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Milton Cappelletti

Milton Cappelletti

Casa, filhos, separa, volta a casar, mais filhos. O puzzle das famílias não tem fim

O pai e a mãe nem sempre ficam juntos até morrer. Ele casa de novo e tem outros filhos. Ela igual. As mudanças obrigam à logística e, no Natal, é preciso chegar a todo o lado. Que comece a corrida.

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Filhos, pai, mãe e restantes membros da família. Todos juntos desde sempre e para sempre, até que a morte os separe. Ou um divórcio, ou um novo casamento, ou outros filhos, ou a mudança de cidade ou até país. As alternativas multiplicam-se e é no Natal que as famílias se reúnem. Sejam como forem. Eis quatro histórias, quatro famílias diferentes, múltiplos Natais.

“Os meus, os teus e os nossos”

Um homem casou-se, teve um filho, mas a relação chegou ao fim. Entretanto, algures por aí, uma mulher casava-se, tinha um filho e a relação chegava ao fim. Esse homem e essa mulher encontraram-se, apaixonaram-se, casaram e tiveram uma filha. Hoje, dois é igual a cinco.

Salvador da Cunha faz parte da tendência “os meus, os teus e os nossos”. O gestor de 49 anos é casado pela segunda vez há 14 anos. É filho de pais separados, por isso já cresceu a saber que as coisas nem sempre correm bem. O pai teve depois outro filho com a madrasta, e aí soube que se podia ter várias famílias na mesma.

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O Natal é o momento em que a logística tem de estar bem oleada para que todos se cruzem. “Os miúdos não estão desenraizados de uma família, eles estão enraizados em três. Não estamos a pecar por defeito, estamos a pecar por excesso”, destaca. “Primeiro, temos um Natal com o meu pai e com os meus tios todos em casa dos meus avós que já morreram. Depois tenho um Natal em casa dos meus avós do lado da minha mãe, eles e a minha mãe já morreram, com os tios todos. Primos de um lado e primos do outro. São mais de 100 pessoas em cada lado. Isto tem que ser coordenado com o Natal do meu enteado em casa do pai dele e do meu filho em casa da mãe dele”.

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A família de Salvador da Cunha. (Ilustração de Milton Cappelletti)

Tudo acontece relativamente perto, entre Caxias, Cascais e Estoril. “O meu filho passa a noite de 24 com a mãe. O meu enteado passa a manhã de 25 e almoça com o pai. Depois temos o almoço em casa da minha sogra e à tarde vamos para casa dos meus avós onde está a família do lado da minha mãe”. O esquema está montado para que os filhos “não percam nada” até porque o hábito normaliza as situações. “Já passaram 14 anos. Eles estão habituados a isto porque viveram isto a vida toda”.

No Natal com o pai de Salvador cruzam-se três gerações: “a primeira que está nos sessenta, setenta anos, a segunda geração entre os trinta e os cinquenta anos e a terceira geração dos nossos filhos, desde os mais velhos com 20 anos até crianças que acabaram de nascer. É a oportunidade de nos vermos todos uma vez por ano”, confessa. Até porque há gente que vem de todo o lado: desde primos de Inglaterra, Austrália, um irmão do Luxemburgo, outros chegam da República Dominicana e de Moçambique.

Mas é preciso alimentar o reencontro e aí impera a organização — nada que a tecnologia não resolva. “Hoje em dia utilizamos o WhatsApp para coordenar quem é que leva o quê para o jantar: quem é que leva o bacalhau, quem leva a carne assada, quem leva os doces, quem leva as bebidas. O meu pai com 76 anos também usa WhatsApp e adora”, aponta Salvador. No fundo, a ferramenta é usada ao longo de todo o ano. “Utilizamos para as conversas de família, para partilhar fotografias e para vermos os filhos uns dos outros”, acrescenta.

Se há altura má para um divórcio, é perto do Natal

24 de dezembro de 2014. Tinham passado semanas da separação do agora ex-marido. O Natal custou mais por ser perto da separação e a separação custou mais por ser perto do Natal. “Esse sim, foi duro. Foi muito angustiante porque separei-me em novembro. Foi um grande baque. Por uma questão de higiene mental, decidi passar o Natal só com os meus pais e com as minhas filhas e já não ter contacto com os meus ex-sogros. Agora já passou um ano mas na altura não foi fácil”, conta Rita Monteiro, 40 anos.

Do Natal do ano passado ficam obrigatoriamente memórias até porque o Ano Novo trouxe mesmo mudanças: novo estado civil, nova casa. Mas primeiro houve que deixar a antiga. “Lembro-me de pensar que estava naquela casa e que ia deixar de ser a minha casa, que estava a viver com uma pessoa com quem ia deixar de viver, que ia mudar de casa, que as rotinas iam mudar todas.”

E mudaram. Passou um ano depois de cinco de casamento, do qual resultou uma filha, hoje com quatro. Já antes o número repetia-se: Rita casou-se e a união durou igualmente cinco anos. Desse primeiro casamento resultou outra menina. Resultado final: “tenho duas filhas, cada uma de pai diferente e estou divorciada”. Quando as duas filhas nasceram cada uma já tinha um irmão, fruto de relações anteriores dos pais.

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A família de Rita Monteiro. (Ilustração de Milton Cappelletti)

Rita está “solteirérrima” mas os ex-maridos não. O primeiro casou de novo, o segundo tem uma companheira. A mulher do segundo marido tem uma filha de uma relação anterior. As ramificações não param de crescer.

O Natal é sinónimo de trânsito entre as famílias todas. É “um pico de atividade” no ano, como lhe chama Rita. “As miúdas têm de estar no centro de tudo, têm de ter contacto com as famílias todas, do lado do pai e da mãe. Não me angustia porque sei que elas estão bem, não há aquelas situações de uns não falarem uns com os outros ou mal-estar. As miúdas estão bem”.

A minha filha mais velha, com 10 anos, tem mais noção das coisas. Há uns meses íamos no carro e estava a dar um programa na rádio sobre famílias modernas. Ela às tantas diz: ‘Uh uh, família moderna, se eles soubessem a nossa! A nossa é que é mesmo moderna’ (risos).”

“Na noite de Natal, as meninas estão com cada um dos pais. Eu levo a minha mãe e vamos celebrar a noite com o meu irmão e com a família da minha cunhada na zona oeste. No dia de Natal, as meninas ficam comigo e juntamo-nos todos em minha casa: eu, as minhas filhas, o meu irmão e a minha cunhada, a minha mãe e vamos buscar o meu pai ao lar. Apesar de ter uma família moderna, chamemos-lhe assim, gosto de ter os meus à volta”, explica Rita.

Aqui, o tradicional não entra. Nem na solução mais usada por pais separados para dividir o tempo – a típica semana pai, semana mãe. “É mais complexo. É metade da semana. A ideia é que elas nunca estejam mais de 3 dias sem ver o pai ou a mãe. A guarda é partilhada e eu achei que estar uma semana sem ter contacto com as miúdas, não era bom para elas nem para mim”.

Antes do franzir de testa dos outros, Rita garante: “Funciona bem assim. Há muita gente que questiona a parte logística para elas, mas a parte logística fica é para os pais: é carregar as malas de um lado para o outro, porque elas têm dois quartos, e isto obriga a um grande controlo dos materiais. Por exemplo, hoje têm ginástica, é preciso levar as coisas de uma casa para a outra, ter atenção ao equipamento escolar, a medicamentos, etc”.

"Quantos mais anos passam, mais organizada a coisa fica, porque menos ressentimentos existem em relação ao passado". 
Salvador da Cunha

“Dividir o tempo, tal como o Natal, passa a ser normal”

Quando se tem 7 anos, já se sabe ler, escrever e contar. Mas ainda não se percebe nada de relações. “Tinha 7 anos quando os meus pais se separaram. Na altura foi muito complicado porque não se entende muito bem o porquê. É suposto os pais ficarem juntos para sempre”, recorda Joana Barros, hoje com 22 anos. “Depois uma pessoa cresce e vai percebendo as coisas”.

Primeiro “as coisas” ficam arrumadas na cabeça e depois a vida adapta-se à nova situação. Já lá vão 15 anos. “Dividir o tempo passa a ser normal. Nos primeiros anos mudou muito mas depois passa a fazer parte da vida”. No final do ano lá está o Natal e, aí, é um dia para cada um.

O dia 24 é passado com a mãe e o dia 25 é com o pai em casa dos avós paternos. O pai tem outra relação da qual já resultaram dois filhos, com 11 e 13 anos. A família grande deu lugar a um grupo mais reduzido de cada lado e cada Natal é diferente. “Já passei com a minha mãe, tios-avós e com o namorado da mãe. Já passámos no Porto e em Lisboa”, recorda. Este ano, por exemplo, o dia 24 será em Lisboa com a mãe, a melhor amiga da mãe que também está separada e “talvez com os filhos dela”. No dia 25 de manhã segue para o Porto para estar com o pai.

"Já não sei o que é uma família tradicional. Na turma do meu enteado, que tem 15 anos, metade dos miúdos tem pais separados. Hoje em dia já é algo comum."
Salvador da Cunha

Estamos separados. Mas não imagino o Natal sem ele

Se lhe perguntarem, Clara Fernandes diz que está separada. Esta é a história: casou-se aos 23 anos e separou-se aos 33. Depois reconciliou-se com o marido e voltaram a separaram-se quando tinha 41 anos. Hoje tem 51 anos. “Hoje em dia acho que fui imatura das duas vezes em que me separei”, confessa. “Mas também ninguém me disse como é que (o amor) funcionava”.

Da relação resultaram dois filhos, um menino e uma menina. A separação aconteceu, mas quase ninguém deu por ela. Clara e José continuaram a passar o Natal juntos e não houve pausa nos presentes natalícios e de aniversário. São os melhores amigos e Clara “não imagina a vida” sem ele. Aliás, a separação nunca chegou ao papel. O que está escrito é que Clara e José estão casados.

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(Ilustração de Milton Cappelletti)

“Sempre passámos o Natal juntos. Para mim era impensável passar o Natal sem os meus filhos e a minha mãe sempre gostou imenso do José. Ela morreu há dois anos. Não houve um único Natal que eu passasse sem ele. E agora já é tão triste passar o Natal sem a minha mãe…”.

O Natal é em casa dele com a família toda junta: “a dele e a minha, os meus sogros, etc”. Na verdade, o pormenor mais extraordinário do Natal desta família está no filho. Paulo está no 4º ano do Seminário. “Nós já éramos católicos mas temos feito um caminho espiritual muito maior. Está a ser muito enriquecedor para os quatro”, conta Clara.

Este ano, o plano passa por jantar cedo e ir à missa a seguir. No dia 25 estarão todos juntos de novo. ” Não é por obrigação, é porque para nós faz sentido assim. Natal significa estar com a minha família”. E está tudo igual desde o início. “Ele passa a noite de 23 para 24 a fazer os doces. Eu faço o bacalhau.”

E quando os casamentos falham, o que é que fica?

O cliché está lá mas nas palavras de Salvador, o gestor com múltiplas famílias, resulta mesmo. “Quantos mais anos passam, mais organizada a coisa fica, porque menos ressentimentos existem em relação ao passado. As pessoas vão aceitando as coisas. O tempo de facto consegue resolver muitas situações e isso é muito bom para os miúdos porque eles sentem que não há animosidades”.

Enquanto a dor e a desilusão vão e voltam, a vida continua e é preciso organizar o futuro de acordo com o passado. “Nós sempre tentámos coordenar-nos para que os nossos filhos não perdessem nada. Nem o meu filho mais velho perde nada nem o filho da minha mulher”. Já são 14 anos e os miúdos “estão habituados porque viveram isto a vida toda”, destaca Salvador.

"A família é aquilo que a gente quiser que seja. Sempre que me casei achei que era até ao final dos meus dias e continuo a acreditar no amor. Mas pronto, enquanto dura. A vida é assim."
Rita Monteiro

Aliás, a gestão entre casas acontece durante todo o ano. “Isto acontece também nas férias grandes e nas férias da Páscoa. Temos que ter a vida preparada para isto. Mesmo quando queremos viajar todos em conjunto temos de ter autorizações uns dos outros. O ano passado fomos passar uns dias a Londres e tivemos de ter a autorização do pai do meu enteado. Faz parte”.

Também Clara se habituou à presença do marido que já não o é. Do “amigo especial” e do companheiro que vive noutra casa mas que está sempre lá. “Se calhar há quem ache isto estranho. No outro dia contei isto a uma pessoa do Norte que ficou de cabelos em pé. Eu acho que, se eu sou feliz, se ele também é e se funciona com os nossos filhos, é assim. Não estou a magoar ninguém. Acho que era horrível para os meus filhos passarem a noite de Natal com um, o dia com o outro… Isto para os meus, claro. É bom assim”.

No caso de Rita, prevalece o otimismo no meio da agitação. “No meio destas tempestades todas de percursos pessoais, o Natal acaba por ser aquele momento em que estamos todos juntos e isso é o mais importante. Eu sempre tive casos na família de pessoas muito doentes. Por isso, cada Natal que eu consigo juntar o máximo de pessoas da família à mesa, para mim é uma vitória. É mais um ano que passa e estamos todos juntos”, salienta.

Há benefícios a tirar destas famílias múltiplas?

A ex-mulher de Salvador não voltou a ter filhos, mas o ex-marido da atual mulher tem mais três filhas. “Ou seja, o meu enteado tem mais três irmãs, além da nossa filha”. E há sempre benefícios a retirar destas ramificações. “Os miúdos são espertos e conseguem tirar vantagens desta situação. Se querem alguma coisa de um lado e nós dizemos que não, vão tentar conseguir no outro”, revela, entre risos.

Joana Barros corrobora na primeira pessoa. A incompreensão dos 7, 8 e 9 anos deu lugar à descontração dos 22. E agora é fácil arrancar vantagens dos Natais a multiplicar. “Celebro duas vezes o natal, dois jantares, duplos bolos, tenho sempre tudo a duplicar. Tenho mais uma prenda, porque os meus pais ofereciam-me uma em conjunto, e os meus irmãos também me dão prendas. Mas, principalmente, tenho mais doces de Natal”, destaca, entre risos.

*À excepção de Salvador da Cunha, os nomes dos protagonistas foram alterados a pedido dos próprios.

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