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Cem anos do tal canal

Os Estados Unidos inauguraram o Canal do Panamá há cem anos. Entre 1914 e 2014, muita coisa aconteceu.

Engenharia visionária, ambição desmedida, acordos e tratados, negociações, protestos e mortes em nome do orgulho ferido, a luta pela independência. Esta história tem de tudo. Até um ex-candidato presidencial norte-americano nascido na zona do canal. Os Estados Unidos concluíram a construção do Canal do Panamá há exatamente 100 anos, no dia 15 de agosto de 1914 e vale a pena conhecer as aventuras e desventuras dos protagonistas.

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Já na segunda metade do século XIX, os Estados Unidos haviam decidido que teriam de construir um canal que “rasgasse” a meio a zona mais central do continente americano para escoar e transportar mais rapidamente as suas mercadorias. Em cima da mesa estavam três hipóteses: Tehuantepec (México), Nicarágua e Panamá. O último era o menos provável para ganhar a corrida. Num acordo com a Grã-Bretanha — Clayton-Bulwer Treaty –, os EUA optaram por Nicarágua, projeto esse que acabaria por não ter andamento.

Os franceses tinham aspirações semelhantes e começaram a construir o Canal do Panamá, liderados por Ferdinand de Lesseps, o obreiro do Canal do Suez, no Egipto. O projeto gaulês começou com escavações em 1880, mas duraria apenas nove anos. Porquê? Lesseps idealizou que teria um canal ao nível do mar, o mesmo que havia feito no Canal do Suez, em vez das eclusas, um sistema hidráulico que permite às embarcações subirem ou descerem os rios ou mares em locais onde há desníveis, o que acabaria por ser usado. A outra razão do fracasso foi a “Lenda Negra”, um surto de febre amarela e malária, que terá roubado a vida a mais de dez mil trabalhadores.

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Depois de hesitações várias, o Senado norte-americano votou, a 19 de junho de 1902, que o palco da obra megalómana seria o Panamá, dando assim continuidade ao que os franceses começaram. Essa zona pertencia na altura à Colômbia, país com quem os norte-americanos chegaram a acordo para construir o canal. As negociações foram conduzidas pelo secretário de Estado John Hay e por Tomás Herrán, o ministro dos Negócios Estrangeiros colombiano. O processo teve um stop quando começaram as divergências sobre as contrapartidas financeiras. Os senhores da terra do Tio Sam seriam implacáveis.

Theodore Roosevelt, o então presidente dos EUA, ordenaria a mobilização de navios de guerra para a Cidade do Panamá (Oceano Pacífico) e Colón (Altântico) para apoiar a luta pela independência dos panamianos, que acabaria por chegar a 3 de novembro de 1903. A República do Panamá nomearia então Philippe Bunau-Varilla, um engenheiro francês que já havia trabalhado com Lesseps no início da obra do canal, para ministro. Já no novo papel, assinaria um acordo com os EUA — Hay-Bunau-Varilla –, em 1903, concedendo aos norte-americanos uma faixa de terreno junto ao canal, ficando com o controlo do mesmo para sempre, em troco de mais de sete milhões de euros e uma anuidade de quase 190 mil euros. A independência do Panamá estaria também assegurada com o novo acordo.

A obra do canal duraria dez anos, entre 1904 e 1914. Os custos terão andado à volta dos 300 milhões de euros, o que parece um sem fim de dinheiro para um evento com 100 anos vida. Vários relatos mencionam que por lá trabalharam mais de 50 mil pessoas, na sua maioria caribenhos, mas também italianos, chineses, gregos e espanhóis. Cerca de 5.600 trabalhadores terão morrido por acidentes de trabalho, malária e febre amarela.

OS “ZONIANS”, A SEGREGAÇÃO E O “DIA DOS MÁRTIRES”

Os locais começariam gradualmente a desenvolver uma certa aversão aos norte-americanos, fruto, essencialmente, da segregação que se observaria. Os norte-americanos não se preocuparam em incluir e integrar os panamianos nesta equação. Pelo contrário: fecharam-se. A Zona do Canal do Panamá funcionava como um país dentro de outro, onde norte-americanos que construíam e tratavam da manutenção do canal viviam em boas condições, como que numa bolha, alheados da realidade. A área estendia-se por quase 900 metros quadrados. Os novos habitantes chamavam-se “zonians”, nome esse que provém de zone (zona) — ou seja, “zonistas”, se quiserem.

Os “zonians” gozavam de diversos benefícios — subsídios para habitação, alargado tempo de férias e um staff atento e cuidadoso ao seu dispor, por exemplo. Juntavam o melhor de dois mundos: uma vida tranquila num clima agradável com uma aproximação ao que estavam habituados– casa do estilo americana, educação igual à do país natal e, claro está, as regalias inerentes à cidadania norte-americana. Os cinemas com filmes americanos e mercados com produtos com cheirinho a saudade também não faltavam. Era como estar em casa.

"Eu nasci no mesmo hospital que John McCain, mas ele saiu americano e eu saí panamiana"
Yvette Modestin

“Era uma espécie de lugar artificial estranho”, disse à BBC Michael Donoghue, o autor do livro “Borderland on the Isthmus: Race, Culture, and the Struggle for the Canal Zone”. O seu pai atravessou aquele lugar durante a Segunda Guerra Mundial e comparou-o com uma “cidade do sul [dos EUA] transplantada para o meio da América Central”. O número de americanos na Zona dependia de se estavam, ou não, perante um conflito armado. Durante a guerra da Coreia (1950-1953), por exemplo, foram 100 mil os americanos que por lá viveram. Em tempos de paz, os números caíam para metade.

Mas nem tudo seria um mar de rosas. A segregação começou a falar mais alto. As diferenças. A superioridade. Havia locais destinados para os americanos, onde se viam placas a dizer “gold” (ouro) e outras para os caribenhos e demais, que diziam “silver” (prata). Também por altura da construção do caminho de ferro do Panamá se registaram diferenças significativas no que tocava a salários. O sentimento anti-americano ganhava terreno.

“Eu nasci no mesmo hospital que John McCain, mas ele saiu americano e eu saí panamiana”, contou Yvette Modestin à BBC. O ex-candidato presidencial norte-americano nasceu na Zona e por lá viveu nos primeiros cinco anos de vida. O pai de McCain era um almirante da Marinha. “Eu vi enfermeiras negras, médicos negros, bombeiros negros, professores negros, por isso percebi que poderia ser todas aquelas coisas. (…) Nós sabíamos que não tínhamos o que a comunidade branca tinha, mas não o queríamos”, disse Modestin.

A desagregação nas escolas chegaria apenas nos anos 70, empurrada pela força da Declaração dos Direitos Humanos. Por isso e pelas imagens na televisão que gritavam contra a segregação e atos de racismo. Mas antes, em 1964, um episódio ajudaria a mudar o destino desta história. Tudo aconteceu por causa de uma bandeira. E do orgulho ferido, pois claro. Ver apenas a bandeira norte-americana a esvoaçar nos céus da Zona, em pleno Panamá, intrigava os locais. Antes do assassinato (1963), John F. Kennedy havia aceite colocar a bandeira panamiana junto da americana, mas tal medida nunca seria aprovada.

O clima de tensão entre os países ficou insuportável, culminando num corte nas relações diplomáticas.

O que levou ao “Dia dos Mártires”, em 9 de janeiro de 1964. Um grupo de estudantes, alegadamente apoiados pelos seus professores de esquerda, quiseram erguer bem alto a bandeira da sua escola na secundária de Balboa, juntamente com a norte-americana. Registou-se alguma violência, mas nada de especial. Até que alguém rasgou a bandeira dos aventureiros estudantes. A notícia espalhou-se rapidamente, incluindo nas rádios, o que levou à mobilização de uma multidão imensa para junto da fronteira entre a Cidade do Panamá e a Zona, que se chamava, curiosamente, Fourth of July Avenue — Avenida 4 de julho, data essa associada ao Dia da Independência dos Estados Unidos.

Pedras e cocktails molotov foram lançados por parte dos locais, a que a polícia da Zona respondeu com tiros sobre o povo panamiano. Os protestos alastraram-se a várias cidades do país. Os atos de vandalismo tinham destino marcado: instituições e negócios com carimbo norte-americano. Até plantações foram destruídas. Resultado: entre 23 e 27 panamianos perderam a vida; quatro soldados americanos idem. Os feridos eram às centenas. O clima de tensão entre os países ficou insuportável, culminando num corte nas relações diplomáticas. As relações acabariam por ser reatadas e, em 1977, um novo acordo seria selado (Torrijos–Carter Treaty): o canal passaria para as mãos do Panamá a 1 de janeiro de 2000. E assim foi.

ESTA VIDA DE MARINHEIRO

“Fiz a travessia do Canal do Panamá em 1992, nos dois sentidos”, começou por contar Pedro Proença Mendes ao Observador. O ex-comandante do navio-escola Sagres explicou que há muita burocracia a tratar anteriormente e que o navio é inspecionado de uma ponta à outra. O tempo de espera, esse, poderia prolongar-se até dois dias. Mas o que mais intrigou o ex-comandante foi a forma como os operadores do canal trataram do Sagres.

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“Era uma fase de transição, já havia muitos panamianos. A arrogância dos pilotos foi o que mais me surpreendeu. A falta de sensibilidade. O Sagres não podia ser tratado como um navio de mercadorias. Não podia ser tudo à bruta. O Sagres era frágil. Fomos nós a governar e a pilotar o navio. Correu tudo bem”, contou. A travessia durou oito, nove horas.

E a paisagem? “Era rodeado de floresta, muito verde, muito tropical. Lembro de ver muita destruição, fruto de uma guerra recente”. Os Estados Unidos invadiram e reforçaram a sua posição no canal em dezembro de 1989. George H. W. Bush, o então presidente norte-americano, justificou a invasão com quatro motivos: salvaguardar a vida dos americanos no território; defender a democracia e Direitos Humanos do Panamá; combater a droga; e proteger a integridade do Tratado Torrijos–Carter, aquele que dizia que o território do canal passaria para os panamianos em 2000.

"A arrogância dos pilotos foi o que mais me surpreendeu. A falta de sensibilidade. O Sagres não podia ser tratado como um navio de mercadorias. Não podia ser tudo à bruta. O Sagres era frágil."
Pedro Proença Mendes, ex-comandante da Marinha

Pedro Mendes compreendeu as maravilhas (e a utilidade) do Canal do Panamá oito anos depois, em 2000, quando percorreu a Patagónia, contornando o Cabo Horn. “Esta alternativa ao Panamá, num navio como o Sagres, significava mais três, três meses e meio. Qualquer coisa como 15 mil quilómetros a mais”, explicou. É dose.

Luís Serpa, um português que chegou ao Panamá em maio de 2013, mas que entretanto se mudou para o Brasil, teve também ele a experiência de atravessar o Canal do Panamá. E três vezes. “O Panamá é um país lindo. Talvez não tanto como a Costa Rica, mas é lindo. E mais interessante do que a Costa Rica, mais misterioso, apaixonante”, começou por dizer ao Observador. E continuou: “É uma permanente dissonância cognitiva: é tudo e o seu contrário. Um país que fica entre dois oceanos, dois continentes, dois hemisférios, duas culturas e que agora que recuperou o canal vive como se ele não existisse.”

Luís Serpa (à direita) atravessou o canal três vezes

Luís Serpa esteve apenas quatro meses na Cidade do Panamá, onde fez refit [trabalhos de renovação da embarcação], mas bastou para tirar uma fotografia ao panorama. “Agora que recuperou, o país vive como se o canal não existisse. Enfim, isto é um exagero. O canal existe, claro, na cabeça das pessoas e na economia. Mas não é a primeira fonte de rendimentos do país, ao contrário do que muita gente pensa — são os serviços financeiros. E não se nota na vida quotidiana da cidade”, explicou.

"Um país que fica entre dois oceanos, dois continentes, dois hemisférios, duas culturas e que agora que recuperou o canal vive como se ele não existisse."
Luís Serpa

O português teve a primeira aventura enquanto oficial da marinha mercante quando era muito jovem. A segunda travessia aconteceu 36 anos depois. “A terceira foi a bordo de uma embarcação de vela que me pagou para ser line handler – o canal exige a presença de quatro line handlers para além do capitão. Fazer esse serviço é uma fonte de rendimentos para muita gente”, explicou. Mas foi a segunda dessas viagens que mais marcou Luís.

“O motor do barco avariou-se e ficámos quatro dias parados no meio do canal, num sítio chamado Gamboa. Foi interessante ver — enfim, sentir mais do que ver — os mecanismos internos do canal; e sentir na pele que os veleiros não são realmente uma das suas prioridades, o que de certa forma é compreensível: um navio paga centenas de milhares de dólares para atravessar; um veleiro paga mil dólares”, disse.

E lá continuou a contar a sua cruzada: “Ficámos amarrados numa bóia até o canal nos conseguir encontrar uma lancha para nos rebocar. Não posso dizer que tenham sido os quatro dias mais interessantes da minha vida de mar, mas foram decerto os mais curiosos: estar parado num canal que é feito para ser atravessado, perto de uma das bases da Administração do canal, com todas as suas máquinas e embarcações dos mais diversos tipos, a tentar coordenar com o agente a nossa “libertação”. A meia dúzia de metros da floresta de chuvas e respetivos ruídos — inúmeros, indescritíveis –, é sem dúvida uma experiência. (…) Das que se pode dizer: ‘uma vez chega, obrigado'”, contou.

BEM-VINDO SÉCULO XXI: O ALARGAMENTO É AGORA

Em 1914, altura em que foi inaugurado, o Canal do Panamá recebia em média mil embarcações por ano. No século XXI, segundo um documentário da National Geographic, a travessia que une o Pacífico e o Atlântico recebia já qualquer coisa como 14 mil. Ainda assim, o governo panamiano optou por alargar o canal, para que mais e maiores embarcações pudessem lá passar — atualmente só tolera navios até 294 metros, com uma largura de 32 metros. A ideia é aumentar este valor para embarcações com quase 400 metros de comprimentos e 54 de largura. Em termos de capacidade para transporte de contentores será um aumento de 4500 para 12.000.

Está a ser construída uma terceira eclusa, que permitirá um escoamento mais rápido e moderno. Só para termos uma ideia da dimensão desta obra, os portões que permitem a passagem de nível medem qualquer coisa como seis andares e pesam o mesmo que três aviões Boeing 747.

O objetivo é, entre gerar mais lucro naturalmente, concorrer com o Canal do Suez, no Egipto, que apesar de demorar mais, é mais barato e recebe embarcações maiores. Acredita-se que 6% do comércio mundial navega pelas águas do Canal do Panamá.

Em 2009, um consórcio liderado pela Sacyr, que tinha como parceiros a portuguesa Somague, a Impregilo (Itália), a Jan de Nul NV (Bélgica) e a Constructora Urbana (Panamá) ganhou o concurso para alargamento do canal, num projeto avaliado em 2,2 mil milhões de euros, segundo a Reuters. No entanto, nem tudo correu bem: no início de 2014, a Sacyr ameaçou parar as obras — e acabou por concretizar –, pois queria ser compensada por uma derrapagem de 1172 milhões de euros — a Sacyr responsabilizou a Autoridade do Canal do Panamá por “fornecer especificações inadequadas”. As obras seriam retomadas duas semanas depois, em fevereiro. Espera-se que a obra esteja concluída em 2015.

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As obras de alargamento do canal tiveram também repercussão em Portugal. Em 2011, o Porto de Sines anunciou um investimento de 40 milhões de euros para ampliar o seu molhe leste de abrigo do terminal de contentores de 1.100 para 1.500 metros. “Portugal torna-se a porta de entrada na Europa” para mercados como Estados Unidos, Brasil e Ásia, defendia em janeiro de 2012 o economista Paulo Borges, em declarações à Agência Lusa. Veremos se será assim…

Para os mais curiosos e adeptos do agora, podem aqui o que se passa no Canal do Panamá em tempo real.

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