Quando ainda era criança, Sergi Sánchez ouvia frequentemente o avô dizer-lhe: “No tempo do Franco, o único sítio onde se podia falar catalão era no Camp Nou”. O facto de aquela frase lhe ser dita em catalão evidenciava uma coisa: Espanha já vivia em democracia e na Catalunha, ao contrário do que se passou nos tempos do caudillo, já se podia falar a língua da região sem problemas.
Sergi diz que é “independentista desde pequenino” tal como explica que é “do Barça desde pequenino”. Para este catalão, comercial numa empresa de laticínios, não há diferença entre uma coisa e a outra. Por isso, é normal começar a falar de política e logo passar para o futebol a meio da frase. É assim que lhe perguntamos, afinal, porque é que apoia a independência da Catalunha.
“A minha família do lado da minha mãe é da Estremadura, de Badajoz, e a outra metade é da Catalunha, que foi onde eu nasci e vivi toda a minha vida”, começa por explicar, sentado a numa esplanada de um restaurante perto do Largo do Carmo, em Lisboa, horas antes de ir assistir ao jogo do Barcelona na casa do Sporting. “Eu tinha os dois exemplos em casa. E não é que eu não goste de espanhóis, porque não tenho como não gostar da minha família. Mas sempre me senti catalão. Sempre. Pela nossa cultura, pela Senyera [a bandeira catalã], pela nossa língua. E desde pequenino que o meu avô me ensinou os valores do Barça.”
Quando começa a falar de futebol, fala ainda com mais entrega. “Sim, porque não só o Camp Nou era o único sítio onde se podia falar catalão no franquismo, como ainda é um dos poucos estádios para onde uma pessoa pode levar uma Senyera sem arranjar problemas”, diz. Está sentado à mesa com um grupo de amigos que vieram a Portugal ver o jogo contra o Sporting. Estão todos vestidos à Barcelona, são todos catalães, querem todos ser independentes e querem votar “Sim” no referendo para a independência da Catalunha.
A consulta popular está marcada para este domingo, dia 1 de outubro. Porém, nada disto é tão simples quanto a frase anterior pode sugerir. A consulta popular foi convocada unilateralmente após votação no parlamento regional da Catalunha. Como consequência, foi considerado ilegal pelo Tribunal Constitucional e tem sido fortemente condenado pelo Governo de Espanha, liderado por Mariano Rajoy. Por ordem de Madrid, foram enviados guardas de todas as partes do país para a Catalunha, de forma a impedir a realização do referendo de domingo. E além de já ter havido detenções entre 14 pessoas que, dentro do governo regional, preparavam o referendo, as autoridades podem vir a algemar mais políticos catalães. Um deles, é Carles Puigdemont, o presidente do governo regional da Catalunha e o autor moral do referendo.
Més que un club, o Barcelona também faz política
No meio disto tudo, há o FC Barcelona. A 20 de setembro, depois de terem sido detidos políticos catalães por estarem a preparar o referendo, o clube de Lionel Messi emitiu um comunicado que deixou claro de que lado está nesta questão. “O FC Barcelona, fiel ao seu compromisso histórico com a defesa do país, da democracia, da liberdade de expressão e do direito a decidir, condena qualquer ação que possa impedir o pleno exercício de estes direitos”, lê-se. A terminar, lia-se que o clube “continuará a apoiar a vontade da maioria do povo da Catalunha, expressada sempre de forma cívica, pacífica e exemplar”.
— FC Barcelona (@FCBarcelona_es) September 20, 2017
A juntar à direção do clube, a cargo de Ignacio Mestre Juncosa, estão aqueles que já vestiram a camisola blaugrana. Gerard Piqué, capitão do Barcelona, é uma figura assídua nas manifestações pela independência da Catalunha. Também Pep Guardiola, antigo jogador e também ex-treinador do Barcelona, é outra figura de peso a favor da independência. Tudo isto num clube cujo lema (“Més que un club”, em português “Mais do que um clube”) indicia que não é só de desporto que se trata.
Mai havia viscut res semblant! Simplement inoblidable! #Diada2014 pic.twitter.com/sB67mbb652
— Gerard Piqué (@3gerardpique) September 11, 2014
Para Josep, esta era a única medida que a direção do Barça podia tomar. “O Barcelona é o maior símbolo da Catalunha em todo o mundo, tem todo o interesse e também tem toda a obrigação de tomar uma posição destas”, diz este agente imobiliário, também ele “independentista desde pequenino”. “O Barcelona é da Catalunha e a Catalunha quer ser independente”, diz, como quem refere algo óbvio. “Por isso, fizeram o que está certo.”
Josep não andou pela Rua Augusta, na Baixa de Lisboa. Mas, se o tivesse feito, era bem possível que tivesse passado por um homem estátua vestido com uma camisola do Barcelona. Até aqui, estaria tudo do seu agrado. Porém, o homem estátua — que, por ter um telemóvel com uma capa do Benfica, seria provavelmente português — demonstrou algum desconhecimento das sensibilidades que estão aqui em jogo. Isto porque, à frente e também nas costas, tinha duas bandeiras espanholas. A de trás, em vez do escudo real, tinha um touro.
“Esse homem é um burro”, exalta-se Josep. “É completamente ofensivo o que ele está a fazer. É uma ofensa ao povo catalão. Se vier o Madrid, o Valência ou o Sevilha, então ele pode usar a bandeira espanhola. Mas quando vem o Barça não. É um insulto!”, grita. “O Barcelona é da Catalunha, não é de mais ninguém!”
Nem todos os adeptos do Barcelona pensam assim — sobretudo aqueles que não são da Catalunha. Apesar de ter nome português, esta é a primeira vez que José Luis Oliveira, de 62 anos, visitou Lisboa. Para ver o Barça jogar, claro. As voltas da vida de José são estas: nasceu em Chaves, no distrito de Vila Real, onde viveu até aos seis anos; depois, mudou-se com os pais para Benbibre, uma cidade mineira na província espanhola de León. Apesar de estar praticamente no ponto oposto da Catalunha, o Barcelona foi o clube que escolheu.
“Eu sempre fui das equipas dos B. Sou do Barcelona, sou do Benfica e sou do Benbibre”, diz, num português onde mistura o sotaque do norte com a pronúncia espanhola. “Ao Real Madrid, desejo derrotas até nos treinos!”
Apesar de ser sócio do Barcelona, José sublinha que não está ao lado da direção do clube. Porquê? “Porque se metem em assuntos políticos, quando esse não é o trabalho deles. Misturar política com futebol é um problema muito grande, porque depois uma pessoa já não sabe onde é que começa um e onde é que acaba o outro”, diz. “Misturar uma coisa com a outra pode ser muito problemático.”
Ainda assim, José garante que é a favor do referendo. “Sou a favor de todos os referendos, façam todos referendos que quiserem. O Franco já morreu!”, exclama, para depois criticar Mariano Rajoy e a atuação do seu governo ao longo do processo independentista catalão. “O Rajoy é burro, porque antes só havia para aí 30% de pessoas a favor da independência, mas com tudo o que eles andam a fazer é normal que haja mais gente agora a ir atrás do barulho. É o homem mais burro do mundo a seguir ao Trump.”
Antonio Polo também viajou de Espanha para ver o Barcelona, mais propriamente de Cáceres, na Estremadura. É contra este referendo — e não vê com bons olhos a posição do clube. “Porque é que se meteram nisto? Não havia necessidade nenhuma!”, diz, exasperado. “Certamente houve muita pressão lá dentro da Catalunha para que eles fizessem isto.”
Adiós La Liga? E el clasico?
Enquanto a Catalunha é parte de Espanha, o Barcelona joga contra os maiores. Sevilha, Valência, Atletico de Madrid e, claro, Real Madrid. E se a Catalunha se tornar independente? Para Javier Tebas, o presidente da La Liga, a primeira divisão espanhola, a resposta é simples: “O Barça e o Espanyol [o segundo maior clube da Catalunha, com uma tradição política contra a independência, e o maior rival do Barcelona] não poderiam jogar na La Liga se a Catalunha se tornasse independente. Seria assim, porque a Lei do Desporto tem uma cláusula que estabelece que só há um Estado não espanhol que pode jogar na La Liga ou em competições oficiais espanholas, que é Andorra”.
Se a Catalunha se tornar independente, pode muito bem acabar o el clasico contra o Real Madrid, que é sem dúvida um dos jogos que mais audiência têm em todo o mundo e que mais paixões despertam dentro e fora de Espanha. Com a Catalunha independente, o Barcelona passará a jogar contra o Espanyol, o Girona e Reus.
Antonio nem quer imaginar esse dia. “Se o Barcelona sair da La Liga, fico com muita pena. Sinceramente, nem sei o que fazer nesse dia. Nem quero pensar muito nisso”, diz, introspetivo. “Acho que nunca vou perder o sentimento que tenho pelo Barça, mas também é possível que isso seja um corte forte que me leve a distanciar-me. É como um divórcio.”
Para Manolo Martín, um dos companheiros de viagem de Antonio, não só seria um divórcio como seria um divórcio litigioso. “A Catalunha não tem nada que sair de Espanha, nós somos todos o mesmo país!”, diz. “E se a Catalunha sai e o Barcelona deixa de jogar na La Liga, então eu deixo de ser do Barcelona.” Quando diz estas palavras, os amigos olham-no de olhos arregalados, pedindo que volte atrás com aquilo que acaba de dizer. “Não, não, não, também não pode ser assim. Tens ao menos de tentar!”, atira-lhe Antonio. Manolo não acede. E já tem opções de futuro: “Deixo de ser do Barcelona e passo a ser do Deportivo da Coruña, do Valladolid, ou uma coisa assim. Do Real Madrid é que já não, claro”.
Ernest Pujadas, que está sentado à mesa com Sergi e Josep e que também é um catalão independentista, não tem dúvidas: “Se sairmos da La Liga, pois que seja. Tenho ódio à La Liga, é uma instituição fascista. O presidente da La Liga, o Tebas, era da Fuerza Nueva [partido de extrema-direita fundado em 1976 e extinto em 1982]. É uma liga fascista”.
Depois de entrar na política, Ernest dificilmente volta ao desporto. “Eu gosto de jogar contra as melhores equipas”, diz sobre o desporto, para depois contrapor com política. “Mas gosto mais ainda de ter melhores hospitais, melhores escolas, melhor segurança social… Para mim, isso é tudo mais importante que o futebol.”
Se calhar é por isso que, ao mesmo tempo que traz vestida a camisola dos blaugrana na sua versão pró-independência (com riscas amarelas e vermelhas como a Senyera), Ernest carrega nas mãos um rolo de fita cola e um molho de papéis com a frase escrita em inglês: “We vote to be free” — Votamos para sermos livres — seguido da data do referendo, 1/10/2017. Colou-os ao pé da esplanada, colou-os nas paredes do metro do Rossio. Colava um e tirava uma selfie a seguir.
Ernest insiste no seu argumento. “Enquanto houver pessoas a ir tirar comida aos contentores, enquanto houver gente com fome, enquanto houver gente que não tem dinheiro para aquecer a casa durante o inverno, a merda do futebol não interessa a ninguém”, diz.
Ernest refere-se a um dos argumentos centrais pró-independentistas: os catalães pagam mais impostos ao Estado central do que a maioria das regiões de Espanha. Em 2015, embora tenha cerca de 16% da população de Espanha, a Catalunha contribuiu para quase 19% dos impostos nacionais.
Embora conceda que também noutras regiões de Espanha há pessoas a passar mal, Ernest sublinha que nenhuma delas quer sair de Espanha — ou pelo menos tanto quanto a Catalunha. Além disso, garante que a Catalunha e os catalães têm sido alvo de “abusos constantes” por parte de Madrid. “Em vez de perseguirem e maltratarem a galinha dos ovos de ouro, deviam-na ter tratado bem. Se a tivessem tratado com dignidade, então certamente que ela não quereria sair da capoeira”, diz.
Ernest nem sempre foi independentista. “Durante quase toda a minha vida, fui federalista”, garante. “Acreditava numa Espanha federal, onde havia respeito aos povos, com respeito à língua e à cultura de cada um, onde nós podíamos gerir o nosso dinheiro como queríamos. Nós tentámos isso.” Refere-se ao Estatuto da Catalunha, aprovado em 2005 pelo parlamento catalão, onde se lia que aquela região era uma “nação”. O texto passou para as Cortes Gerais, em Madrid, que as aprovaram, mas sob pena de uma redução de muitas das suas ambições, entre as quais a designação de “nação” e a possibilidade de haver um referendo. Mais à frente, em 2010, o Tribunal Constitucional reviu o Estatuto da Catalunha de alto a baixo.
“Nessa altura, deixei logo de ser federalista e tornei-me nacionalista catalão”, conta. “Pensava que dava para fazer as coisas a meio termo, mas naquela altura viu-se logo que não dava. Não dava. Ou ficamos, sabendo que nesse caso passamos o tempo todo a levar porrada, ou saímos.”
Ernest apressa-se a sublinhar: “O que os catalães querem fazer é sair em paz, é arranjar uma maneira pacífica e ordeira de conseguir a sua liberdade”. Depois, a título de exemplo, refere a revolução de 25 de Abril de 1974. “A Revolução dos Cravos funcionou bem em Portugal, mas o que Madrid está a fazer connosco é a impedir que funcione na Catalunha, porque neste momento levaram para lá milhares de guardas, há helicópteros por todo o lado”, queixa-se. “É um estado policial.”
Após referir a Revolução dos Cravos, dizemos-lhe que, o Largo do Carmo, um dos principais símbolos do 25 de Abril, é apenas a um minuto a pé daquela esplanada. Ernest abre muito os olhos e quase parte em direção do largo. Mas, depois, à sua volta, os amigos e outros adeptos que se juntaram começaram a gritar: “Odeio o Espanyol! Odeio o Espanyol! Odeio o Espanyol!”. Na sua forma escrita, o cântico é claro: a referência é ao clube rival do Barcelona na Catalunha. Mas, quando é apenas ouvido, o significado é ambíguo. Além de “Espanyol”, estamos a ouvir “espanhol”. Assim, perguntamos-lhe, afinal, qual dos dois se trata. Ernest ri-se ironicamente e demora a responder. “Até podia dizer que são os dois… Mas hoje falemos só de futebol.”