. Após a derrota dos romanos, Segeste arrepende-se de todas as malfeitorias e é perdoado pelo magnânimo Arminio – o arrependimento e conversão do vilão no final é a convenção mais difícil de engolir na opera seria.

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A batalha de Hermann, por Friedrich Gunkel, 1864, numa reprodução do original, destruído na II Guerra Mundial

Arminio no século XXI

Arminio estrearia em Itália no ano 2000, pelas mãos do empenhado maestro handeliano Alan Curtis e do seu agrupamento Il Complesso Barocco, seguindo-se, pouco depois, a gravação para a Virgin Veritas (hoje no catálogo Warner).

[“Il fuggir, cara mia vita”, o dueto que abre Arminio, por Geraldine McGreevy, Vivica Genaux, Il Complesso Barocco & Alan Curtis]

Mas a nova versão pela Armonia Atenea, de George Petrou (Decca) que alinha o contratenor Max Emanuel Cenčić (Arminio), a soprano Layla Claire (Tusnelda), o baixo Petros Magoulas (Segeste), o tenor Juan Sancho (Varo), o contratenor Vince Yi (Sigismondo), a mezzosoprano Ruxandra Donose (Ramise) e o contratenor Xavier Sabata (Tullio), é um verdadeiro prodígio.

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A associação entre o croata (radicado na Áustria) Max Emanuel Cenčić (n. 1976, Zagreb) e o grupo grego de instrumentos de época Armonia Atenea, de George Petrou, tem produzido uma sucessão de magníficos discos de ópera barroca (todos na Decca): Alessandro (2012), de Handel, Rokoko (2014), uma colecção de árias de Hasse, Siroe, Re di Persia (2014), de Hasse, The five countertenors (2015), com árias de Galuppi, Gluck, Handel, Hasse, Jommelli, Porpora et al., e Arie napoletane (2015), uma colecção de árias de Leo, Pergolesi, Porpora, Scarlatti e Vinci.

[“Prove sono di grandezza” de Alessandro, de Handel, por Max Emanuel Cenčić, Armonia Atenea & George Petrou, 2014]

https://www.youtube.com/watch?v=thTD0h94G7M

Esta gravação de Arminio atribui cantores aos papéis masculinos e cantoras aos femininos, embora o travestimento – contraltos femininos como heróis masculinos e castrati soprano em papéis femininos – fosse frequente nos palcos barrocos. Hoje, os contratenores, contraltos e mezzosopranos apropriaram-se dos papéis masculinos desempenhados por castrati contralto, mas não é vulgar ter, como aqui, um papel de castrato soprano confiado a um contratenor – é o caso de Vince Yi (Sigismondo), um cantor de timbre assaz agudo e delicado, que assenta bem na personagem indecisa e frágil de Sigismondo. Poderá parecer estranho ao ouvinte de hoje que um papel masculino como o de Sigismondo tenha uma tessitura mais aguda do que a de um papel feminino como o de Ramise, mas as convenções da ópera barroca estavam pouco preocupadas com o realismo.

[Apresentação de Arminio pela Armonia Atenea, com excertos das gravações, em Setembro de 2015, em Atenas]

Os cortes nos recitativos podem ter tornado a intriga menos compreensível, mas fazem a acção mover-se a um ritmo de cortar a respiração, com as árias, todas de admirável invenção, a sucederem-se num ritmo vertiginoso, para o que contribuiu a direcção muito enérgica e precisa de Petrou. A ópera arranca de forma arrebatadora e é preciso chegar à faixa 15 para que surja uma ária de cariz meditativo. Mas nem nas árias mais lentas e rendilhadas a tensão dramática afrouxa – toda a ópera está animada de uma vitalidade irreprimível, o que torna mais desconcertante que seja tão pouco tocada e alvo de apreciações pouco abonatórias (algumas delas emitidas por quem nem sequer ouviu a ópera).

[Excertos da produção de Arminio levada à cena no Festival Internacional Handel de 2016, em Karlsruhe, com a Armonia Atenea, George Petrou e elenco vocal muito próximo do que registou o CD e encenação de Max Emanuel Cenčić]

Max Emanuel Cenčić é um dos maiores contratenores de todos os tempos e a presente gravação confirma-o plenamente – bastará ouvir o virtuosismo arrepiante de “Si, cadrò, ma sorgerá”, uma ária em que, apesar de aprisionado e ameaçado de execução, desafia o traidor Segeste: “Sim, cairei, mas erguer-se-á o remorso eterno a lacerar-te o coração; com tripla goela latirá: uma o meu sangue será, as outras a tua pátria e a tua honra”. A fúria exorbitante das palavras tem equivalente na música e na interpretação. A voz de Cenčić, que no início de carreira tinha um registo agudo e brilhante, é agora mais grave e sólida, sem perda de agilidade e com ganho de expressividade.

Logo a seguir a “Si, cadrò, ma sorgerá”, num jogo de contrastes que Handel sabe explorar habilmente, vem a dolente e suspirante “É vil segno d’un debole amore”, em que Layla Claire dá provas da sua capacidade para injectar emoção intensa no que canta.

[Layla Claire, em excerto das gravações de Arminio pela Armonia Atenea]

Antes de “Si, cadrò, ma sorgerá”, já Ruxandra Donose, uma mezzosoprano de voz escura e espessa e muito homogénea em todo o registo (e infelizmente pouco conhecida nos círculos da música antiga), brilhara em “Sento il cor per ogni lato circondato”, em que exprime admiravelmente a angústia e agitação que tomam conta do coração de Ramise.

Layla Claire volta a ter oportunidade de exibir a sua expressividade requintada em “Rendimi il sposo”, uma tocante súplica pela libertação de Arminio, em que nalguns trechos o baixo contínuo fica silencioso e a música é conduzida apenas pelos violinos, espelhando a fragilidade da posição de Tusnelda – algo de semelhante volta a ocorrer em “Ho veleno, e ferro avanti”, em que Tusnelda se prepara para se suicidar.

[Petros Magoulas, em excerto das gravações de Arminio pela Armonia Atenea]

O baixo Petros Magoulas tem sido um dos pilares das gravações de óperas de Handel por Petrou na editora MDG e ouvindo a sua primeira e assertiva ária, “Fiaccherò quel fiero orgoglio”, percebe-se por que razão Petrou não o dispensa.

Juan Sancho, Xavier Sabata e Vince Yi têm sido presenças recorrentes nas gravações de Petrou para a Decca e não há qualquer razão para mexer numa equipa triunfadora. Vince Yi tem uma ária virtuosística, em disputa com os oboés, em “Quella fiamma, ch’il petto m’acende” e Sancho marcha resolutamente para a batalha, comparando-se a Hércules e acompanhado de trompas e oboés, na marcial “Mira il ciel, e vedrai d’Alcide”. Sabata tem aqui um dos seus melhores desempenhos, no intrigante papel de Tullio, cujas árias celebram, em tom jovial, o derramamento de sangue – ouça-se, por exemplo, “Con quel sangue dipinta vedrai”.

[Xavier Sabata, em excerto das gravações de Arminio pela Armonia Atenea]

Some-se este grupo de cantores em estado de graça e de instrumentistas seguríssimos (mesmo nos tempos mais extremos) um registo de som que concilia pujança e detalhe e obtém-se um argumento irrebatível para resgatar Arminio ao desprezo a que foi injustamente votado durante mais de dois séculos e meio. Resta dar, tardiamente, razão ao poeta e dramaturgo Newburgh Hamilton, um amigo de Handel (para quem escreveu três libretos), que saiu da estreia de Arminio proclamando ter assistido a “um milagre”.