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Carta ao (já não tão jovem) artista de férias

As férias são o eldorado de todo o artista adiado. Ano após ano, juram aproveitar o tempo para começar a escrever, pintar, compor – e protelam outra vez. Esta carta é para eles. Para nunca mais adiar.

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Vamos lá ver: por cada artista realizado, o mundo tem uns bons cem frustrados. Não há escritor que não tenha essa experiência com os leitores: “Ah, sabe… Eu também escrevia umas coisas…” A literatura parece, com efeito, vir sempre mais do passado; principalmente – ó horror dos horrores – dos ansiosos estados de alma da adolescência. Mas a pintura, por exemplo, surge com frequência vinda precisamente do sentido oposto: tardia, a caminho da reforma, com a serenidade, a paz dos anos, a maturidade que permite a contemplação e que leva muito bom senhor e senhora de meia-idade a frequentar workshops de belas artes e a transformar o antigo quarto dos miúdos em atelier. Entre uma coisa e outra, manifestam-se, dentro do cidadão mais pacato, as vocações mais duvidosas: o piano, a fotografia, a dança de salão, o curso de teatro, o barro, a costura, até a culinária, a performance, a instalação, a realização, o guionismo. O impulso para a arte lateja dentro de cada um de nós – e assim é que é bonito.

O problema, portanto, é a concretização. Só isso separa o artista do público. No teatro, por exemplo, quantas vezes aquele receio do espectador de que a peça seja “interactiva”, de que o venham buscar para o palco, não é apenas o medo de uma confrontação com ele mesmo? Do mergulho e não o da exposição? O medo da ansiedade, de fazer mal, o medo que todo o actor tem, afinal, e simplesmente aprendeu a viver com ele?

Da Vincis adiados

E assim vamos adiando a vida, deixando sempre para “as férias”, essa mítica instância superior onde há tempo para tudo, o dia em que, finalmente, iremos abrir o computador e escrever, desembrulhar os pincéis e estrear a tela, fazer por fim aquelas primeiras lições de piano.

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Pois bem, caro leitor. Aqui estão as férias. Será este ano? Ou vamos deixar, outra vez, para “outra altura”, em que dê “mais jeito”, outra altura pela qual, agora que reparamos nisso, já esperamos há 20 anos, porque entretanto se meteu o Natal e o trabalho e os filhos e a mudança de casa e o cansaço e a preguiça e o avô e a mãe e o pé partido e as obras e o carro e, enfim, foi azar, o que é que se pode dizer? Aconteceu sempre qualquer coisa…

[a propósito disto do tempo que passa sem darmos por ela, há aquela canção dos Pink Floyd:]

Acontece sempre, caro leitor. É isso que as coisas fazem: acontecem. Se não for esta, é aquela. Se não for aquela, é a outra. Mas alguma vai acontecer. E nisto a coisa dá-se, a vida passa.

Estamos de acordo que já chega?

A velha questão da transpiração

“Disciplina” não é, certamente, a primeira palavra que nos ocorre quando pensamos em artistas, mas é, sem dúvida, a mais usada nos cursos de formação para qualquer arte. E a razão é simples: não se pode aconselhar alguém a ter talento.

Lembra-se daquela velha frase que diz que a criação é 1% inspiração e 99% transpiração? Percebemos o ponto, mas gostamos mais de outra: “não sei se a inspiração existe, mas, se existir, vai-me encontrar a trabalhar”. Pablo Picasso dixit, mais ou menos por estas palavras, e está por vir quem diga melhor, porque o génio de Picasso era tal que, se não lhe tivesse dado para os pincéis, teria sido igualmente brilhante com as palavras.

A humanidade precisa, de resto, muito mais de padeiros do que de artistas. Mas, se esse impulso para a criação, essa vontade da arte, essa angústia de sentir que ainda não foi dito o que queremos dizer, de traduzir o mundo como o entendemos, se essa vocação atravessou, aqui dentro, todos estes anos connosco, como o passageiro que ainda acredita que este comboio, um dia, chegará ao seu destino, então temos de lhe dar uma oportunidade.

A questão é: não espere pela vontade. Não há coisa mais indomável no mundo. A vontade é coisinha que vai e vem e simplesmente não aparece, se lhe apetecer. Aquilo de que precisamos é querer, que é outra coisa, uma coisa racional. Querer não é apetecer. Eu quero escrever, eu quero pintar, eu quero tocar; logo, eu escrevo, pinto, toco. Mesmo que, naquele dia, não apeteça. Mesmo que saia mal. Dou o primeiro passo. Arranjo o tempo. Suspendo a auto-crítica.

Tudo isto é racional. Amanhã, já serei melhor – e sentir-me-ei melhor, porque finalmente comecei.

As férias grandes

As férias oferecem-se como oportunidade para o arranque de uma brilhante carreira artística pelo tempo que alardeiam ter. Compreende-se, mas urge recalibrar. As férias já não são as “férias grandes”. Todos nós que viemos de gerações que já não precisaram de ir trabalhar para a terra quando não havia escola assimilámos a ideia mítica de todo um trimestre de Verão. Sopas e descanso. Baldinhos de água e areia. Chapinhar e sorvetes. Abanicos e refresco. Guloseimas e bem-bom. Sestas, sonecas, mergulhos, cornetos, calippos, desenhos e chinfrim.

[esta também cai bem, na verdade não há melhor:]

Pois bem: dizem as últimas notícias que o máximo que um adulto consegue tirar em média são duas semanas de férias seguidas, o que equivale exactamente a um glorioso sexto desse tempo majestático dos intermináveis Verões da infância. Aqueles em que partíamos e dizíamos até para o ano. Que eram quase como uma segunda vida que deixávamos congelada e a que podíamos voltar no ano seguinte, na esperança de que a Isaurinha ainda se lembrasse das nossas bochechas sardentas. E ainda lhes achasse graça.

E há outra notícia terrível: agora, temos muito mais coisas para fazer – até porque, na altura, a nossa maior obrigação consistia em garantir que estávamos à hora certa em frente à televisão para ver o “Conan, o Rapaz do Futuro”. Ou seja, a equação é a seguinte: um sexto do tempo e 120 tarefas diárias onde antes havia zero. É impossível? Não é. É preciso é ter noção e aproveitar muito, muito bem o tempo disponível. Se é este ano que vamos começar a escrever aquele romance ou a pintar aquele primeiro quadro, então vamos começar logo no primeiro dia. Sim. Isso. Nem ai nem ui. É hoje.

Os convites para jantar

Outro obstáculo que um adulto tem de enfrentar no caminho para a realização artística é a seriedade com que encara a sua arte. Se for o primeiro a desvalorizá-la, nada – absolutamente nada – nunca – absolutamente nunca – acontecerá. As horas que guardarmos para escrever ou pintar ou praticar com aquele instrumento são tão importantes como as que dedicamos ao trabalho ou à família (foi exactamente isso que quisemos dizer e repetimo-lo as vezes que forem precisas). O facto de não termos um patrão ou cônjuge (passe o pleonasmo) à espera não pode mudar o que quer que seja; é fundamental que sejamos nós os patrões de nós mesmos, aguardando a entrega do trabalho bem feito, a tempo e horas. É a consciência à espera do intelecto – ou torturá-lo-á sem piedade, como tem feito todos estes anos de procrastinação.

Não há mal nenhum em começar tarde; desde que se comece. Os anglo-saxónicos até têm um nome para os criadores que se revelam tarde: são os “late bloomers”, as flores tardias, de que Saramago é, entre nós, tão perfeito exemplo.

Determine um tempo e um espaço para trabalhar na sua arte e não deixe que nada nem ninguém se meta no caminho. Nem o miúdo birrento, nem a necessidade de última hora do supermercado, muito menos os convites para jantar (quem diz jantar diz almoço, lanche, brunch, passeio, piquenique, barbecue, chá, copo, café, fim-de-semana, cartada, jogatana, voltinha de barco, paintball e afim).

O artista tem de recusar, pelo menos, alguns convites para sair. Ou nunca será mais do que um chato encantador.

Acima de tudo, a fé

Ninguém tem de ser artista. Um artista, pelo simples facto de o ser, não é melhor nem pior do que qualquer outro ser humano. A humanidade precisa, de resto, muito mais de padeiros do que de artistas. Mas, se esse impulso para a criação, essa vontade da arte, essa angústia de sentir que ainda não foi dito o que queremos dizer, de traduzir o mundo como o entendemos, se essa vocação atravessou, aqui dentro, todos estes anos connosco, como o passageiro que ainda acredita que este comboio, um dia, chegará ao seu destino, então temos de lhe dar uma oportunidade. O verdadeiro escritor sabe que o é muito antes de ter um livro exposto nas estantes. Um pianista pode passar anos sem um piano. O escultor continuará a descobrir o que está já escondido na pedra, muito antes de lhe tocar com as mãos.

Por mais anos que se tenha deixado por concretizar, o verdadeiro artista (com a tua licença, Serafim Saudade) sabe quem é, o que é e a obrigação que tem a cumprir, os deuses a que tem de responder. Não importa o que outros possam dizer. Que é tarde, que não tem tempo, que já não tem idade, que já o devia ter feito, que já está tudo dito. O verdadeiro escritor tem uma fé mística na sua missão, como dizia Cioran. “É preciso crer, como São Pedro, que se vai mesmo andar sobre as águas”, acrescentava Sviatoslav, “ou afogar-nos-emos de seguida”.

[ora cá está ela:]

Se não acreditamos que somos, não vale a pena. É calçar as havaianas e pedir outro daiquiri com muito gelo e nenhum sentimento de culpa. Mas, se acreditamos, é porque somos. E, portanto, é favor ser. Agora.

“Late blooming”

Não há mal nenhum em começar tarde; desde que se comece. É verdade que, a maioria das vezes, as vocações se revelam muito cedo – estamos todos a pensar no minúsculo Mozart a tocar para salões cheios quando nós ainda nem sabíamos fazer bolinhas de sabão ou em Rimbaud, que já estava a parar de escrever quando a maioria de nós ainda nem tinha idade para ter o próprio nome na conta da água – mas a arte, ao contrário do desporto, não tem limite de idade. Os anglo-saxónicos até têm um nome para os criadores que se revelam tarde: são os “late bloomers”, as flores tardias, de que Saramago é, entre nós, tão perfeito exemplo.

Que seja agora, pois. A juventude tem uma vantagem, que é o atrevimento – a ignorância, a inconsciência. Com o juízo vem também uma vergonha que nos constrange, a consciência do valor dos outros e do nosso. O mundo não está à espera do que temos para dizer. Viveu até aqui sem a nossa arte e, se não a chegarmos a realizar, seguirá sem ela sem qualquer problema. Mas também teria seguido sem Picasso, sem Van Gogh, sem Pessoa, sem Yourcenar, sem Dostoievski, sem Beethoven. É triste dizê-lo, mas não se pode sequer garantir que seria sequer um lugar pior. A arte não é necessidade nem moral, não é o bem nem o mal, não acontece por dever ou não dever ser. É a resposta a um ímpeto da consciência, e na melhor das hipóteses há-de comover outras consciências. Importa, portanto, sacudir a pressão. Ninguém está à nossa espera; este é um assunto estritamente nosso. “Escrevo com a seriedade de uma criança que brinca”, declarava Borges. Não ponhamos mais peso no assunto do que isso.

Por todo o acima exposto, é certo que destes quinze dias não sairá um romance completo nem uma ópera. Mas, se sair ao menos um capítulo, já teremos o princípio, o gérmen, a raiz. E essa é, como sabemos, o início de toda a criação. O importante, se nos permite uma última paráfrase, é nunca parar sem ter a certeza de como se vai continuar no dia seguinte. Um conselho muito prático de Ernest Hemingway, que era, além de tudo o mais, um excelente exemplo de como viver não tem de atrapalhar a arte nem a arte empatar a vida.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal)

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