Reportagem em Londres

A parede já secou do dilúvio da véspera. Já não está quase preta — está só castanha escura. É uma esquina da fachada de Mansion House e, do lado de cá, falamos com Duncan, que está à espera da namorada. Espreitando pela esquina, vê-se a Bolsa, o Banco de Inglaterra e os escritórios dos bancos da City. O rebuliço é visível, mas há menos gente do que o habitual. A namorada de Duncan, que trabalha no setor financeiro, ainda não conseguiu sair para almoço. Só por isso — porque Emma ainda não está presente — é que o jovem nos diz: “Bem, se nos afastarmos um pouco, faz sentido. É um ciclo: as pessoas aproximam-se e durante algum tempo corre bem. Depois deixa de correr tão bem e, então, afastam-se. É quase sempre assim”.

Poucas horas antes, o resultado tinha sido confirmado oficialmente. Michael Gove, um dos arquitetos do Brexit, antecipou um processo tranquilo de “divergência gradual” com os “vizinhos” europeus. Boris Johnson, na mesma conferência de imprensa, disse não querer “pressa” e garantiu que o Reino Unido não deixa de ser europeu — apenas deixará de pertencer à União Europeia. O primeiro-ministro David Cameron tinha pedido a demissão mas, como ironizou um jornalista do Financial Times, essa era só a terceira notícia mais importante deste dia: o dia em que o Reino Unido votou pela separação.

“As pessoas estão, ainda, em choque. Não largam os telemóveis apesar de ser proibido utilizar telemóveis no floor da Bolsa”. Era este o ambiente no interior da Bolsa de Valores, segundo o relato feito ao Observador por um analista alemão a trabalhar para um dos gigantes alemães da City. Um banco que, como nos conta este financeiro durante o almoço, “certamente deixará, em breve, de ter grandes razões para me ter aqui”.

No worries, a casa é arrendada e o carro… Bem, ao carro tenho de ver se consigo trocar o volante de lado”, diz.

Entre 50 mil a 70 mil empregos no setor financeiro de Londres deverão ser eliminados ou deslocados nos próximos 12 meses. “As dispensas vão começar já na próxima semana”, avisou um consultor da City ao portal eFinancialCareers.com. Serão, segundo alguns cálculos, cerca de 2,5 mil milhões de libras em impostos, por ano, que deixam de entrar no Tesouro britânico.

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O Observador não chegou a conhecer Emma, lamentavelmente, e para o final da conversa Duncan já não estava tão tranquilo, talvez influenciado pelo movimento crescente de engravatados com cara de poucos amigos que dobraram a esquina da Mansion House, vindas dos bancos. Menos capaz de “se afastar um pouco” e olhar para a big picture da natureza das sociedades, o engenheiro lamenta: “Isto é terrível. Daqui a 20 anos, o que vai ser disto? Vamos ser uma ilhota no meio do mar?”.

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O Reino Unido não é só Londres. E Londres não é a só a City. A sensação da reportagem do Observador na semana decisiva é que quanto mais se caminhava para o centro icónico de Londres, mais era difícil encontrar votantes no Leave (Sair). Mas uma curta viagem para os bairros a norte, mais pobres, levava à constatação de que havia muito mais apoiantes do Leave e, sobretudo, indecisos.

No dia do voto, pelas 17h, à entrada da estação de Kentish Town, um pouco a norte da pitoresca zona de Camden Town, o Observador cruzou-se com um quarentão que iniciava a sua viagem diária para os subúrbios. Um pouco desconfiado de jornalistas e dos seus “smartphones matreiros” — que o podiam estar a gravar às escondidas — o homem garantia que iria votar, mas não sabia ainda se seria em Leave ou em Remain.

Na semana anterior ao referendo, e talvez prevendo o resultado que se viria a confirmar, o ex-primeiro-ministro Tony Blair dizia que quem estivesse indeciso a esta altura do campeonato, se calhar não deveria votar. Mas o quarentão desconfiado garantia que ia votar, e a conversa posterior faz com que seja provável que tenha votado Out. Uma vitória demasiado larga do Remain não seria boa para ninguém, dizia o homem, que debaixo do braço levava uma cópia do vespertino Evening Standard que trazia na capa a sondagem que dava vantagem ao Ficar nas sondagens.

Uma reviravolta inesperada à medida que os resultados foram contados e, aí está: mais uma vez, as sondagens chutaram ao poste e poderão ter induzido alguma complacência nos eleitores. Mas, contas feitas e primeiros-ministros demitidos, a conversa numa esplanada na City, depois de almoço, já era outra. Na mesa ao lado, fala-se de David Cameron como um “primeiro-ministro que fica na História como tendo dado um enorme tiro no pé”.

Essa não é, contudo, a opinião consensual. Um outro dos três financeiros que tiraram uns minutos para relaxar depois de almoço, o único que não está a fumar, tem uma visão mais contida. Era inevitável, diz o homem: “Mais tarde ou mais cedo, este referendo teria de acontecer”. Talvez seja a “tendência natural das coisas” de que falava o enamorado Duncan, antes de almoço.

Para este homem, o mais velho entre os que estão na esplanada, quem merece críticas é Jeremy Corbyn e os trabalhistas que o colocaram na liderança do partido numa altura em que já se sabia que ia haver um referendo à União Europeia e o histórico do Parlamento inglês poderia não ter muita autoridade, pelas posições que assumiu no passado, para defender a permanência na União Europeia. Foi um dos pontos fracos da campanha do Remain — Jeremy Corbyn — e foi no eleitorado trabalhista que se perdeu o referendo, defende.

Quanto à alta finança, o homem está tranquilo. “Não será nada súbito e, no que diz respeito à regulação, penso que não irá mudar muita coisa — afinal de contas, vamos continuar a pertencer ao G20”, sublinha. Aliviando a discussão com humor, um dos convivas interrompe: “Bem, ao menos isto significa que estes meses a fazer planos de contingência não vão para o lixo”.

A alta finança preparou-se, na medida do possível, para o Brexit. Mas quem não estará bem preparada para o que aí vem é a classe média que ajudou a tirar o Reino Unido da União Europeia. “Foi um choque enorme, mas depois do choque financeiro e económico virá o choque social — e esse vai levar muito tempo a sanar”, afirma David Hayward, outro financeiro que também trabalha na milha quadrada, como é conhecido o centro financeiro de Londres.

O que também preocupa David Hayward é o “clima de divisão” que parece estar a emergir no país. “Isso nunca é bom, quando acontece, esteja onde estiver”. E as divisões aparecem, desde logo, entre as diferentes faixas etárias:

https://twitter.com/mazmhussain/status/746196149816569857

David Hayward diz que “toda a gente tem o direito de votar, não podemos queixar-nos disso”. “Mas vai ser muito duro para os mais jovens, que votaram para Ficar, em comparação com a geração mais velha, que gozaram dos benefícios do mercado único e da pertença à União Europeia e, agora, privaram esta nova geração de beneficiar do mesmo”.

O medo da imigração e do terrorismo e, por outro lado, o funcionamento pouco democrático da União Europeia foram suficientes para combater a inércia do eleitorado, até mesmo com a morte da deputada Jo Cox a fazer parecer, a certa altura, que os nacionalismos tinham passado para segundo plano.

“Penso que não estaria ao nosso alcance promover as mudanças que são necessárias na União Europeia. Portanto, mesmo não sendo eu alguém que queria sair da União Europeia, penso que só mesmo com uma medida drástica como esta se poderia fazer uma mudança”, disse ao Observador um transeunte, perto de Westminster, que votou pelo Leave.

“Vai haver um impacto negativo a curto prazo, mas a longo prazo sairemos mais fortes”, atira.